A Aliança Democrática e a Iniciativa Liberal propõem-se alargar a cooperação entre o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e o setor social ao nível das consultas de especialidade e das consultas de Medicina Geral e Familiar. O objetivo é, por um lado, assegurar uma consulta sempre que o tempo máximo indicativo no SNS seja ultrapassado (o que acontece com frequência na maioria das especialidades médicas) e, por outro, dar uma resposta aos mais de 1,7 milhões de portugueses que não têm médico de família.
Mas terão os setores privado e social disponibilidade e capacidade para alargar a cooperação na área das consultas, como propõem estas duas forças políticas? Enquanto os quatro maiores grupos privados optam por não comentar o tema — num período de pré-campanha –, o setor social (que já tem, de resto, acordos de cooperação com o SNS, nas cirurgias) diz ter capacidade para alargar a colaboração com o setor público de forma significativa, mais do que quintuplicando o número anual de consultas contratualizadas com o Estado.
AD e IL querem estender cooperação às consultas
Mas comecemos pelas propostas políticas. Nos respetivos programas eleitorais, com que se apresentam às eleições legislativas de 10 de março, tanto a Aliança Democrática (AD, coligação que junta o PSD, o CDS e o PPM) como a Iniciativa Liberal (IL) referem expressamente a intenção de contratualizar consultas de especialidade hospitalares nos setores social e privado.
A AD propõe a criação do Voucher Consulta de Especialidade, emitido sempre que é ultrapassado o Tempo Máximo de Resposta Garantido no SNS. Já a IL quer criar um Programa Especial de Acesso a Cuidados de Saúde que assegure o acesso a consultas de especialidade hospitalar, contratualizados, através de concurso público, com aqueles dois setores. O objetivo é a redução, a curto prazo, das listas de espera para consultas hospitalares, que se têm vindo a agravar nos últimos anos, sobretudo no período pós-pandemia, em que o aumento da resposta do SNS não tem acompanhado o crescimento — mais acentuado — da procura por cuidados de saúde.
Na área dos cuidados de saúde primários, os liberais admitem recorrer ao setor social e privado para garantir um médico de família a todos os portugueses. A intenção do partido liderado por Rui Rocha é assegurar, numa primeira fase, até 2025, médico de família às grávidas, idosos e às crianças até aos nove anos. Já a coligação liderada pelos sociais-democratas não inscreveu no programa eleitoral qualquer proposta de contratualizar consultas de Medicina Geral e Familiar com o setor privado. No entanto, o presidente do PSD, Luís Montenegro, traçava, em julho do ano passado, o objetivo de dar uma resposta nesta área a todos os portugueses, até final de 2025, propondo, por exemplo, alargar a todo o país a colaboração, que hoje já existe, entre o SNS e o setor social, no caso com as Misericórdias Portuguesas.
Neste momento, a colaboração entre o SNS e o setor social (no caso, com as Misericórdias, que concentram a quase totalidade da resposta do setor social) que existe no terreno é caracterizada por uma elevada desigualdade geográfica. A maioria dos hospitais do setor social com acordos de cooperação com o SNS localizam-se a Norte, nos distritos de Porto e Braga, enquanto a região de Lisboa e o Sul do país não estão cobertos por este tipo de colaboração. A cooperação abrange cirurgias, consultas de especialidade e consultas de urgência.
Nas consultas, SNS só utiliza 20% da capacidade das Misericórdias
“Muitas vezes, as pessoas não têm acesso a cuidados no SNS e os hospitais das Misericórdias dão essa resposta”, diz ao Observador Humberto Carneiro, vice-presidente da União das Misericórdias Portuguesas. O grau de exigência é igual ao do SNS, assegura, uma vez que tanto as consultas como as cirurgias “estão obrigadas ao cumprimento dos tempos máximos de resposta garantida”, definidos pela Entidade Reguladora da Saúde, tal como acontece nos hospitais públicos. No SNS, e como o Observador noticiava há poucos meses, a maioria das especialidades não cumpre esses mesmos tempos de resposta no que diz respeito às consultas (com as piores posições a serem ocupadas pela Oftalmologia, Imunoalergologia, Reumatologia, Ortopedia e Ginecologia).
Todos os anos, as Misericórdias fazem cerca de 100 mil consultas, ao abrigo da cooperação com o SNS. “Os valores da produção mantiveram-se” relativamente estáveis ao longo dos últimos anos, com uma ligeira diminuição, resultado do aumento do custo das Misericórdias e da estagnação do valor total transferido pelo Estado. “O custo das consultas foi aumentando e o valor global manteve-se. No primeiro ano do acordo, as consultas eram 38 euros, agora são mais caras. O Estado não aumentou o valor total”, salienta Humberto Carneiro. Para 2024, está prevista a realização de cerca de 93 mil consultas, sendo que, em alguns hospitais e especialidades, o número de consultas contratualizadas pelo SNS se esgota rapidamente. “Estamos em fevereiro e, no Hospital da Póvoa de Lanhoso, já esgotámos as consultas de 2024 para Oftalmologia, Ortopedia e Otorrino. Os acordos têm um valor financeiro fixo, não podemos fazer mais consultas, porque não nos pagam”, sublinha o responsável.
Misericórdias esgotam consultas contratualizadas com Estado e pedem alargamento de acordos
Humberto Carneiro garante, no entanto, que os hospitais das Misericórdias têm capacidade para realizar um volume muito superior de consultas de especialidade, mas que não tem havido abertura do governo para aumentar o recurso ao setor social. “Fazemos cerca de 100 mil consultas/ano, mas temos capacidade para fazer 550 mil, poderíamos alargar a cooperação. Já tivemos reuniões com a Administração Central do Sistema de Saúde e com a Direção Executiva do SNS, em que propusemos isso mesmo”, diz o responsável, escusando-se a avançar as razões da resistência do governo em aumentar a cooperação com as Misericórdias. “É um erro, para o qual já alertámos”, diz. O Observador contactou o Ministério da Saúde, para perceber por que razão não foi reforçada a colaboração com o setor social, mas não obteve resposta.
Médicos de família. Projeto Bata Branca dá resposta na região de Lisboa e Vale do Tejo
Na área dos cuidados de saúde primários, um dos projetos mais bem sucedidos é o Bata Branca, criado na região de Lisboa e Vale do Tejo (a mais crítica, e onde se concentram quase 70% dos utentes sem médico de família). O projeto garante o acesso a consultas de clínica geral a utentes adultos sem médico de família atribuído, facilitando o acesso aos cuidados. Criado em 2017, no Arco Ribeirinho de Setúbal, com as Misericórdias de Setúbal, Canha (Montijo), Barreiro e Sesimbra, já se estendeu a outras áreas: Cascais, Ourém, Alenquer, Peniche e à cidade de Lisboa. O Bata Branca é uma parceria entre a União das Misericórdias Portuguesas e a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo. Já permitiu a realização de dezenas de milhares de consultas. Os números mais recentes, que datam do primeiro semestre de 2023, indicam 17 mil consultas feitas apenas nesse período. É o centro de saúde que marca a consulta ao utente, dando-lhe uma espécie de ‘voucher’, com o qual vai depois à consulta na misericórdia respetiva.
Para a Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF), o recurso aos setores privado e social é necessário nalgumas regiões, sobretudo nas que têm mais população a descoberto, ou seja, sem médico de família. “Não é a solução ideal mas é necessária nalguns casos, sempre como solução temporária. Não conseguimos, no imediato, arranjar as centenas de médicos de família que faltam no SNS”, admite, ao Observador, Nuno Jacinto, presidente da associação de médicos de família. “Em muitos casos, no setor social, as consultas são dadas por colegas sem especialidade em Medicina Geral e Familiar, muitas vezes com recurso a contratos diretos ou empresas de prestação de serviços. Sabemos que há contratação deste tipo de serviços em vários locais do país”, refere.
No entanto, o especialista aponta dois problemas que esta solução levanta. Um está relacionado com o recurso a médicos tarefeiros e a outros médicos não especialistas em Medicina Geral e Familiar para assegurarem estas consultas. “Não podemos recorrer ao setor social com consultas feitas por colegas que não são médicos de família. Isto é repetir soluções que já foram tentadas, sem sucesso”, diz o médico Nuno Jacinto. Por um lado, realça, os médicos sem especialidade não têm as mesmas competência de um especialistas em Medicina Geral e Familiar. Por outro, e mais preocupante, segundo Nuno Jacinto, é que a contratualização de consultas avulsas nesta área não permite o acompanhamento continuado dos utentes, uma característica basilar do atendimento no SNS. “O problema é a falta de continuidade dos cuidados. Se a solução é termos uma consulta à lá carte, não estamos a olhar para a verdadeira necessidade destas pessoas”, critica Nuno Jacinto, acrescentando que são necessários médicos de família também nestes setores.
Setor privado tem capacidade para receber utentes do SNS?
Um outro problema é a falta de capacidade dos setores privado e social para responder ao previsível aumento da procura gerado por um eventual reforço dos acordos de cooperação com o SNS. “Há largas centenas de médicos de Medicina Geral e Familiar no privado. Mas estes médicos não estão lá parados, já têm muito trabalho. Temos que perceber com que recursos se quer fazer isto; se temos de colocar estes médicos a trabalhar mais, ou se temos de alterar a organização para que consigam fazer estas consultas para o SNS. Não é só dizer que vamos enviar doentes”, alerta Nuno Jacinto.
Já o setor privado não tem, neste momento, contratos de cooperação ativos com o SNS na área das consultas. O Observador contactou a Associação Portuguesa de Hospitalização Privada, no sentido de perceber qual a disponibilidade dos hospitais privados para iniciar uma colaboração regular do SNS nesta área, bem como se existe capacidade instalada para absorver doentes do SNS. A associação que representa os hospitais privados não respondeu. Contactados, dois dos quatro maiores grupos privados de saúde (o grupo CUF e o grupo Luz Saúde) recusaram tecer quaisquer comentários sobre o tema, justificando o silêncio com o facto de o país estar a atravessar uma pré-campanha eleitoral. Já os grupos Lusíadas e Trofa Saúde não responderam.
A procura pelos serviços de saúde privados (hospitais e clínicos) tem crescido de forma exponencial nos últimos anos. Em 2023, o volume de vendas e prestação de serviços dos grupos privados de saúde cresceu mais de 8% em relação a 2022, para perto de 24 mil milhões de euros — quase duas vezes o orçamento anual do SNS. E não são apenas especialidades como Dermatologia, Oftalmologia ou Oncologia (em que a resposta do SNS é cada vez mais insuficiente) que têm ganho escala no setor privado. Também a Medicina Geral e Familiar tem cada vez mais procura. A Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar estima que cerca de 1500 médicos de família já trabalhem, a tempo parcial ou total, no setor privado. João Sequeira Carlos dirige, há 15 anos, o Serviço de Medicina Geral e Familiar do Hospital da Luz Lisboa. “Temos sentido uma grande procura desde o início. Era muito necessário esta resposta no privado, uma vez que a pressão sobre o SNS tem sido crescente”, ditada “pela incapacidade a que temos assistido para fixar médicos de família, em especial na zona de Lisboa e Vale do Tejo”, sublinha, ao Observador. O médico sublinha que “o que interessa aos cidadãos é terem uma resposta de qualidade, com fácil acesso e que permita resolver os problemas de saúde”.
Quanto à capacidade do setor privado para receber doentes de forma regular, no âmbito de eventuais protocolos de cooperação com o SNS, João Sequeira Carlos sublinha que o Hospital da Luz, e os hospitais privados, em geral, já recebem hoje utentes do SNS, de forma indireta — pessoas que não viram as suas necessidades satisfeitas pelo serviço público. “Há capacidade para receber os utentes do SNS. Claro que uma cooperação formal com o SNS implicará sempre um acréscimo da capacidade de resposta dos privados“, antecipa o médico.
Vales Cirurgia não têm sucesso: mais de 80% são recusados
As propostas da AD e da IL vêm acrescentar uma possível nova área de colaboração entre o SNS e os setores privado e social. Atualmente, a cooperação está limitada à área cirúrgica. Quando 75% do tempo máximo de resposta garantido é ultrapassado, os utentes do SNS a aguardar cirurgia recebem um voucher, designado Vale Cirurgia, com as alternativas para a realização da cirurgia nos setores privado ou social, num prazo inferior ao do hospital de origem. O doente tem 22 dias para decidir se aceita ser operado nalguma das unidades propostas. Se recusar ou não responder, volta a entrar na lista de espera.
O mecanismo não tem, no entanto, sido bem recebido. A esmagadora maioria dos utentes opta por não utilizar o vale. Em 2022, mais de 80% dos Vales Cirurgia foram recusados, uma percentagem que tem vindo a aumentar ao longo dos últimos anos. “A principal razão para a baixa percentagem de vales cativados no privado é a fidelização à equipa do hospital público”, diz ao Observador o presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares. “Na maioria dos casos, as pessoas preferem ser operadas no hospital onde são seguidas, porque têm confiança na equipa médica.”
Outro fator que contribui para o reduzido sucesso do mecanismo de Vales Cirurgia é o aumento da produção adicional nos hospitais públicos, que permitiram aumentar a resposta, diz Xavier Barreto. São cirurgias feitas fora do horário normal de trabalho dos médicos, pagas à parte. Como muitos médicos acumulam a atividade no setor privado com a atividade do SNS, realizando operações nos dois sistemas, os utentes preferem manter a operação no SNS, frequentemente por indicação no hospital. “Os hospitais gerem de forma muito proativa a questão dos vales, porque sabem que cada vale aceite implica uma despesa muito avultada para o SNS”, realça.
Vales Cirurgia têm características inibidoras para escolha dos hospitais
Outro fator que pode explicar a baixa taxa de aceitação dos Vale Cirurgia é o baixo número de convenções com o SNS em certas áreas do país, e as longas distâncias que muitas vezes os utentes teriam de fazer caso aceitassem ser operados nos setores privado ou social. “Há pessoas do Algarve a quem chegam Vales Cirurgias que sugerem a operação em Lisboa. As pessoas não querem fazer centenas de quilómetros, preferem esperar”, frisa Xavier Barreto.
Para o responsável (administrador hospitalar do Hospital de São João), é necessário mudar a forma como o setor público coopera com o privado. Xavier Barreto considera que os hospitais do SNS devem ter autonomia para contratualizar os procedimentos (cirurgias, exames e, no futuro, consultas) diretamente com os prestadores dos setores privado e social, através de concurso público. “Neste momento, os vales são emitidos sem participação dos hospitais”, critica.