Várias lojas continuam a funcionar – Alberto Oculista, A Padaria Portuguesa, Flying Tiger–, mas já se sente o ambiente de fim de ciclo. Um aviso colado em alguns vidros, assinado por “o proprietário”, deixa poucas dúvidas sobre o que está a acontecer: “Devido a obras de remodelação, algumas lojas encontram-se encerradas.” Dessas obras propriamente ditas o Observador ainda não viu sinal esta semana, mas oficialmente diz-se que já há “pequenas demolições interiores” e que em setembro se iniciam os trabalhos em força, o que, a verificar-se, representará um atraso de dois meses face ao inicialmente previsto.
Curiosamente, os proprietários do Monumental pouco disseram até hoje sobre o futuro de um dos mais emblemáticos prédios da zona do Saldanha, em Lisboa. Quem há quase oito meses deu a novidade foi o produtor de cinema Paulo Branco, ao convocar a imprensa para um encontro, pouco depois de começarem a circular rumores. Foi a 21 de dezembro. De semblante fechado, o responsável pela Medeia Filmes, empresa que desde a abertura, em 1993, explorava os cinemas do Monumental, subiu ao palco de uma das salas e anunciou que as sessões iriam deixar de funcionar todos os dias, a partir de fevereiro, porque o prédio entraria em obras no verão de 2019 – e até lá teria lugar uma programação especial de fim-de-semana, sem estreias do momento, só ciclos temáticos (assim tem sido, até agora: os bilhetes custam seis euros e ainda em julho há propostas como “O Grande Mestre”, de Wong Kar-Wai, “Ossos”, de Pedro Costa, ou “ Gato Preto, Gato Branco”, de Emir Kusturica).
Na ocasião, Paulo Branco distribuiu uma lista em papel com nomes de artistas que desfilaram por aquelas salas ao longo dos anos, “alguns dos mais ilustres nomes da Sétima Arte, incluindo Bernardo Bertolucci, David Cronenberg, Christophe Honoré, Catherine Deneuve, Chiara Mastroianni ou Isabelle Huppert”.
De facto, a história do Monumental está para sempre ligada à exibição cinematográfica – para muitos lisboetas o edifício é apenas sinónimo de cinema – e em particular ao trabalho da Medeia Filmes. Mas há também a história de outro Monumental no mesmo sítio, Praça do Duque de Saldanha, confluência da Avenida Fontes Pereira de Melo e da Avenida Praia da Vitória.
O bloco de vidro que agora conhecemos tem pouco mais de 25 anos. As obras iniciaram-se em 1990 e a inauguração data de 5 de maio de 1993, um empreendimento promovido pelo Banco Bilbao Vizcaya, segundo projeto dos arquitetos Javier Adalid, Eduardo de Vilegas e Manuel Ramos Chaves. Na zona das salas de cinema, Manuel Graça Dias (1953-2019) e Egas José Vieira foram os arquitetos, numa fase em que o atelier de ambos mantinha estreita colaboração com Paulo Branco e a Medeia Filmes. Além dos 12 andares de escritórios na zona superior, tratava-se de um centro comercial com níveis no subsolo. Nos anos seguintes fez trio com o Atrium Saldanha e o Saldanha Residence e entrou nos hábitos de consumo dos lisboetas.
“Português Suave” na Rotunda de Picoas
Em 1917 tinha existido na Baixa o Clube Monumental, “com a sua curiosa cenografia em estilo árabe”, na descrição do historiador José-Augusto França, em “Lisboa: Urbanismo e Arquitectura”, de 1980.
O clube era parte integrante de um rearranjo novo-rico (novamente França) que Lisboa então conhecia e a que se juntariam nas décadas seguintes os cafés do Chiado e do Rossio, a ponto de o cheiro da cidade nessas zonas ser muitas vezes o do café torrado, como na canção “Cheira a Lisboa”, de Carlos Dias e César de Oliveira, que Anita Guerreiro popularizou.
O Cine-Teatro Monumental, inaugurado em 51, era outra coisa. Fez parte de um plano público de expansão da cidade, em que bairros novos seriam acompanhados de serviços e entretenimento, no quadro da “política intensiva de obras públicas” que o Estado Novo estabeleceu na década de 30.
“Para desenvolver a Praça do Saldanha e arredores, e para criar um novo posicionamento urbano que aliviaria a Baixa, é decida, por iniciativa do engenheiro Duarte Pacheco (na altura presidente do Município de Lisboa), a construção dum edifício sólido e luxuoso, que seria uma grande casa de espetáculos, capaz de receber as realizações importantes no campo do teatro e do cinema”, lê-se em “Uma Praça Adiada: Estudo de Fluxos Pedonais na Praça do Duque de Saldanha”, livro publicado em 2005 pela socióloga Hélène Frétigné. “Esse novo equipamento cultural deveria ser construído no setor compreendido entre a Avenida da República e a Avenida Fontes Pereira de Melo, onde antes estava instalado o prédio cor-de-rosa da Nunciatura Apostólica, demolido alguns anos atrás. Nos terrenos vagos ficou reservada uma parcela para o futuro estabelecimento”.
Chegados a 1943, o ministro da Educação Nacional, Mário de Figueiredo, manda finalmente erigir essa “casa de espetáculos como ainda não há em Lisboa”, obra desenhada pelo arquiteto Raul Rodrigues Lima (1909-1980), o mesmo que projetou tribunais no Porto e em Beja, o Cine-Teatro Império, em Lagos, ou o Teatro Micaelense, em Ponta Delgada.
Até muito tarde conhecida como Rotunda de Picoas, início das Avenidas Novas que o engenheiro municipal Ressano Garcia concebeu para Lisboa no fim do século XIX, a Praça de Saldanha verá surgir um edifício de escala condicente com o nome, elevando os padrões portugueses da época. “Uma das mais elegantes salas de cinema e teatro da capital”, dizia um documentário da RTP sobre o Saldanha, em 1989.
Várias salas de cinema se espalharam pela capital a partir de então, ainda antes de o modelo americano dos “multiplexes” (várias salas num só espaço) se ter tornado norma a partir da década de 70. São Jorge, Império, Roma, Alvalade, tudo nos anos 50, conta José-Augusto França.
“Inserido na corrente modernista que marcou algumas das obras públicas do Estado Novo, por alguns denominada Português Suave”, a composição arquitetónica do Monumental incluía uma sala de cinema, com eixo paralelo à Avenida Fontes Pereira de Melo, com lotação de 1967 lugares, e uma sala de teatro, paralela à Avenida Praia da Vitória, com 1086 lugares, regista um estudo de Andreia Brito Silva, investigadora do Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras de Lisboa. A inauguração deu-se em novembro de 1951, com a opereta “As Três Valsas”, com Laura Alves e João Villaret nos protagonistas. O empresário Vasco Morgado toma o teatro de arrendamento, o que lhe granjeará momentos históricos das artes de palco. Em 1965, é no Monumental que acontece o Festival de Teatro Universitário, organizado pelo jovem ator Hélder Costa, e já na fase decadente, em 1979, tem ali lugar a final do Festival RTP da Canção.
Os tempos mudaram com 0 25 de Abril e “uma quebra significativa de espectadores”, justifica Andreia Brito Silva, faz perigar a sobrevivência da casa. “A aposta da televisão em vários formatos de entretenimento, o aparecimento de salas de cinema de dimensão mais reduzida e programações mais atrativas, as alterações políticas e sociais entretanto trazidas pela Revolução de Abril, a irrupção de outras formas de espetáculo que atraíam espectadores mais jovens, tudo se juntou para afastar cada vez mais o público daquelas salas”, nota a mesma investigadora.
Esse Monumental icónico, cada vez mais divorciado da cidade, será demolido em 1984, sob forte polémica pública, no tempo em que Nuno Kruz Abecassis presidia à Câmara de Lisboa. “Os argumentos e acusações por parte dos protetores do cinema giram em torno de dois aspetos principais: a denúncia de uma atitude de pura especulação imobiliária e o desrespeito pelo património cultural da cidade”, escreve Hélène Frétigné. “Este projeto de destruição é encarado como ‘um enorme vandalismo’, ‘uma falta de amor ao testemunho do tempo ou à obra de arte’, ‘uma cedência aos interesses imediatos da banca’ , ‘uma calamitosa operação antiteatral’”, tudo expressões à época, coligidas pela socióloga.
O quarteirão ficará descampado por vários anos, com tapumes onde eram colados cartazes publicitários. O último espetáculo de teatro ali apresentado tinha sido “Pai Precisa-se”, de Júlio Mathias, com Laura Alves, e as últimas sessões de cinema haviam sido a 27 de novembro de 1983.
Monumental de ferro e vidro
A área comercial do Monumental que hoje conhecemos foi batizada Dolce Vitta em 2007, quando passou a integrar a cadeia de centros comerciais do grupo espanhol Chamartín. Nessa época o edifício sofreu obras de remodelação, na ordem de um milhão de euros, e nem uma década tinha passado quando o Dolce Vita abriu falência, em 2014, com dívidas de quase 80 milhões de euros. Em 2016, o Monumental foi comprado pela Merlin Propeties, uma sociedade imobiliária cotada em bolsa e com sede em Madrid, que terá investido até hoje mil milhões de euros só na zona de Lisboa.
Apesar de correrem notícias sobre o futuro do prédio após as obras, com base na mesma imagem compósita que o Observador mostra neste artigo, na image em baixo, cedida pela agência de comunicação Tinkle de Espanha (intermediária nos contactos da imprensa com os proprietários), a verdade é que as informações são escassas.
A partir de outubro de 2020 haverá “um novo Monumental”, disse em abril o diretor-geral da Merlin Properties em Portugal, João Cristina, em entrevista ao jornal “Eco”. “Vai alterar a imagem da Praça Duque de Saldanha. Queremos criar um edifício de escritórios de primeiro nível, muito moderno. Os usos vão ser respeitados tal como estão. Vai continuar com o uso comercial, cultural e os escritórios”, acrescentou. Quanto aos custos da empreitada, andam na ordem dos 20 milhões de euros, disse João Cristina, confirmando o valor falado há pelo menos oito meses.
Pela imagem distribuída, pode-se concluir que será substituída a frente espelhada, em tons rosa e com colunas de pedra, dando origem a um visual de ferro e vidro transparente, compartimentado, também arejado, com dois terraços de permeio e uma presença talvez mais discreta do que agora. O nome do edifício, hoje em letras garrafais e salientes, deverá ser esbatido para dar lugar a uma inscrição discreta na frontaria.
Uma conferência de imprensa esteve programada para julho e foi entretanto adiada para setembro, de acordo com a Twinkle. A incerteza está também presente na forma como a Medeia Filmes disse esta semana ao Observador que tem programação assegurada até ao fim de julho e que está a organizar os próximos meses, mas sem saber ao certo se a atividade ao fim de semana continuará a ser viável. “A exploração existirá enquanto for possível, enquanto não houver obras globais no Monumental”, comentou Paulo Branco no início deste ano. “O projeto que há para aquele espaço demora não sei quantos anos a estar pronto. Além disso, não há obras ao fim de semana. Enquanto me deixarem fazer as sessões, não tenho data limite”, acrescentou. O futuro próximo segue dentro de momentos.