Na primeira reunião como titular da pasta da Administração Pública, que deixou de ter um ministério próprio, Mariana Vieira da Silva ecoou a posição de intransigência que o Governo tem adotado no que toca ao aumento dos funcionários públicos: o Executivo não vai além dos 0,9% já em vigor desde janeiro, mesmo apesar dos apelos dos sindicatos da função pública para que fosse mais longe por causa da inflação.
Com as estruturas sindicais, Vieira da Silva tinha a lição estudada e coordenada com os colegas de Governo, que têm justificado a manutenção dos 0,9% com a inflação do ano passado — já Fernando Medina, o novo ministro das Finanças, tinha dito durante a apresentação da proposta de Orçamento do Estado, que era preciso conter a “espiral inflacionista”. A argumentação do Executivo tem sido a de que subir salários, para aumentar o poder de compra (ou até mantê-lo), contribui para a escalada da subida dos preços, que é preciso conter.
Essa linha foi a seguida por Mariana Vieira da Silva nas reuniões desta quarta-feira. “Agora o novo Governo vem dizer que 0,9% é uma atualização que mantém, e que tem como objetivo conter a inflação. Ou seja, é pedido aos trabalhadores públicos e, por arrastamento, aos restantes trabalhadores que da sua remuneração contenham um pouco a inflação”, resumiu aos jornalistas Helena Rodrigues, líder do Sindicato dos Quadros Técnicos do Estado (STE), a primeira estrutura a reunir com o Governo. Uma estratégia que considera errada e que levará à perda real dos rendimentos na ordem dos 3%, calcula.
Já José Abraão, da Federação dos Sindicatos da Administração Pública (FESAP), diz que saiu “triste” da reunião, lamentando o “culto do défice” e que a função pública vá voltar a perder poder de compra, no que considera ser uma “política de estagnação salarial”. E a Frente Comum admitiu mesmo avançar para “formas de luta”, se for essa a decisão do secretariado, que vai reunir este mês.
Mas a inflação não foi o único argumento usado para justificar a não atualização suplementar dos salários. Vieira da Silva apontou ainda as medidas em marcha para mitigar o aumento dos preços, nomeadamente no que toca aos preços dos combustíveis, e diz que há outras formas de subir salários, como através das progressões e das promoções que vão continuar em vigor. “Todos os passos que são dados têm de ser sustentáveis no tempo“, defendeu.
Uma ministra mais alinhada com o Governo e diferente de Alexandra Leitão
Dentro da reunião, várias fontes que há anos acompanham as negociações entre sindicatos e Governo dizem ao Observador que Mariana Vieira da Silva não desafinou do discurso do Executivo — aliás, repetiu a ideia de que iria cumprir o programa do Executivo. A perceção é de que a ministra não vai fincar o pé às vontades das Finanças e do próprio primeiro-ministro quando, e se, for hora de discordar.
Apesar de Vieira da Silva ser mais próxima de António Costa do que era Alexandra Leitão, a anterior ministra da Administração Pública, uma fonte sindical não tem a convicção de que a nova governante vá ter mais poder para influenciar decisões no que toca à função pública.“A senhora ministra referiu mais do que uma vez: ‘O senhor primeiro-ministro disse; o senhor ministro das Finanças disse‘”, aponta a mesma fonte.
Vieira da Silva, também à semelhança do que Fernando Medina já tinha feito, deixou cair o calendário de negociação de algumas matérias que, antes do chumbo do Orçamento, a então ministra Alexandra Leitão disse que seriam negociadas no início deste ano: como os salários de entrada dos técnicos superiores, a revisão da tabela remuneratória única e do sistema de avaliação dos funcionários públicos.
Mariana Vieira da Silva chutou sempre a negociação e eventual concretização dessas matérias para o horizonte da “legislatura de quatro anos e meio” — uma expressão repetida por diversas vezes ao longo da reunião. “O que nos foi referido foi que temos quatro anos e meio para rever outras questões”, disse Helena Rodrigues, à saída da reunião.
Uma fonte que participou numa das reuniões notou mesmo uma diferença de “abordagem” entre Vieira da Silva e a anterior ministra da Administração Pública — um novo estilo que, no seu entendimento, revela que a nova ministra estará mais alinhada com os colegas.
“São pessoas diferentes e têm abordagens distintas. A ministra Mariana Vieira da Silva tem uma função, que é cumprir aquilo que está no programa do Governo, cumprindo aquilo que são as determinações do senhor primeiro-ministro e do ministro das Finanças. Não era exatamente a mesma atitude de Alexandra Leitão, que conseguia discordar das propostas. Dizia-nos que nem sempre concordava, mas que era o que havia, que não tinham margem”, explica. Além disso, Mariana Vieira da Silva “diz exatamente que a mudança da administração pública para o ministério da Presidência tem a ver com esse acompanhamento da função pública”.
A mesma fonte considera que a função pública terá a forma de tratamento que teve até aqui: “O que me pareceu é que está muito na onda do que aconteceu com as situações anteriores: não há na administração pública um processo negocial”, acredita.
Uma outra fonte sindical também diz que Mariana Vieira da Silva passou a ideia de que, com a mudança para o Ministério da Presidência da pasta da função pública, os trabalhadores do Estado terão “centralidade” na estratégia do Governo. Mas ficou convencida que a postura de negociação vai ser diferente: “Chegou a dizer que quer fazer mais negociações do que fazer reuniões por reuniões, que o que vamos ter são negociações, não reuniões. Vamos ver se assim é”.
A ideia que Vieira da Silva passou foi a de que poderá haver mais diálogo e que os sindicatos vão saber melhor o que o Governo diz e quer, para que não sejam apanhados de surpresa por anúncios que não lhes foram diretamente comunicados, como no passado. “Mantenho sérias expectativas de que nos vamos encontrar mais vezes para tratar diferentes matérias, muitas vezes com ela [a ministra], outras vezes só com a secretária de Estado” (já no anterior Governo era comum as negociações acontecerem só com os secretários de Estado).
Calendários adiados
Os sindicatos queriam ter visto alguma negociação nas reuniões desta quarta-feira, em vésperas da votação do Orçamento do Estado (a 27 de maio), mas os encontros serviram mais para uma apresentação do Governo e dos objetivos do Executivo. E os calendários de uma série de compromissos que tinham ficado da governação de Alexandra Leitão acabaram por cair.
No caso dos técnicos superiores, por exemplo, o que ficou definido antes do chumbo do Orçamento de outubro, foi que os salários de entrada aumentariam 50 euros até 2023, mas Medina, na apresentação do OE, já tinha deixado cair esse calendário: afinal, disse, já não há data.
“Peço-lhe que compreenda. Uma agenda, um programa de Governo de quatro anos não consegue ser todo colocado num Orçamento, nem sequer para um ano. É um Orçamento para meio ano, teremos o desenvolvimento dessa e de outras matérias ao longo da legislatura”, afirmou Medina, na altura.
Quando é que essas matérias vão começar a ser discutidas? O Governo quer iniciar as reuniões assim que o Orçamento do Estado for aprovado, mas não se compromete com prazos para a entrada em vigor de eventuais alterações — aliás, o calendário da discussão só será entregue na próxima reunião. O único compromisso foi avançar em 2023 com “atualizações salariais anuais”, só que também não garantiu que tais aumentos estejam em linha com a inflação prevista para o final deste ano (na proposta de OE, o Executivo prevê um índice harmonizado de preços no consumidor de 4% e um índice de preços no consumidor de 3,7%).
O valor final terá em conta “diferentes fatores”: além da inflação, são eles a situação internacional que se viver, a situação económica e financeira do país, as “perspetivas de instituições internacionais” e a “avaliação que for feita da natureza desta inflação” — que pelo menos para já o Governo acredita ser temporária.
Vieira da Silva elegeu “quatro prioridades” nas matérias a ser discutidas: simplificação do recrutamento no Estado, a revisão do sistema de avaliação e da tabela remuneratória única e os aumentos dos técnicos superiores. A esperança da FESAP é que as matérias ainda entrem em vigor este ano, mas o Executivo não se comprometeu.
Para os sindicatos uma das prioridades é a revisão do sistema de avaliação da função pública que consideram “injusto” e que “não contempla o mérito”, nas palavras de José Abraão. Esse já tinha sido um dos compromissos da então ministra Alexandra Leitão, que chegou a reconhecer que os funcionários públicos demoravam demasiado tempo (dez anos, na maioria dos casos) a progredir na carreira. E que era tempo de se pensar numa avaliação “mais virada para os resultados e menos para a permanência no local de trabalho”.
Na tabela remuneratória única, a TRU, também querem mexidas, uma vez que esta viu o aumento do salário mínimo absorver as primeiras posições remuneratórias. A FESAP quer que se corrija a “desigualdade gritante”, que faz com que haja trabalhadores a ganhar o salário mínimo há anos e que recebem o mesmo de alguém que comece agora a trabalhar na mesma profissão e ganhe essa remuneração. Neste âmbito, exigem ainda discutir a subida do salário de entrada dos assistentes técnicos, que está apenas pouco mais de quatro euros acima do salário de entrada dos assistentes operacionais.
Os descontos para a ADSE, o subsistema de saúde dos funcionários públicos, atualmente nos 3,5% são também matéria que os sindicatos colocam em cima da mesa. A FESAP diz que é favorável a uma redução, mas desde que salvaguarde a “sustentabilidade” do subsistema e se os “organismos públicos e autarquias” contribuírem para suprir essa redução. O STE também queria ver este valor reduzido para 2,25% e que “em vez de 14 retenções” sejam feitas apenas 12. E na mesa das negociações, garantem, estará também a atualização para seis euros do subsídio de refeição, que está em 4,77 euros por dia.
“Deixámos claro quais as quatro primeiras prioridades, definidas no relatório do Orçamento do Estado e é aqui que começaremos as negociações que queremos para quatro anos e meio”, disse Mariana Vieira da Silva quando questionada sobre a possibilidade do subsídio de refeição poder ser uma compensação pela inflação, reiterando que esse é um tema para a legislatura que, tal como António Costa garantiu na apresentação do programa do Governo, é para ir até ao fim.