Enviado especial a Espanha
— Como é que foi nascer e crescer no Vale dos Caídos?
— Foi incrível. Foi muito bonito. Numa palavra: liberdade.
No Vale dos Caídos, monumento erguido por Francisco Franco para honrar os mortos da Guerra Civil e onde este veio a ser sepultado dois dias depois de morrer, em 1975, há um segredo bem guardado. Bem menos vistoso do que a cruz católica de 150 metros de altura — a maior de todo mundo, visível a 40 quilómetros de distância, em dias de bom tempo — e muito mais resguardado do que aquele monumento, está um dos segredos mais bem guardados da história do maior monumento que alguma vez o franquismo ergueu: o Poblado.
A menos de um quilómetro da basílica, por entre curvas e contracurvas na serra de Guadarrama, chega-se à povoação onde se contam 26 vivendas geminadas, todas construídas com pedra e madeira e com dois andares. Quase no final dos quase 20 anos que o Vale dos Caídos demorou a ser erguido naquele lugar inóspito, construíram-se aquelas casas para que ali pudessem viver os trabalhadores do Vale dos Caídos, tal como as suas famílias.
Serralheiros, carpinteiros, empregados de limpeza, guardas e seguranças, todos aqueles que trabalhavam no Vale dos Caídos tinham direito a viver numa daquelas casas, enquanto ali estivessem empregados. Sem contas a pagar além da luz, muitos acabavam por ali ficar, criando uma comunidade alargada. Era como se houvesse uma pequena comuna, ali aos pés daquele imponente monumento franquista.
Uma das famílias que ali se instalaram foi a de Javi. “Pouco depois de terem terminado a obra do Vale, o meu pai conseguiu trabalho aqui como carpinteiro”, explica Javi, de 52 anos, que conta a sua história a troco de que não escrevamos o seu apelido nem lhe tiremos uma fotografia.
“Foi uma infância do melhor que podia haver. Tínhamos uma liberdade enorme, de poder ir a saltar e a correr por aí fora, entre as árvores e pelos penedos. Fazíamos o que queríamos pelo bosque”, conta. “Toda a gente se conhecia, todos eram amigos, toda a gente tinha sempre a porta de casa aberta.”
Naquela altura, o Poblado tinha uma vida própria. “Se quiséssemos, não precisávamos de sair daqui”, conta. Havia supermercado, um bar que também servia refeições, igreja e escola primária. Ali, uma só professora, com apenas uma sala, dava aulas do 1º ao 5º ano a todas as crianças do Poblado. A professora era a doña Martina, mulher de don Juan, o guarda civil que era a maior autoridade naquela pequena povoação. Para além destas duas pessoas, não havia uma autoridade maior. Nem Franco.
“As pessoas de fora podem achar que isto é mentira, que não é assim, mas aqui raramente se falava do Franco. Nós tínhamos uma vida para viver, as crianças tinham mais que fazer e os adultos tinham de trabalhar. E mais nada”, garante.
Ainda assim, Javi abre uma exceção para aquele que foi um dos dias mais marcantes da história do Vale dos Caídos: 22 de novembro de 1975. Ou, dito de outra forma, o dia do funeral de Franco, em que o ditador espanhol foi sepultado, por ordens do recém-empossado Rei Juan Carlos, que pediu que ele fosse para o “sepulcro destinado a esse efeito, no presbitério entre o altar maior e o coro da basílica”. Desde então, o corpo embalsamado de Franco jaz ali, numa sepultura discreta — não fossem as flores que admiradores vão depositando com regularidade.
Para Javi, o que fica desse dia são os carros. “Era carros e carros, filas enormes para ir ver o Franco. Eu nem fui lá, mas isto ficou cheio. Parece impossível, mas ficou”, conta. Javi não fez parte do quase meio milhão de pessoas que ali passaram, mas os pais foram.
“Porque é que eu haveria de me meter em política aos 8 anos? Nem aos 52, quanto mais…”, diz.
Já tinha 11 quando viveu o que diz ter sido um dos piores momentos da sua vida: a sua família teve de sair do Poblado do Vale dos Caídos. O pai, que era o único da família que ali trabalhava, morreu. Por isso, tiveram de sair da casa e dar lugar a outros. A mãe de Javi conseguiu um emprego nos correios em Guadarrama, uma pequena cidade ao pés do Vale dos Caídos, e a família mudou-se para ali.
Assim que saiu, Javi fez de tudo para voltar. Ainda menor, mas já com os estudos terminados, entrava em contacto sempre que podia com as pessoas do Poblado. “Há aí trabalho para mim?”, perguntava. A resposta era sempre a mesma: só podia candidatar-te quando fosse maior de idade. Por isso, nos anos que levou até chegar aos 18, aprendeu o ofício do pai, a carpintaria, por saber que esse era um trabalho muito procurado no Vale dos Caídos. E, assim que fez os 18 anos, passou a estar atento aos concursos de emprego que iam sendo publicados.
“Eu já nem queria saber que trabalho seria. Jardineiro, carpinteiro, serralheiro, trolha… Eu era capaz de fazer tudo, desde que me pusessem outra vez no Poblado”, disse. Aos 21 anos, conseguiu — e aqueles trabalhos que mencionou foram apenas alguns do que ali fez. “Eu, aqui, faço o que me mandam”, conta, curvado sobre uma pequena mesa, encostada a um aquecedor, ao canto da oficina de serralharia. Está vestido com a farda de trabalho: umas calças e uma camisola azul, com o logótipo do Patrimonio Nacional, o órgão público que gere os principais monumentos espanhóis.
Espalhadas pelo chão estão as mesmas caixas de metal que podem ser vistas no interior da basílica, colocadas em sítios específicos onde a água da montanha se infiltra no monumento, pingo atrás de pingo. É Javi quem as faz.
Dos tempos de infância, já pouco ou nada sobra. A escola, a cantina e a igreja já não funcionam e os campos de jogos que podem ser vistos logo à entrada estão com um ar abandonado, como se ali não rolasse uma bola há décadas. Entre as 26 casas, só quatro estão habitadas — cada uma com um monte de lenha despejado à porta de casa. “As pessoas foram morrendo e saindo daqui e, depois, as pessoas que vêm para cá trabalhar parece que não querem viver aqui. Acham que é muito isolado, que não se passa nada…”, diz.
Uma vez por ano, porém, o Poblado torna a encher-se. Pela altura de dezembro, perto do Natal, vários ex-residentes do Poblado juntam-se aos que ainda ali estão e reúnem-se todos para comer — abrem-se as portas do antigo bar, desempoeira-se o espaço e já está.
Naquelas alturas, só há um tema à mesa: “Falamos do Poblado, falamos das nossas vidas aqui, que é o que interessa”. E de Franco? “O Franco não entra aqui. Eu, pelo menos, não falo nem do Franco nem de política.”
O próximo governo terá de exumar Franco a 10 de junho — mas só se quiser
Javi não fala nem de Franco, nem de política — mas a verdade é que, em alguns momentos da legislatura que agora termina, parecia que a política espanhola não falava de outro assunto que não de Franco. Mais propriamente, da sua exumação — uma promessa que Pedro Sánchez anunciou pouco depois de ter começado o seu curto mandato.
Este tema não nasceu, contudo, com Pedro Sánchez. Quem o trouxe verdadeiramente à vida foi José Luiz Zapatero, primeiro-ministro eleito pelo PSOE, que governou entre 2004 e 2011. Em 2007, o seu governo criou e fez aprovar a Lei da Memória Histórica, que permitiu, entre outras coisas, que fossem feitas exumações das valas comuns que restaram da Guerra Civil, que opôs republicanos e comunistas às tropas comandadas por Franco, entre 1936 e 1939.
A campa de Franco não é um assunto morto, nem enterrado. E está a dividir Espanha
Em 2011, porém, deu-se um passo importante para outra exumação: a do próprio Franco. No seu último ano no poder, Zapatero convocou uma Comissão de Especialistas sobre o Futuro do Vale dos Caídos, formada por 12 personalidades de diferentes disciplinas: do Direito Público à Antropologia, passando pela História. No final da sua missão, a comissão recomendou a exumação de Franco do Vale dos Caídos, referindo que a sua presença era ali “incongruente”, já que aquele monumento foi construído com o propósito de acolher unicamente os restos dos falecidos da Guerra Civil”.
No final de 2011, o Partido Popular de Mariano Rajoy ganhou as eleições gerais com maioria absoluta e o tema da exumação de Franco foi posto numa gaveta. Até que, em 2017, já no final do segundo mandato de Mariano Rajoy, desta vez sem maioria parlamentar, a oposição se uniu no Congresso dos Deputados para exumar o ditador.
Mariano Rajoy não fez nada com esta lei, mas, assim que subiu ao poder — após vingar uma moção censura contra o governo do PP —, Pedro Sánchez fez da exumação de Franco uma bandeira do seu governo. “Chegou o momento”, disse. “As feridas estiveram abertas durante demasiados anos e chegou o momento de fechá-las. A nossa democracia tem de ter símbolos que unam a cidadania e não que a separem.”
Porém, esta não foi uma promessa cumprida — ainda que não por falta de vontade do Presidente de Governo, mas antes por oposição da família de Franco, que recorreu à justiça. “Estamos a acatar as resoluções judiciais, mas isso não impede que o Governo termine o seu procedimento tal qual como está previsto em mandato legal”, reagiu a número 2 de Pedro Sánchez aos recursos que a família do ditador tem colocado.
Essas declarações foram feitas durante uma conferência de imprensa onde se anunciava, pela primeira vez, uma data específica para a exumação de Franco: 10 de junho. “Seja qual for o Governo que estiver no poder a essa data, a não ser que mude a lei, terá de fazê-lo”, sublinhou.
Governo espanhol anuncia que Franco vai ser exumado a 10 de junho
O tema da chamada Memória Histórica e, em específico, o Vale dos Caídos, faz parte do programa de alguns dos principais partidos nestas eleições espanholas.
Nem o PSOE e o Podemos, favoráveis à exumação de Franco, referem a exumação do ditador — para estes partidos, este é já um assunto arrumado. Porém, ambos referem nos seus programas medidas que vão ao encontro da Lei da Memória Histórica do governo de José Luiz Zapatero, aprofundando.
O PSOE promete alterar “o regime legal do Vale dos Caídos”, o que pode significar tirar a gestão da basílica à Igreja, para que se possa “dignificar e homenagear as suas vítimas e explicar o significado do monumento e da sua construção”. O Podemos quer retirar medalhas a reconhecidos “torturadores do franquismo” e quer que os crimes cometidos durante a ditadura sejam julgados.
À direita, a tendência é contrária. O PP quer substituir a Lei da Memória História por uma Lei da Concórdia, que permita “recuperar o espírito da Transição” e que não leve a que “em qualquer momento, sob qualquer circunstância, volte a haver ódio e violência entre os espanhóis”. O Vox exige a “anulação imediata da Lei da Memória Histórica” e sublinha que “nenhum parlamento tem legitimidade para definir o nosso passado” e que “não se pode utilizar o passado para nos dividirmos”. O Ciudadanos não faz qualquer menção a este tema no seu programa.
“Quis ver isto uma última vez, antes que destruam tudo”
Para a despedida, José tira uma selfie com a cruz do Vale dos Caídos em pano de fundo. Vem com a mulher e os dois filhos, naquela que é a última paragem de uma viagem por Madrid e pelos seus arredores. São de Valência. E, para José, era essencial fazer aqueles quilómetros para que pudesse ver o Vale dos Caídos como ele é.
“É a minha segunda vez aqui. A primeira foi quando era muito pequenino, vim com a escola. Mas agora quis vir, fiz questão. Quis ver isto uma última vez, antes que destruam tudo”, explica. Logo que diz isto, José procura esclarecer: “Eu não sou fascista, nem franquista, nem nada disso. Mas gosto da História do nosso país, gosto de conhecê-la e quero que os meus filhos a conheçam”.
José é apenas um entre as dezenas de milhares de espanhóis que, desde o anúncio da exumação de Franco por parte do governo socialista, foram visitar o Vale dos Caídos em massa — esta quinta-feira parece ser uma exceção, dia em que a muita chuva e até alguma neve que cai em torno do monumento parece afastar as visitas. Em 2018, um total de 378.875 pessoas visitaram aquele monumento — um aumento de 33,75% em relação a 2017. E os números são ainda mais impressionantes já em 2019. No primeiro trimestre do ano, houve um total de 81.284 visitas, o que representa um aumento de 74,5% em relação ao mesmo período do ano passado.
O monumento, pois, tornou-se uma obsessão espanhola. Mas, antes de sê-lo, quando ainda não existia, o Vale dos Caídos foi a “maior obsessão privada de Franco, a seguir à caça”. Uma obsessão de tal maneira grande que “chegou a ser o mais próximo que o Generalíssimo teve de uma ‘outra mulher’”. Quem é o diz é Paul Preston, no livro Franco, Caudillo de España, uma biografia do ditador que governou Espanha desde que venceu a Guerra Civil, em 1939, e até que morreu, em 1975. Quando mandou erguer aquele monumento, que custou 20 milhões de pesetas, a previsão era que tudo estivesse pronto em apenas um ano. Mas, até que se terminasse a obra, foram precisos quase 20 anos — ao longo dos quais trabalharam ali 20 mil presos de guerra republicanos, inseridos em grupos chamados de “brigadas penais” e “batalhões de castigo”.
Ao seu lado, José tem o filho de oito anos, que apenas assiste à conversa. Já a filha, María del Mar, de 20 anos, fala por cima do pai, procurando também ela partilhar a sua ideia. “É uma estupidez o que querem fazer com o Vale dos Caídos. O que é que vamos ganhar com exumação de Franco? Vão tirá-lo daqui e depois o que se passa? Tiram-no da História, é?”, atira. “Não é possível, não faz sentido. Não se passa uma borracha por cima e já está.”
A mãe, também chamada María del Mar, reconhece que este monumento é tendencialmente franquista — mas, a isso, contrapõe as medidas da Lei da Memória História que tornaram obrigatório a alteração do nome de ruas, praças e avenidas que homenageassem personalidades ou acontecimentos do franquismo. “Os que mandam estão a pôr o nome dos deles em toda a parte. Ainda noutro dia passámos numa rua que era de Santiago Carrillo”, diz, referindo-se ao ex-líder do Partido Comunista Espanhol, que combateu na Guerra Civil e chegou a deputado já em democracia. “O Santiago Carrillo também matou muitas pessoas. Porque é que não tiram o nome dele das ruas também?”
Os três garantem que vão votar no PP. “Somos de direita e não temos problemas em afirmá-lo”, diz o pai de família, que, ainda assim, pede que não lhes tiremos fotografias ou apontemos os seus apelidos. “Vamos votar no PP, porque é a maneira mais eficaz de mandar aquela gente para fora. Esperamos conseguir, porque, se não der, vai ser muito complicado”, diz.
Também de visita ao Vale estão Antoine e Julie, um casal de jovens franceses que goza os seus últimos dias em Espanha, depois de terem aqui vivido dois anos. Ele é engenheiro, ela é psicomotricista — e ambos reconhecem que não conhecem ao certo a História do franquismo e de Franco. “Sei que ele foi um ditador, mas não sei muito mais do que isso”, diz Antoine.
Antes de subirem ao Vale dos Caídos, estiveram no Escorial, onde estão sepultados vários reis de Espanha. Quando idealizou o Vale dos Caídos, Franco pensou num monumento inspirado no Escorial, mas mais grandioso. Para Julie, acertou. “Este é muito mais imponente, isso é certo…”, diz. E, por fim, termina dizendo: “Isto é tudo um pouco estranho. É estranho que um ditador esteja enterrado num sítio desta grandiosidade. Não sei se gosto.”
“Façam o que fizerem, mas deixem-me em paz”
Javi suspira quando fala da possível exumação de Franco. É que, para ele, o Vale dos Caídos é muito mais do que uma sepultura de um ditador, é muito mais do que um monumento franquista — é a sua terra e a sua casa. É nesta altura em que pergunta se pode fumar e, assim que recebe a resposta afirmativa, tira um cigarro do maço e acende-o rapidamente.
“As pessoas lá de fora sempre pensaram que nós éramos todos uns fachos, que éramos todos franquistas, mas o que nós fazemos aqui é trabalhar e viver” assegura. “Eu não quero saber do Franco para nada. Mas para nada, mesmo. Ele está lá em cima e eu estou aqui em baixo. Ele faz parte do vale. Não é bom nem é mau, faz parte”, assegura.
Javi vivia, até há pouco tempo, apenas com a mulher — “Ah, e o gato e a cadela, claro”, acrescenta. Porém, há pouco tempo, voltou a receber em casa a filha, desta vez com o genro e com a neta, uma menina de dois anos. “A minha filha e o meu genro ganham, cada um, 700 euros. É impossível pagar uma renda e as contas e ainda criarem a miúda” diz. “Então estamos todos aqui, nesta casa, e, se não for assim, tudo pode ficar comprometido.”
Insistimos no tema da exumação e perguntamos, então, se acha que a exumação de Franco poderá levar a que o seu posto de trabalho seja anulado, se se der o caso de aquele monumento ter uma quebra radical no número de visitantes, que pagam cada um 9 euros à entrada.
Javi devolve-nos uma resposta em que fala do que há mais no Vale dos Caídos: árvores. “Ele para mim é como se fosse uma árvore, como estas todas que aqui estão”, diz. “Se cortarem uma árvore eu não dou por nada, não dou pela falta dela, não é? Então, com o Franco é o mesmo. Mas eu dependo deste trabalho. Portanto, façam o que quiserem, tirem o Franco daqui ou não, mas deixem-me em paz, por favor. Quero o meu trabalho e quero a minha casa. E que me deixem em paz.”