Dizem que é “um fiel intérprete da velha tradição do PPD, o partido dos baronatos do Norte”. Chegou à liderança do partido depois de alguns fracassos, mas com o estatuto de “herdeiro do passismo”, muito por causa do cargo que assumiu durante o período da troika. No livro “A cabeça de Montenegro”, o jornalista Miguel Santos Carrapatoso, editor-adjunto de Política do Observador, traça o percurso pessoal e profissional de um homem que “esteve politicamente morto e ressuscitou”.
Neste excerto, a biografia olha para o peso da figura de Cavaco Silva — “referência política maior”, diz o próprio Montenegro —, com destaque para o momento em que o antigo Presidente da República surgiu de surpresa no congresso de Almada, em novembro. Miguel Santos Carrapatoso escreve que, ali, “a transição de ponta‑de‑lança do passismo para símbolo do neocavaquismo”, tal como Luís Montenegro sempre pretendera fazer, “estava internamente consumada”.
O livro faz parte de uma trilogia editada pela Zigurate que fica completa com as biografias de Pedro Nuno Santos, do PS, escrita pela jornalista do Público Ana Sá Lopes; e de André Ventura, escrita pelo jornalista do Expresso Vítor Matos. Os três títulos já estão em pré-venda e chegam às livrarias no dia 8 de março.
“Agora, se me permitem, a minha mulher está à minha espera para jantar e eu gostaria de me juntar a ela.” Aníbal Cavaco Silva cumprira o seu papel e não desejava dizer mais nada. Acompanhado por Luís Montenegro, despediu‑se dos jornalistas, libertou‑se do emaranhado de pernas, braços, microfones, cabos e câmaras, entrou no carro e zarpou. À frente de todos, para o país inteiro ver em horário nobre, num simbólico 25 de Novembro e a partir do 41.º Congresso do PSD, o ex‑presidente da República tinha acabado de abençoar Luís Montenegro como seu herdeiro natural. Lá dentro, no Complexo Desportivo de Almada, dirigentes e militantes sociais‑democratas ainda procuravam refazer‑se do momento impactante que tinham testemunhado. As televisões haveriam de passar em loop e durante um par de dias aquelas imagens. A aparição de Cavaco Silva foi preparada pessoalmente por Luís Montenegro e sob a maior das reservas. Só depois, e de forma muito seletiva, começou a partilhar a informação com o seu núcleo duro, ciente de que qualquer fuga comprometeria o momento e colocaria em causa a relação de confiança com o convidado de honra. Até às sete da tarde, nem a sua direção mais próxima sabia — não a esmagadora maioria dos elementos que a compõem, pelo menos.
Havia rumores no ar. Logo na manhã desse dia, já circulava o suspiro de que haveria uma surpresa reservada para os congressistas. Mas nada apontava para que fosse a presença de Cavaco Silva, que não participava num congresso nacional do partido desde 1995. Pouco antes das oito da noite, e já depois de Carlos Moedas ter feito um dos discursos mais ovacionados do congresso, Miguel Albuquerque, na qualidade de presidente da mesa, surpreendia todos: “O Congresso dá as calorosas boas‑vindas ao antigo presidente e ao grande estadista do século XX Cavaco Silva, que muito nos honra com a sua presença. A sua acção política é sempre uma inspiração para o presente e para o futuro.” Os congressistas levantaram‑se como se tivessem molas e receberam Cavaco Silva ao som do hino do PSD e com gritos de “Portugal”. O ex‑presidente da República subiu ao palco para cumprimentar os presentes, foi aplaudido durante largos minutos, e sentou‑se depois na primeira fila, ao lado de Manuela Ferreira Leite, outra das surpresas do congresso. Leonor Beleza, uma das figuras maiores do cavaquismo, também se juntaria a eles. O partido entrava num transe colectivo.
Montenegro tinha conseguido fazer o que muitos diziam ser impensável. Ultrapassara as barreiras da tribo e, pelo menos dentro do PSD, já não era apenas e só um antigo líder parlamentar que se havia tornado presidente do partido para ser uma nota de rodapé. Tinha recebido a validação de Nuno Morais Sarmento, barrosista dos sete costados e, depois, general do rioísmo, que reaparecera publicamente depois de ter atravessado um período muito delicado de saúde para oferecer um pin que terá sido usado por Francisco Sá Carneiro durante a campanha eleitoral de 1979. Tinha Carlos Moedas, o wonderkid do partido, rosto da maior derrota infligida ao PS em oito anos. Tinha Manuela Ferreira Leite, a maior crítica interna do passismo e apoiante de primeira hora de Rui Rio, a única antiga líder do PSD ali presente. Mas tinha, sobretudo, Aníbal Cavaco Silva, um símbolo da transformação do país e do nascimento da classe média para uma parte relevante das gerações de 40, 50 e 60, os pensionistas de hoje e os do amanhã mais próximo. Mais do que uma evocação, como Montenegro fizera no congresso que o entronizou como líder, o político que mais maiorias absolutas conquistou em Portugal era, ali e naquele momento, um santo padroeiro de carne e osso.
Em cima do palco, Montenegro tinha perfeita consciência de que estava a viver o seu melhor momento como líder do PSD. Transpirava confiança na mesma exata medida em que, praticamente dois meses antes, na noite em que o PSD perdeu de vez a maioria absoluta na Madeira, transpirava desespero. Em 60 dias, tinham‑se acabado as conversas em torno da sua morte política e tinham‑se enterrado as cenarizações sobre o que iria acontecer depois das europeias de junho de 2024. Montenegro chegara a Almada para relançar o partido rumo às legislativas antecipadas como candidato a primeiro‑ministro de pleno direito. “Permitam‑me que cumprimente muito especialmente a doutora Manuela Ferreira Leite e o presidente Aníbal Cavaco Silva”, começou por saudar. “A vossa presença também nos enche a alma, também nos dá alento e tem um grande significado para nós. Nos dois, quero aproveitar para saudar todos aqueles que me antecederam no exercício destas funções. Quer aqueles que o fizeram estando na oposição, quer aqueles que o fizeram governando o país.”
Uma nuance muito relevante. Pedro Passos Coelho, outrora o guia espiritual da família que Montenegro personificava dentro do PSD, era relegado para o bolo de todos os antigos líderes do partido, sem direito a identidade própria ou a ser chamado pelo nome — ao longo do discurso de mais de 43 minutos, Montenegro faria apenas mais uma referência (muito tímida) ao ex‑primeiro‑ministro. Depois, o elogio rasgado ao legado do homem que estava ali à sua frente: “Doutora Manuela, sei que comunga comigo e com milhões de portugueses a opinião de que o presidente Cavaco Silva é o responsável pelo maior e mais profundo legado de desenvolvimento que Portugal conheceu no pós‑25 de Abril. Quero dizer‑lhe, presidente Cavaco Silva, de toda a minha gratidão, mas, sobretudo, do grande orgulho que nós temos no PSD pelo trabalho que desenvolveu à frente do Governo de Portugal. A sua visão, a sua honestidade, a sua sensibilidade social, a sua vontade de dar às pessoas o instrumento que elas precisam para poderem atingir os seus objetivos, os seus sonhos, nas suas vidas. Esse legado, essa marca, são uma referência e são, sobretudo, uma grande inspiração para aquilo que vamos fazer em Portugal nos próximos anos. É uma honra tê‑lo connosco e é uma oportunidade para lhe dizermos: nós vamos estar à altura do seu legado nos próximos anos em Portugal.” A transição de ponta‑de‑lança do passismo para símbolo do neocavaquismo, tal como sempre pretendera fazer, estava internamente consumada.
“Gosto muito de conversar com o professor Aníbal Cavaco Silva. Já se pode saber isso”, reconhece hoje Montenegro. “Acho que tem uma experiência e uma sensibilidade únicas. Tenho uma amizade muito antiga com o doutor Marques Mendes, estamos a falar de 25 anos, metade da minha vida. Tenho uma grande relação de trabalho político com Pedro Passos Coelho. Acompanhei e apoiei de perto Durão Barroso e o próprio Pedro Santana Lopes. Mas a minha referência política maior é mesmo o professor Aníbal Cavaco Silva”, explica. “Foi aquele que me despertou mais para a vida política. Foi aquele que me impôs mais pensamento, mais reflexão. Acho que o projeto dele foi o único, verdadeiramente, que teve um princípio, um meio e um fim. Não tínhamos essa relação, nem ele é muito de ter uma partilha assim muito diversificada com as pessoas, mas gosto muito dele.”
Em boa verdade, Aníbal Cavaco Silva adotara Luís Montenegro ainda antes desse 25 de Novembro de 2023. Seis meses antes, em maio, o antigo presidente da República aceitou participar no encerramento do 3.º Encontro Nacional dos Autarcas Social‑Democratas (ASD), em Lisboa, algo de excecional vindo de Cavaco Silva. Haveria de fazer um discurso duríssimo sobre o Governo socialista, convidando António Costa a apresentar a demissão: “[O Governo] passa os dias a mentir. Nunca pensei que fosse possível descer tão baixo em matéria de ética e nunca imaginei que a incompetência do PS atingisse tal dimensão.” Estas tiradas concentrariam, naturalmente, grande parte das atenções mediáticas e das reações políticas. Mas Cavaco Silva aproveitou aquele momento para fazer uma declaração única sobre o líder social‑democrata: “O doutor Luís Montenegro tem mais experiência política do que eu tinha quando subi a primeiro‑ministro em 1985. E está tão ou mais bem preparado do que eu estava.” Cavaco Silva, alguém que reconhecidamente se tem em boa consideração, nunca antes tinha feito elogio tamanho a qualquer um dos seus sucessores. Era um sinal muito relevante para dentro e (desejavelmente) para fora de portas: os dois estavam em perfeita sintonia.
Quem lidou de perto com o antigo presidente da República descarta a ideia de que o súbito interesse de Cavaco Silva por Luís Montenegro tenha nascido do amor incondicional ao PSD ou do puro ressentimento em relação a António Costa, que, antes da inesperada demissão, se preparava para ultrapassar Cavaco em termos de longevidade como primeiro‑ministro. É possível que esses dois fatores tenham contribuído para um maior envolvimento de Cavaco Silva na política nacional e, consequência disso mesmo, para um estreitar da relação entre ambos. Mas o que os une é algo mais profundo do que isso. O antigo presidente da República terá percebido que Luís Montenegro estava verdadeiramente à altura do desafio do cargo. Ou, pelo menos, terá considerado que estava à altura dos seus padrões.
Cavaco Silva não é conhecido por permitir aos seus interlocutores que façam longas exposições. Faz perguntas e espera respostas que o convençam. Testa as pessoas e não é particularmente condescendente com erros e artifícios. Montenegro terá dado boas impressões iniciais e a relação foi crescendo. Não se trata de uma questão de puro afeto pessoal, ainda que não seja despiciendo pensar‑se que Cavaco Silva se reveja no perfil atlético e mais competitivo de Luís Montenegro — já com mais de 70 anos, ainda em exercício de funções, Cavaco Silva aproveitava as pausas nas visitas de Estado para dar longas braçadas nas piscinas dos hotéis. Mas, mais do que isso, o antigo primeiro‑ministro terá percebido que Montenegro dominava os temas e que tinha genuínas e, sobretudo, fundamentadas preocupações com as questões sociais que o afligiam. Cavaco Silva desesperava há muito com o facto de o PSD continuar sem agarrar a matriz social‑democrata do partido. Aos olhos do próprio, Rui Rio, por manifesta inflexibilidade e por incapacidade de o ouvir (ou desinteresse), desviara‑se do caminho. De resto, nunca terá perdoado a Rio que o tivesse deixado de procurar assim que chegou à liderança do PSD. Mas Cavaco Silva reconheceu em Montenegro essa preocupação em ouvir e em olhar o país pelas lentes dele. A relação entre os dois nasceu da densificação das conversas que foram mantendo sobre esses temas, sobretudo ao longo de 2023. E isso teve impacto na forma como Montenegro passou a liderar o partido e a apresentar‑se ao país. No núcleo duro do PSD, garante‑se que a influência exercida por Cavaco Silva sobre o líder social‑democrata foi importante para plantar em Montenegro a alma de missão, a importância de se levar a sério, de esquecer a ideia vã de perseguir a glória pessoal e deixar de encarar a política como um jogo.