Maria ocupa uma das oito camas que existem em cada um dos vários blocos montados no Arena Portimão, aberto há duas semanas para acolher doentes com Covid-19. O vírus não a afetou tanto quanto a outros e, na sua cabeça, já só falta o dia em que lhe vão dizer que está livre da doença e que pode regressar à casa onde vive com a filha. Mas nos seus registos médicos há outra indicação: esta idosa já pode ter alta, mas a filha, única familiar próxima e a sua cuidadora há anos, morreu de Covid-19 e não vai estar em casa para a receber. É preciso encontrar uma solução e, depois, comunicar tudo isto a Maria.
O caso não é único entre os 46 doentes que, na sexta-feira, estavam internados no hospital campanha de Portimão, vindos de vários pontos do país. “Temos aqui casos que já têm critérios de cura, mas não temos a parte social para eles poderem ir”, explica ao Observador Ana Castro, presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA), a partir de uma sala de reuniões localizada antes da entrada da zona onde estão internados os doentes Covid-19 — que ora já estiveram internados em hospitais e apresentam melhorias, ora o seu estado de saúde não exige outros cuidados médicos. O doente mais novo aqui internado tem 48 anos.
Atrás de Ana Castro está um placard na parede e um mapa da região do Algarve onde vai colocando os números de entradas e de altas hospitalares para perceber quantos doentes pode receber. Hoje há 54 vagas, porque a capacidade da enfermaria foi aumentada. O que significa que este hospital de campanha ocupou metade do espaço disponível em apenas duas semanas.
Ana Castro prossegue na apresentação da “realidade” que o Observador vai encontrar quando passar a porta que dá acesso à área onde estão os doentes, no centro da Arena — onde antes se faziam eventos e hoje se curam, e perdem, doentes. E descreve situações ainda mais graves, como aquelas em que, ao contrário do caso de Maria, há familiares com condições para receber os seus idosos, como atesta a Segurança Social, mas que os recusam.
“Eu tenho cá idosos que a família não os recebe e por cada idoso desses eu não posso deixar entrar um doente que necessite de cuidados. E isto é responsabilidade social, é responsabilidade das famílias. Não é as famílias deixarem pessoas no hospital porque não podem. O hospital não é nenhum lar, nem somos nós que temos obrigação de tomar conta dos idosos. Cada um é responsável pelos seus. É lamentável que as pessoas não percebam isso”, acusa. Situações bem diferentes de quem não tem “retaguarda” e para quem é necessário encontrar um lar, por exemplo.
Hospital já teve de lembrar famílias que incorrem em crime de abandono
A médica oncologista diz mesmo que já teve situações limite em que precisou de avisar as famílias “mais relutantes” de que iria enviar o idoso com o apoio da polícia ou da GNR. E que, caso não o aceitassem, incorriam em abandono. “E isso é crime”, avisa. Por outro lado, há também lares relutantes a receberem os idosos de volta, exigindo um teste negativo quando a norma da Direção Geral da Saúde exige apenas “critérios de cura”.
“Nós não abandonamos ninguém, nem mesmo as que têm retaguarda e que as pessoas não querem. Nunca os abandonaremos”, diz Ana Castro, que reconhece que até pode ser um esforço para algumas famílias.
Nem tudo é negativo, porém. O ar sério, e cansado, da médica quando relata estas situações transforma-se num sorriso por detrás da máscara quando quer apontar os bons exemplos. Como aquele do responsável de um lar que ligou todos os dias para o hospital para saber como estava a sua idosa, que estava sozinha e não tinha mais nenhum familiar que zelasse por ela. E mesmo quando esta idosa morreu, fez questão de lhe dar “um funeral digno”. A dignidade dos últimos dias de vida é também uma missão dos profissionais de saúde que aqui trabalham. Alguns idosos que têm a cargo estão em fim de vida. Eram já doentes crónicos e a Covid-19 veio agravar o seu estado de saúde. Dificilmente chegarão a ter alta.
Mas há também familiares preocupados e que tudo fazem para encontrar os seus familiares. Joana Teixeira, psicóloga clínica e no último ano de Medicina, é uma das profissionais que está na linha da frente, do lado de lá da porta que dá acesso ao centro da Arena. Ao Observador, confessa que tem atendido telefonemas de familiares que há semanas que não sabem dos seus idosos, porque foram internados em hospitais que estão “um caos” e que não conseguem estabelecer contactos com as famílias dos doentes.
Há um par de dias, a chamada foi mesmo para o seu telefone pessoal. Uma amiga de uma amiga conhecia uma emigrante na Alemanha que estava desesperada por saber notícias do pai. Soube que estaria internado no hospital de campanha de Portimão. Neste caso, Joana furou o “protocolo” e, através do seu telemóvel, ligou para a mulher via WhatsApp. “Então chorava o pai, chorava a senhora, chorava eu, chorávamos os três”, conta.
“Estás tão magrinho! Tenho muitas saudades!” A emoção das videochamadas
O número desta familiar acabou por entrar na lista de registo de chamadas dos doentes com quem diariamente o hospital de campanha promove uma videochamada. Foi a própria Proteção Civil que conseguiu encontrar capas desinfetáveis para os tablets e é também a Proteção Civil quem trata da ligação, a partir de uma outra sala. Ali ligam para o familiar do doente e juntam à conversa o médico responsável na enfermaria, que, por causa do equipamento de proteção, não consegue trabalhar com o tablet tão facilmente. Por vezes, os familiares ainda adicionam outros à conversa e chegam a estar sete pessoas na mesma chamada.
Hoje quem faz a ligação a partir da sala exterior é a presidente da autarquia de Portimão, Isilda Gomes, que confessa que por vezes se emociona ao ouvir as conversas entre familiares e doentes.
— Sr. António, vamos falar com a família?, diz Joana Teixeira, que atende na enfermaria.
A mulher de António não atende logo o telefone.
— Hoje não há encontro amoroso, brinca Joana. Mas acaba por haver.
— Amor, estás mais magrinho! Tenho tantas saudades tuas! Tens um pijama muito giro, diz-lhe a mulher.
Nem todos os doentes estão em condições para estas videochamadas, por isso, diariamente, é feita uma avaliação de quem pode falar e se tem contactos disponíveis. Alguns idosos chegam mesmo a ficar confusos, porque nunca antes tinham feito uma videochamada.
Um hospital improvisado em tempos de guerra
Para lá da porta para o centro do Arena de Portimão só se entra com roupa própria e proteção na cara, nas mãos e nos pés. No chão estão assinalados a vermelho os circuitos que nos encaminham para a zona mais arriscada deste hospital de campanha: a área onde se encontram os doentes com Covid-19. Para já, são oito blocos, com oito camas cada um, com doentes constantemente monitorizados por uma equipa médica. Mas há espaço para mais, desde que aumente também o número de profissionais de saúde.
As paredes foram feitas com estruturas que outrora foram stands de exposições ou mercados e que hoje servem para separar os doentes, numa operação de montagem que durou cerca de 24 horas, mal se percebeu que os hospitais de Faro e Portimão estavam no limite das suas capacidades. Não há televisão, não há casas de banho privativas, nem mesmo portas. Ana Castro não gosta sequer de lhe chamar um hospital de campanha, uma designação que considera “muito militarista”. No entanto, entre os profissionais de saúde há mesmo quem considere este novo espaço “o Kosovo” em tempos de guerra.
“Esta enfermaria tem a vantagem de os doentes poderem fazer oxigénio, fazerem a terapêutica endovenosa, temos camas articuladas com barras laterais para os doentes não caírem. Tem um perfil diferente do que fomos vendo nos outros, que eram camas normais como as dos militares e cujo perfil dos doentes não permitia fazer oxigénio nem terapêutica endovenosa. Aqui, como temos médicos, enfermeiros e auxiliares 24 horas, permite o cuidado aos doentes como uma enfermaria do Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA), mas fora do CHUA, com mais 100 camas”, explica.
E mesmo as camas baixas tiveram solução. No dia que o Observador visitou as instalações estava no local uma equipa de serralheiros que traziam pés para as camas, de forma a torná-las mais altas e a ajudar a prestação dos profissionais de saúde.
Há também, no chão, uma linha que separa as enfermarias do centro de comando. Para lá dessa linha, os profissionais de saúde têm que entrar completamente protegidos dos pés à cabeça. Muitas vezes, eles próprios têm dificuldade em reconhecer os colegas, se são médicos, enfermeiros ou auxiliares. No centro de comando há um alívio maior no equipamento, basta a farda e a máscara, os óculos e as luvas são desnecessários. É aqui que se processa todo o trabalho administrativo e também é a partir daqui que se abastece o material para o lado de lá da linha vermelha, desde soro, a seringas, ou medicamentos. E mesmo a botijas de gás de oxigénio de 50 quilos, que a própria presidente do Conselho de Administração ajuda a transportar e cuja entrega é frequente.
Família fez testes antes do Natal, mas de nada valeu
Quando a filha lhe ligou a dizer que havia casos de infeção pelo novo coronavírus entre os seis que tinham passado o Natal juntos, Maria João Perdigão ainda não tinha tido qualquer sintoma da doença. Ainda assim, ligou para a Linha de Saúde 24, até porque no último ano tinha tido “um problema” num pulmão. O INEM foi buscá-la para ser testada e o teste veio positivo, com a recomendação de se isolar em casa. O marido juntar-se-ia a ela pouco depois, com o mesmo resultado.
Dias depois chegaram o cansaço e a falta de ar e Maria João acabaria por ser internada no Hospital de Faro, no dia 9 de janeiro. Não conseguia levantar-se sozinha nem sequer andar. Estava demasiado cansada para isso. Os sintomas foram aliviando com a ajuda do oxigénio e, dez dias depois, estavam a dizer-lhe que precisavam da cama que estava a ocupar e que, como estava melhor, seria transferida para o recém aberto hospital de campanha.
No dia em que está há 24 horas sem oxigénio e prestes a ir para casa, Maria João reconhece que a decisão não lhe agradou, mas a revolta inicial foi-se dissipando. “É um hospital de campanha não é? As condições não são ótimas, mas desde que dê para salvar as pessoas… Se não há fralda, há lençol; se não há lençol, há colchão; se não há colchão, há almofada. Isto é a guerra”, diz, deitada na cama 5 do bloco F, tentando passar a barreira do som de fundo que ali se ouve: o das máscaras de oxigénio.
Maria João passou o Natal em casa da filha, uma vivenda com “condições e arejada”. Onde se costumavam sentar 30 pessoas, este ano sentaram-se seis, mais as crianças, de cinco anos e quatro meses. Todos foram testados antes, mas o certo é que o vírus ali chegou e só deixou escapar os netos. “Esse bichinho onde se mete, mete-se e ponto final. E faz o que quer de nós”, diz a economista que gere uma empresa de contabilidade e consultoria, nos últimos meses a partir de casa em regime de teletrabalho.
Na mesma enfermaria, mas na cama 3, está Marisol Pais, de 54 anos. Ao contrário de Maria João, Marisol não está perto de casa. É de Sintra e, na noite de terça-feira, depois de ter tentado ir à CUF, entrou com falta de ar nas urgências do hospital Fernando Fonseca, mais conhecido por Amadora-Sintra. Foram 24 horas para esquecer. Estava ali a acontecer, diz, o que em março viu passar-se noutros países, como Espanha ou Itália, com doentes amontoados nos corredores — alguns, segundo pensa, sem sequer saberem se tinham ou não Covid, mas à espera de uma resposta médica.
Dias antes, o secretário de Estado da Saúde, Larcerda Sales, tinha telefonado a Ana Castro a perguntar-lhe se podiam receber doentes dali, do Beatriz Ângelo, em Loures, e eventualmente de outros hospitais em colapso. A presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar Universitário do Algarve disse imediatamente que sim.
Marisol foi um desses doentes. Com um diagnóstico de pneumonia bilateral e sem uma cama que a tirasse da cadeira de rodas onde permanecia, acabaria por ser transportada de ambulância para Portimão. Ainda precisa do oxigénio para respirar e o cansaço ainda a faz ter dificuldades em contar como pensa ter sido infetada. Desde março que Marisol não saía de casa com medo de ficar doente, mas, tanto ela como as filhas, de 22 e 24 anos, apontam para o neto de ano e meio como a origem possível. Na sala da creche onde estava, dois colegas estiveram doentes, uma educadora também, e em casa os sintomas começaram na filha mais nova de Marisol. Só o marido se livrou da doença.
Um dia antes, também do Amadora-Sintra, chegava Alcindo Tavares, de 68 anos. Diabético e a sair de casa apenas para as caminhadas recomendas pelo médico, Alcindo desconhece como ficou doente. Em casa, segundo lhe diz a filha, mais ninguém acusou positivo. Apesar de já terem passado quatro dias, este cabo-verdiano já reformado assume que o tempo parece ser tão longo que as saudades já apertam. Mas hoje foi um bom dia: deixou de precisar do oxigénio.
Alunos mobilizaram-se e trabalham ao lado da presidente do Conselho de Administração
Joana Teixeira, 37 anos, é psicóloga clínica e está no 5.º ano de Medicina. Ao currículo acresce a maternidade — tem dois filhos de sete e cinco anos que deixou com familiares para vir reforçar a equipa médica do hospital. É voluntária e não recebe qualquer dinheiro por isso.
Está ao pé de um doente quando a colega a chama. “Joana, és a doutora ideal para falar”. E é. Para além do seu percurso de vida, Joana trabalha como se fosse já médica formada e apta a atender todos. Não é para menos. Dada a escassez de profissionais, a administração do CHUA fez um protocolo com a Faculdade de Medicina da Universidade do Algarve para recrutar alunos de último ano para trabalhar com estes doentes, cujo estado não exige que estejam numa Unidade de Cuidados Intensivos, por exemplo. E dá-lhes autonomia para monitorizar os internados, prescrever medicação e fazer relatórios clínicos.
Habituada a fazer voluntariado enquanto estudante de Medicina e com o estágio suspenso — porque, nesta altura, os médicos tutores de estágios estão todos envolvidos no combate à pandemia –, Joana não só não recusou a oportunidade como se tem desdobrado em contactos para conseguir mais colegas e, assim, aumentar a capacidade de resposta do hospital de campanha. Na segunda-feira eram três as estudantes, sexta passaram a cinco e no fim de semana seriam sete.
E nem o peso do equipamento de proteção com que tem que trabalhar, que tolda a visão e os movimentos, a faz recuar. “A questão física fica desfocada quando estamos a monitorizar um doente. Não quer dizer que, no final do dia, não estejamos todos cansados. Vamos mudando o equipamento, temos um espaço para irmos respirar um bocadinho. E a seguir voltamos a fazer o que temos de fazer”, diz.
A futura médica apela a todos que “aproveitem estes 15 dias em família e para irem ganhando consciência do que a Covid é realmente, que mata e que é muito perigoso”. “Não temos maneira de o controlar, estamos apenas a amparar todas as consequências, estamos a lidar com as consequências de comportamentos de risco. O ideal seria não acontecerem esses comportamentos de risco”, diz.
“Isto é uma onda que se gera e há um ambiente entre a equipa muito positivo que é muito engraçado. Nunca pensaram estar a trabalhar com a presidente do Conselho de Administração ao lado e, com o passar do tempo, cria-se um espírito muito próximo. As pessoas também têm orgulho de o Algarve estar a dar apoio ao resto do país”, diz, por seu turno, Ana Castro, que promete que, quando tudo acabar, vai tentar promover uma festa na Arena para todos os profissionais de saúde. Ana Castro chegou ao Conselho de Administração apenas em junho, em plena pandemia, vinda do Norte.
Também ela está há dois meses sem ver os filhos, que vivem em Matosinhos. “Espero que as pessoas percebam. Porque acho que se começou a desvalorizar um bocadinho a doença e as pessoas começaram a achar que só acontecia aos velhinhos. O problema é que as pessoas não perceberam que é muito dramático ver jovens que não conseguem sair dos Cuidados Intensivos”, diz. “As pessoas têm de perceber que não há capacidade para aumentar vagas sem fim, porque não há profissionais. Estamos todos a fazer um esforço sobre-humano, desde março, não desde agora. As pessoas tiveram férias, foram para aqui, foram para acolá, andaram a passear, foram à praia… As minhas pessoas não foram. Porque nós não tivemos, não pudemos ter. As férias foram canceladas. Mais uma vez, quando as minhas pessoas se estavam a preparar para ir gozar férias agora, do ano passado, tiveram de cancelar as férias novamente”, denuncia, ela que passou a viver no Algarve em junho, quando chegou, e ainda não foi à praia. “Dizem que são boas, espero conseguir ver isso em junho deste ano”, ironiza.
No dia da visita do Observador, na sexta-feira passada, cerca de dez doentes iam ter alta. Mas já se esperavam pelo menos outros quatro vindos do Amadora-Sintra e dois do Garcia de Orta, em Almada.