O primeiro inscrito chama-se Abdul, o último Vítor. No Centro Comercial da Mouraria, um dos locais em Lisboa onde este domingo se vota para as primárias socialistas, há três mesas de voto organizadas alfabeticamente. E há quem suspire, à saída, depois de deixar o boletim de voto na urna: “Ai que democrático que isto é”. O sentimento é novo, daí que cause estranheza mesmo ao fim de 40 anos democracia. É a primeira vez que um partido político organiza eleições primárias abertas à sociedade para escolher o candidato a primeiro-ministro e, entre simpatizantes de António Costa e simpatizantes de António José Seguro, há uma coisa une os vários eleitores: “esta não é uma eleição para o partido, é uma eleição para o país”.
“O país está de rastos, está na miséria, conseguiram pôr isto numa situação desastrosa e agora tem de haver uma mudança”, diz Manuel Pereira, lisboeta de gema que vive em Alfama. “Não sabemos se para melhor ou para pior, mas temos de tentar que haja uma mudança”, diz o simpatizante que está com António Costa mas que acredita que, depois de hoje, o partido vai unir-se para derrotar o candidato do PSD nas próximas eleições. “O partido depois vota todo da mesma maneira porque são todos da mesma família. Por agora há uma abertura – eu gosto mais deste, outros gostam mais daquele – mas depois estou convencido de que as coisas voltam ao sítio”, diz, confiante.
“Faz muita falta ao país um PS forte e unido”, lamenta uma outra simpatizante socialista que foi à Mouraria deixar o seu contributo para resolver “o problema do país”. De braço dado com uma amiga, Maria Antónia da Silva, reformada que viu a sua pensão ser reduzida em 50% de há três anos para cá, inscreveu-se nas primárias socialistas para “dar força a um dos candidatos que acredito que vai fazer a diferença no confronto com Passos Coelho”. Ambas têm confiança na união do Partido Socialista depois desta guerra aberta, mas quanto ao futuro do país… “há um grande ponto de interrogação”.
E aproveitam a ocasião para disparar na direção do primeiro-ministro e do Presidente da República. “A pior coisa que aconteceu a Portugal foi Cavaco Silva ter sido primeiro-ministro e ter estado lá 12 anos”, diz prontamente Maria Antónia, que acrescenta que, “enquanto Presidente, tem sido um zero à esquerda” – aliás, “pior, um zero à esquerda que desequilibra tudo e atira o país para a miséria”. E lembra “os BPNs, os BES, tudo”.
Para esta simpatizante, que diz ter ido votar para “dar força” ao socialista que terá melhores hipóteses de derrotar a direita, Passos Coelho é o alvo a abater: “foi o pior primeiro-ministro que tivemos e o Presidente da República tem estado de conluio com ele”. “Correram com o governo do PS por causa do PEC IV e agora estamos a pagar o PEC V, o PEC VI e o PEC VII”, atira a pensionista.
Há quem não se tenha inscrito, mas vá para votar
No Centro Comercial da Mouraria, que, localizado em plena praça do Martim Moniz, é um dos locais mais emblemáticos da multiculturalidade lisboeta, há três mesas de voto organizadas alfabeticamente. A primeira, curiosamente, começa no Abdul, a última termina no Vítor. No total, são 2.421 os eleitores inscritos naquela secção, entre militantes e simpatizantes.
As urnas abriram às 9h e, só na primeira hora, foram votar 150 pessoas, garante Pedro Assunção, coordenador daquela secção socialista que vota na Mouraria. Inscritos estão 2.421 mas, apesar do otimismo e da notória afluência às urnas nas primeiras horas da manhã, Pedro Assunção não acredita que vão todos: “era bom, mas não acredito”. “De qualquer forma, estamos preparados para receber as 2.421 pessoas, por isso é que resolvemos montar as urnas aqui”, no átrio daquele centro comercial.
Lá dentro, faz-se fila e não há momento em que as mesas de voto estejam vazias. Lá fora, é ver chegar pessoas de todas as idades, famílias inteiras, um grupo de vizinhas de Alfama, ou homens e mulheres que foram sozinhos exercer o seu direito de voto. Já vão com o comprovativo de inscrição e o bilhete de identidade na mão. “Até aos militantes estão a pedir o cartão do cidadão”, comenta um militante socialista para o coordenador da secção – “É normal, é muita gente, assim é mais fácil”. Não faz mal, diz o outro, “também não custa nada”. O importante é que a eleição corra bem.
Naquelas primeiras horas, pelo menos, tudo estava a correr dentro da normalidade naquela secção no coração de Lisboa. Ou quase. “Há pessoas que chegam aqui a pensar que são umas eleições normais e vêm para votar sem se terem inscrito atempadamente”, diz Pedro Assunção, explicando que “estas eleições foram uma coisa suis generis que ainda faz muita confusão a algumas pessoas”. “Sabem em quem querem votar, vêm aqui para isso, mas acham que não era preciso mais nada”. Foram cerca de 30 pessoas as que tiveram de voltar para trás.
Noutros casos – “apenas dois ou três” até à hora de almoço -, houve os chamados “votos condicionados”, que surgem nos casos em que o nome dos eleitores não consta nos cadernos eleitorais. Nesses casos, explica o coordenador da secção, agrafa-se o comprovativo de inscrição ao boletim de voto e envia-se para a Comissão Eleitoral para confirmar a inscrição.
“Se ganhar António Costa, voto Passos Coelho”
Maria Fernanda da Silva é a exceção. Militante socialista há “muitos anos”, a pagar “um eurozinho todos os meses”, sai da mesa de voto a clamar para quem a quiser ouvir: “Eu estou pelo Seguro, mas não estou muito segura”.
“Nunca se viu nada assim”, continua a septuagenária que se apressa a apontar o dedo aos “barões do PS”, que diz terem sido os responsáveis por esta fenda que se abriu no Partido Socialista nos últimos meses. “Estou muito irritada e chateada, se o ‘Toninho’ [neste caso António Costa] se queria candidatar, candidatava-se antes, mas como tinha o tacho da Câmara quis aproveitar o tacho até agora”, diz a senhora que nasceu no tempo da ditadura e “sempre foi a mais revoltada da família”.
Entre apoiantes de um António e de outro, continuam a chegar ao centro comercial da Mouraria eleitores de várias idades e classes sociais. Mais simpatizantes do que militantes, seguramente. Alguns chegam aos pares, ou em família, como o fazem em qualquer outra eleição.
A família Catarino e a família Mateus são exemplo disso. Os primeiros, pai, mãe e filha, foram da Graça à Mouraria com um objetivo claro, que lhe está na ponta da língua: “para António Costa ganhar”. É a filha, Raquel, acabada de atingir a maioridade, que fala em nome da família. Mas diz que não influenciou ninguém, nem foram os pais que a influenciaram a ela. “Fui eu mesma que quis vir, porque acho que o Costa é melhor do que o Seguro para derrotar Passos Coelho”.
Pedro e Tânia Mateus, um casal jovem com dois filhos pequenos, também não quiseram deixar passar a ocasião em branco. “Participar é um dever de cidadania”, atira Tânia, para quem não basta “dizer mal”, é preciso “responsabilizarmo-nos pela mudança”. Os dois concordam na necessidade de haver uma “mudança” e por isso dizem ter-se inscrito nas primárias “pelo país, e não por questões partidárias”. “Temos o país hipotecado para o futuro, por isso temos de encontrar uma alternativa que faça a diferença em 2015”, remata Pedro Mateus.
Só há uma questão em que discordam: as primárias são ou não são um bom método eleitoral? Se Tânia é pronta no “sim”, Pedro deixa mais reticências. “Nesta altura acho que as primárias vieram trazer muito ruído em relação à campanha que é realmente importante, que é a campanha para as legislativas”. “Mas foi o método que sobrou e por isso aderimos na mesma”.