Nota: Artigo originalmente publicado a 18 de fevereiro de 2016, atualizado a 15 de abril com declarações do Governo e do Bloco de Esquerda.
O Bloco de Esquerda pediu a destituição de Carlos Costa no Parlamento depois de o próprio Governo ter admitido que houve “falha de informação grave” na limitação de financiamento do Banif junto do Banco Central Europeu. O cerco político ao governador está a fechar-se e assiste-se a uma escalada sem precedentes no discurso de um Governo e dos partidos que o apoiam no Parlamento contra o Banco de Portugal.
No Parlamento, Catarina Martins foi direta ao assunto: “É uma falha grave, deve ser destituído”. Mas até o primeiro-ministro, António Costa, já reconheceu que a demissão do governador não “é uma questão que esteja na ordem do dia”. E acrescentou: “O Banco de Portugal goza de independência e o governador goza de estatuto próprio, portanto não faz sentido colocarem-me essa pergunta”.
Mas afinal, pode ou não António Costa tirar Carlos Costa do cargo? A lei orgânica do Banco de Portugal diz que os membros do conselho de administração são “inamovíveis, só podendo ser exonerados dos seus cargos caso se verifique alguma das circunstâncias previstas” nos estatutos do Banco Central Europeu e do sistema europeu de bancos centrais. A versão portuguesa deste documento diz que “um governador só pode ser demitido das suas funções se deixar de preencher os requisitos necessários ao exercício das mesmas ou se tiver cometido falta grave”.
A versão inglesa é um pouco mais específica no motivo para esta espécie de despedimento por justa causa. O governador pode ser afastado se for considerado culpado por uma falha séria de conduta, o que remeterá mais para atos de natureza pessoal e não propriamente para decisões de supervisão, e são estas que estão em causa nos ataques a Carlos Costa.
A ausência dos “requisitos necessários” ao exercício das funções seria uma via possível, dentro da margem muito apertada para afastar o responsável máximo do Banco de Portugal. Embora ninguém saiba muito bem o que cabe neste critério subjetivo.
Mas ainda que o Governo propusesse a demissão, com base numa das duas razões possíveis, o governador em causa ou o conselho de governadores do Banco Central Europeu podem interpor recurso da decisão da demissão para o Tribunal de Justiça, com fundamento em violação dos tratados ou de qualquer norma jurídica relativa à sua aplicação.
Em caso de proposta de destituição, dificilmente o BCE ou o próprio governador deixariam de recorrer contra o que seria visto como uma interferência política inaceitável perante o estatuto de independência de um banco central do euro de um supervisor da união bancária. Além de que, dificilmente, um governo tomaria uma decisão tão radical, até porque não estaria interessado em fragilizar demasiado o Banco de Portugal e o seu papel no setor financeiro.
A lei diz que o exercício de funções dos membros da administração “cessa ainda por termo do mandato, por incapacidade permanente, por renúncia ou por incompatibilidade”. Se, na prática, não é possível demitir o governador, só há uma alternativa: provocar um pedido de demissão.
Perante as restrições à demissão do governador do Banco de Portugal, a estratégia do Governo e do PS parece ser a de apostar no desgaste e na pressão para que Carlos Costa saia por sua iniciativa. Os ataques públicos e pedidos de demissão, bem como a revelação de informação negativa, além de uma comissão parlamentar de inquérito que é um local privilegiado para fugas de informação comprometedoras, podem abrir esse caminho.
E não é por acaso que a comissão de inquérito ao Banif tem sido o campo de batalha para os ataques mais certeiros à atuação do supervisor. A começar na insistência da divulgação da autoavaliação que o Banco de Portugal ao seu desempenho no caso BES, um documento de 600 páginas que tem estado guardado a sete chaves.
A última polémica rebentou esta quarta-feira com a divulgação de uma ata truncada do conselho de governadores do BCE que decidiu a suspensão do estatuto de contraparte do Banif, se o o banco não fosse vendido ou resolvido. Apesar do que está escondido, é possível ler que foi o Banco de Portugal a propor a limitação no acesso do banco ao financiamento regular do eurosistema. Um dado que não terá sido comunicada ao governo, provocando a reação violenta do secretário de Estado do Tesouro, que em declarações ao Público, acusou o Banco de Portugal de “falhas graves de informação”.
O Banco de Portugal já esclareceu a questão, mas quase todos os grupos parlamentares exigem nova audição urgente do governador na comissão de inquérito ao Banif.
Mas quem conhece Carlos Costa afasta uma saída por empurrão. O governador até poderia demitir-se, numa solução de comum acordo, mas muito dificilmente sairá sob este tipo de pressão. De acordo com testemunhos recolhidos pelo Observador, Carlos Costa acredita que tem uma missão no Banco de Portugal que ainda não está terminada e foi por esta razão que aceitou a recondução, contra críticas e reservas que terão vindo até da anterior ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque. O governador tenciona levar o mandato até ao fim, até porque, se saísse no meio da “tempestade”, deixaria o Banco de Portugal e as decisões polémicas que tomou ainda mais vulneráveis.
Por outro lado, um governador, ainda que mal visto pelo poder político, tem um poder que ultrapassa, por exemplo, aquele que é detido pelo presidente de uma grande empresa. Uma das últimas alterações aos estatutos do Banco de Portugal, aquando da recondução, dá a Carlos Costa o poder para propor os administradores, ainda que a última palavra pertença a um governo que lhe é hostil. Foi o governo de Pedro Passos Coelho que lhe deu essa prerrogativa, mas já depois de ter indicado os nomes de António Varela e Hélder Rosalino em 2014. Há vários membros do conselho que terminam o mandato este ano, incluindo dois vice-governadores.
Esta semana foram conhecidos dois nomes para o Banco de Portugal, a eurodeputada socialista, Elisa Ferreira, e o presidente do BES, Máximo dos Santos. Só que esta escolha, pelo menos no que toca à divulgação, não parece ter sido uma iniciativa do governador. Carlos Costa não confirmou os nomes, lembrando que lhe cabe a si propor os novos membros do conselho.
A má relação de Carlos Costa com a atual direção do PS não é história nova. Foram António Costa e os seus mais próximos quem mais criticou a atuação do Banco de Portugal num todo e do governador por si só. Primeiro-ministro e governador do Banco de Portugal não morrem de simpatia um pelo outro, e esta situação não será alheia à opinião dos socialistas de que o governador aparou vários golpes do Executivo de Pedro Passos Coelho (e vice-versa) durante os quatro anos em que esteve em vigor o programa de ajustamento da troika.
Mas o caldo começou verdadeiramente a entornar com a comissão parlamentar de inquérito ao BES. Pedro Nuno Santos, agora secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, era o coordenador dos socialistas nessa comissão e, durante todo o processo, responsabilizou o Banco de Portugal por não ter agido mais cedo. Águas que passaram para o relatório final da Comissão de Inquérito.
Mas não sem que antes os socialistas tentassem dificultar a recondução de Carlos Costa à frente do Banco de Portugal. Os dias corriam rápido e, em abril de 2015, o destino de Carlos Costa era decidido pelo Governo de Passos Coelho. O PS, com um líder recém-eleito em primárias (António Costa foi eleito em setembro, mas o congresso só aconteceu em novembro), aprovava, numas jornadas parlamentares, em março de 2015, uma iniciativa legislativa que passava por alterar a forma de nomeação do governador. Os socialistas queriam dar mais força ao Parlamento e ao Presidente da República na hora da nomeação. Além de que insistiam na necessidade de se deixar a escolha para o futuro Governo.
Depois de algumas negociações, o projeto socialista acabou por ficar a meio caminho da forma final, apenas implicando uma audição prévia, sem possibilidade de veto, do nomeado para governador no Parlamento. Pouco tempo depois, Maria Luís Albuquerque, então ministra das Finanças, reconduziu Carlos Costa. A decisão foi criticada pela esquerda parlamentar, sobretudo numa altura em que o governador e o Banco de Portugal ainda estava debaixo do fogo da comissão de inquérito do BES.
Seguiu-se a questão do “ataque” público do governo PS contra o governador do Banco de Portugal, na sequência da decisão de transferir a dívida sénior do Novo Banco para o “banco mau”, isto é, o BES. A decisão, que incendiou os ânimos dos grandes fundos de investimento, começou por ser criticada, mais ou menos em privado, pelo secretário de Estado do Tesouro e Finanças, Ricardo Mourinho Félix.
Num encontro com representantes de investidores internacionais, em Londres, Mourinho Félix confessou a preocupação do governo com o impacto desta transferência de dívida, que terá sido comunicada antecipadamente ao Banco de Portugal, sem resultados aparentes, já que a transferência de 2.000 milhões de euros de responsabilidades financeiras para o BES aconteceu mesmo.
Esta divergência com o Banco de Portugal foi confirmada por Mário Centeno, ministro das Finanças, e até foi sublinhada pelo primeiro-ministro. António Costa, num debate quinzenal na Assembleia da República, assumiu que a solução encontrada tinha sido “um péssimo contributo” para a confiança dos investidores em Portugal:
“Qualquer credor ou investidor que ouviu em agosto de 2014 o Banco e Portugal e o Governo definirem um perímetro de confiança e de sacrifício, ficou então a confiar que estaria a salvo. Esse credor ou investidor nunca pensaria que, dois anos depois, as contas estariam em revisão e que aquilo que julgava estar protegido afinal não estava e que era de novo chamado ao sacrifício. Se acha que isso foi um bom contributo para a confiança, pois está enganado, porque foi um péssimo contributo”.
As palavras do primeiro-ministro fizeram eco na campanha presidencial, que então estava a decorrer. O que queria António Costa dizer? Com aquelas palavras, retirava a confiança política ao governador? António Costa tinha considerado “péssima” a decisão do Banco de Portugal. E viu Marcelo Rebelo de Sousa apoiá-lo e dar a entender que, se o primeiro-ministro optasse por querer afastar Carlos Costa, teria a sua bênção.
Durante a campanha presidencial, questionado sobre o relacionamento entre governo e Banco de Portugal, por causa das críticas do Executivo à solução de separação das obrigações do BES, Marcelo disse que secundaria o Governo nas suas decisões.
“Já tive ocasião de dizer que o governo tem um papel fundamental na estabilização do sistema financeiro e, portanto, que compete ao governo ir acompanhando muito de perto o que se passa no Banco de Portugal neste processo, como noutros processos. E aquilo que o governo entender que deve ser feito, nessa estabilidade do sistema financeiro, se for eleito, daqui a poucos dias, não deixarei de secundar aquilo que o governo considerar fundamental fazer”, disse aos jornalistas.
A resposta manteve-se quando, em causa, estava mesmo a intervenção do Presidente na relação entre governo e o governador e, até, da sua possível substituição: “O governo tem poderes legais nessa matéria. Se o governo entende dever intervir para salvaguardar a estabilidade do sistema financeiro, saberá, e se a questão se colocar, se é uma matéria com a qual terá de falar com o primeiro-ministro e saber o que fazer”, respondeu.
O governo já defendeu publicamente a necessidade de mudar o sistema de supervisão financeira, que retirasse os poderes de resolução de bancos ao Banco de Portugal.
Mas o primeiro-ministro foi mais longe nas acusações ao Banco de Portugal esta semana. Mais uma vez sobre o tema BES/Novo Banco, mas desta feita focado na maior polémica que envolveu a resolução do Banco Espírito Santo, o papel comercial. António Costa transferiu para a praça pública a pressão sobre Carlos Costa e o Banco de Portugal. Mas, nas duas ocasiões em que falou, o primeiro-ministro evitou mencionar a saída do governador. A culpa é apontada à instituição no geral, e não apenas a Carlos Costa, apesar de nos corredores socialistas não se pretender outra coisa.
António Costa lamentou “a forma como o Banco de Portugal tem vindo a arrastar uma decisão” e acusou a administração de Carlos Costa de estar a atrasar a concretização da solução encontrada pelo Governo para os lesados do papel comercial. Em causa estão aplicações na ordem de 500 milhões de euros feitas em dívida de empresas do Grupo Espírito Santo (GES) por clientes particulares aos balcões do BES.
Estas aplicações chegaram a estar “garantidas” por uma provisão constituída no acionista do banco, a Espírito Santo Financial Group, mas, com a resolução aplicada ao BES, o Banco de Portugal decidiu passar a responsabilidade para o “banco mau”, que não tem recursos para pagar aqueles compromissos. Várias soluções propostas, inclusivamente pela Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), têm esbarrado na oposição do Banco de Portugal, que impede qualquer solução que afete a situação líquida do Novo Banco e prejudique o processo de venda da instituição.
“Tenho que lamentar a forma como a administração do Banco de Portugal tem vindo a arrastar uma decisão sobre esta matéria, a impedir que rapidamente a solução proposta pelo governo, e aceite pela maioria dos lesados do BES, pudesse estar já implementada”, acusou António Costa.
A distinção positiva feita em relação à CMVM não terá passado ao lado do governador, que tem mantido uma divergência pública com Carlos Tavares, presidente do regulador do mercado de capitais, sobre a solução para os lesados do BES. O primeiro-ministro sublinhou de forma positiva a atitude da CMVM, “que desde a primeira hora aderiu à proposta do Governo e se tem empenhado na sua rápida concretização, bem como uma atitude positiva também por parte do BES e até por parte da administração do Novo Banco, que, sendo um banco de transição, está naturalmente dependente da autorização do Banco de Portugal”.
Um dia depois daquela frase, o Banco de Portugal informou, num lacónico comentário, que foi aceite e marcada, a seu pedido, uma reunião com a CMVM (Comissão de Mercado de Valores Mobiliários) e o representante do governo, para esta semana, sobre o tema do papel comercial. O supervisor tinha recusado, até agora, participar nas negociações em que estivessem presentes os representantes dos clientes “lesados”.
Quando questionado sobre se pretendia a demissão de Carlos Costa, o primeiro-ministro disse, esta quinta-feira, em Bruxelas: não é “uma questão que esteja na ordem do dia”. E acrescentou que “o Banco de Portugal goza de independência e o governador goza de estatuto próprio, portanto não faz sentido colocarem-me essa pergunta”.
No PS, as palavras até foram uma pressão com pinças. Numa conversa com um grupo de jornalistas, o líder do grupo parlamentar socialista, Carlos César, assumiu que tem havido uma “lentidão excessiva” do Banco de Portugal a resolver os problemas dos lesados do BES. Mas foi mais longe.
“Há uma realidade com que os portugueses vivem que é de alguma falta de confiança ou pelo menos uma avaliação frágil, quer dos depositantes quer dos utilizadores do sistema bancário em relação ao regulador e ao Banco de Portugal. É bom dizê-lo que essa fragilidade que tem sido detetada na ação do Banco de Portugal não tem sido minorada, pelo contrário tem sido agravada”, disse.
Carlos César também falou da administração do Banco de Portugal e da instituição e não isoladamente de Carlos Costa, por si só. Mas defendeu uma “regeneração” da instituição. Ora, essa “regeneração” só poderá ser feita através da substituição de administradores, com Carlos Costa no topo da lista de “remodeláveis” dos socialistas. Contudo, o deputado acabou por afirmar que esta não é a altura para “mudanças muito radicais”.
Se o caso BES/Novo Banco tem sido o pretexto para um ataque público, sem paralelo, contra o Banco de Portugal, protagonizado por membros do governo e pelo partido que o suporta, a questão de fundo poderá estar na resposta encontrada para outra crise bancária, a do Banif. Não será coincidência que a escalada anti-Banco de Portugal coincida com o arranque da comissão de inquérito à resolução daquela instituição financeira.
Ao contrário daquilo que sucedeu no “caso BES”, em que era fácil apontar o dedo a um culpado evidente, o antigo presidente do banco e do grupo, Ricardo Salgado, no caso Banif as responsabilidade são mais difusas. A começar pelo modelo de resolução imposto, cuja paternidade ninguém quer reclamar.
O atirar de culpas começou logo entre as autoridades portuguesas, do governo para o Banco de Portugal e vice-versa, e entre as autoridades portuguesas e as europeias, em particular a DG Comp (direção geral da concorrência europeia), mas envolvendo, também, o Banco Central Europeu. Este círculo vai aquecer com o início das audições da comissão de inquérito, que promete ser a mais política das cinco que até agora escrutinaram o setor e, em particular, a supervisão bancária, a propósito dos casos que envolveram o BCP, a nacionalização do BPN, a gestão pública e a privatização do BPN, e o “caso BES”.
O Banco de Portugal será um alvo incontornável na guerrilha política que visa fazer a distribuição de culpas. Desta vez, ao contrário daquilo que aconteceu nas comissões de inquérito ao BPN e ao BES, em que a posição dos governadores — Vítor Constâncio e Carlos Costa — estava relativamente suportada pelos governos que os tinham nomeado ou reconduzido, Carlos Costa enfrenta a hostilidade do Executivo. Aliás, Passos Coelho teve de intervir nas primeiras audições do inquérito ao BES para travar o tom acusatório dos deputados do seu partido perante o desconforto do governador que, apesar de ter sido escolhido por José Sócrates, foi um aliado e, até, conselheiro do primeiro-ministro da coligação PSD/CDS na aplicação do programa da troika, o que gerou desconfiança na orla socialista.
Carlos Costa foi reconduzido para cumprir um segundo mandato à frente do Banco de Portugal na fase final da legislatura anterior, contra a posição do Partido Socialista, que propôs uma alteração às regras de nomeação do governador, cuja responsabilidade passaria para o Presidente da República, ainda que a primeira figura do Estado seja, atualmente, informada previamente do nome proposto. A coligação chumbou a pretensão, mas submeteu o governador escolhido pelo governo a uma audição no Parlamento.
Os socialistas nunca digeriram a recondução de Carlos Costa, perigosamente perto das eleições, para um mandato de cinco anos do qual será muito difícil de remover. Os casos mal resolvidos do BES/Novo Banco, onde se incluirá a nova tentativa de venda da instituição, e o Banif, servem, assim, de terreno para uma espécie de “caça ao governador”.
Prova disso é o requerimento apresentado pelo Bloco de Esquerda, e que deverá ser apoiado pelos socialistas, segundo escreveu o Diário Económico, para que seja entregue a auditoria independente conduzida por uma comissão do próprio supervisor, com o apoio da Boston Consulting Group, à atuação do Banco de Portugal no processo que envolveu o Banco Espírito Santo.
O documento, que terá conclusões negativas sobre a atuação do Banco de Portugal, foi pedido pelo Parlamento na sequência do inquérito ao BES, mas o supervisor recusou, invocando razões de confidencialidade, segredo de supervisão e independência.
O parecer que justifica a recusa diz, ainda, preto no branco, que o “Banco de Portugal não é politicamente responsável perante a Assembleia da República”. Num documento apoiado dos serviços jurídicos, o banco central defende que o supervisor se deve sujeitar a mecanismos de accountability (prestação de contas) perante órgãos de soberania, mas apenas “até ao ponto em que tais mecanismos se mostrem compatíveis com a sua independência”.
Considera, ainda, que o segredo de supervisão não pode ser posto em causa pela obrigação genérica de prestar informação ao Parlamento, porque não é um segredo administrativo, mas constitui “um segredo sobre factos de terceiros confiados a uma entidade pública”. O Banco de Portugal divulgou, apenas, as recomendações que resultaram desta auditoria interna, como a necessidade de maior rapidez na atuação e menor receio de conflitos com os supervisionados, duas das lições do “caso BES”.
Não. Com governos de diferentes cores, Vítor Constâncio pode testemunhar que, já com Portugal integrado no euro e o banco central protegido por um estatuto de independência, as pressões e as críticas nunca deixaram de ter expressão pública, incluindo as vozes que pediram a demissão do líder do banco central.
Em 2002, após a vitória nas eleições legislativas, o PSD formou Governo em coligação com o CDS. Num Executivo liderado por José Manuel Durão Barroso, e com o tema das finanças públicas no centro da discussão política, Manuela Ferreira Leite, ministra das Finanças, pediu ao Banco de Portugal e ao Instituto Nacional de Estatística uma revisão das contas das administrações públicas de exercícios anteriores. Objetivo: conhecer a situação real dos desequilíbrios.
Na época, o anterior Governo dirigido por António Guterres tinha comunicado a Bruxelas um défice público inferior à meta de 3% do produto interno bruto (PIB) exigida pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento. E até Pedro Solbes, na altura comissário europeu para os Assuntos Económicos, tinha confirmado que o desequilíbrio das contas públicas portuguesas se tinha fixado em 2,75%.
Porém, os cálculos efetuados pelo Banco de Portugal conduziram a outro resultado. De acordo com as duas metodologias usadas, o saldo negativo das administrações públicas teria ficado, afinal, em 3,4% ou em 4,1% do PIB, o que levou a Comissão Europeia a iniciar um procedimento por défices excessivos. Antigo secretário-geral do PS, Vítor Constâncio foi alvo do desconforto dos socialistas, que se viram confrontados com números que davam conta do fracasso no controlo do Orçamento do Estado e de uma situação embaraçosa na relação de confiança entre Lisboa e Bruxelas.
Três anos mais tarde, Constâncio e o Banco de Portugal viram-se mergulhados em nova batalha política. No início do primeiro mandato como primeiro-ministro, José Sócrates também recorreu à instituição para avaliar o estado das finanças públicas, tal como tinha sido deixado pelo Governo de Pedro Santana Lopes, que o antecedeu no cargo. Desta vez, foi pedido ao atual vice-presidente do Banco Central Europeu que fizesse um exercício sobre o futuro. O Banco de Portugal aceitou a tarefa e, numa “estimativa do défice previsível”, concluiu que o desequilíbrio de 2005 ficaria em 6,8%, contra uma previsão de 4,3% inscrita no Orçamento do Estado para aquele ano. Desta vez, a irritação instalou-se entre a coligação PSD/CDS que tinha acabado de ser apeada do Governo.
E há, também, o caso BPN, tema que proporcionou a Vítor Constâncio críticas sobre o desempenho do Banco de Portugal, enquanto órgão de supervisão, no descalabro do banco. Há pouco mais de dois anos, o antigo governador do Banco de Portugal e o ex-presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, ainda trocavam acusações a pretexto do assunto. No caso, a propósito de declarações de Durão Barroso que alegou, publicamente, ter pedido, enquanto primeiro-ministro, informação a Constâncio sobre o que se passava no banco que acabou por ser nacionalizado por José Sócrates.
Há. Regra geral, têm a ver com conflitos sobre a condução da política monetária. Perante dificuldades na economia e a falta de capacidade, ou de possibilidade, para tomarem decisões de outra natureza, os políticos preferem pressionar os bancos centrais independentes para adotarem medidas expansionistas. Mas há outros casos, como aquele que foi revelado depois de a Grécia e os credores oficiais terem assinado os termos do terceiro resgate do país.
Vários membros do Syriza, liderados pelo ex-ministro da Energia, Panayotos Lafazanis, reuniram-se em Atenas a 14 de julho de 2015, poucas horas depois do acordo assinado por Alexis Tsipras, primeiro-ministro da Grécia. Em conjunto, desenharam um plano para tirar a Grécia da zona euro que passava por colocar o governador do banco central, Yannis Stournaras, atrás das grades e pedir ajuda a Moscovo. A decisão extrema seria concretizada no caso de o responsável pela instituição se opor a uma tomada de controlo do banco central grego e aos planos dos elementos mais radicais do partido que lidera o poder em Atenas.
Mas há outros episódios. Por exemplo, em meados de junho de 2014, o banco central da Polónia garantiu que uma gravação divulgada pela imprensa contendo alegadas declarações de Marek Belka, governador da instituição, eram falsas. O que havia nas afirmações que tivesse caráter controverso? Belka teria garantido, num jantar privado com Bartłomiej Sienkiewicz, na altura ministro do Interior, que estaria disponível para ajudar o Executivo a superar as dificuldades económicas em véspera de eleições legislativas, caso o ministro das Finanças fosse demitido.
Diversos políticos pediram a “cabeça” de Marek Belka, com base na alegação de que teria cometido uma falta grave ao colocar em causa a independência do banco central perante o governo. Belka argumentou que as afirmações teriam sido retiradas do contexto da conversa, que terá incidido sobre a “falta de colaboração” do ministro das Finanças, Jacek Rostowski, e pediu desculpa pela linguagem utilizada ao referir-se a colegas, que incluiu palavrões. Rostowski saiu do governo em novembro de 2014, na sequência de uma remodelação. Marek Belka teve mais sorte. Mantém-se à frente do Banco Nacional da Polónia.