Entre a crenças na ideia de que a terra não é redonda e a convicção de que pandemia provocada pelo novo coronavírus não passou de uma invenção, há dentro do Reino do Pineal questões mais graves, e que levaram as autoridades a investigar a seita que se instalou em Seixo da Beira, Oliveira do Hospital, em 2020. A Polícia Judicia está a investigar não apenas Água Akbul Pinheiro, o líder desta seita, mas também a morte do seu filho, que morreu com 13 meses, dentro daquela quinta que tem quase cinco hectares, em abril do ano passado.
O inquérito para investigar a morte do bebé já foi aberto, está em segredo de Justiça, como já tinha indicado ao Observador o Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Coimbra, mas um dos obstáculos à investigação poderá ser a falta de prova. Segundo o líder do Reino do Pineal, e pai do bebé, o corpo foi cremado e as cinzas foram atiradas ao rio Mondego. No entanto, já existiram em Portugal casos que conheceram condenação, mesmo sem corpo. Além disso, a falta de registo de nascimento e certidão de óbito são outras infrações que esta comunidade terá cometido. “A nossa vida em sociedade impõe-nos limitações.”
Profanação de cadáver e infrações pela falta de registo de nascimento e certidão de óbito
O filho de Água Akbul Pinheiro nasceu dentro do Reino do Pineal. Foi, aliás, o primeiro bebé a nascer ali. Depois de Samsara já nasceram mais dois – um deles é o filho da única portuguesa que faz parte da seita e que tem agora um processo em tribunal, movido pelos avós maternos, que pediram a guarda da criança. Nenhum dos bebés que nasceu na antiga Quinta dos Sete Poços foi registado. Perante o Estado, não existem. E, perante o Reino do Pineal, terão os passaportes que esta comunidade decidiu implementar em substituição dos documentos oficiais. Mas estes documentos não têm, obviamente, validade legal.
E além de Samsara não ter sido registado, a sua morte também não foi declarada às autoridades. Não existe, por isso, nem declaração de nascimento, nem certidão de óbito, que obrigatoriamente indica a causa da morte. E aqui poderão estar as primeiras infrações à lei — não registar uma criança não constitui um crime, mas sim uma infração. Como explicou ao Observador Rogério Alves, advogado, “de acordo com a lei portuguesa, nomeadamente com as leis de registo civil, há uma obrigação, não é uma faculdade, mas uma obrigação de registar as crianças e, portanto, desde logo, há aí uma violação da lei”.
Quando Samsara morreu, em abril do ano passado, o seu corpo terá sido queimado e as cinzas atiradas ao rio Mondego. Pelo menos, foi essa a versão que o pai do bebé apresentou nas últimas semanas e será também isso que as autoridades vão investigar. As causas da morte não são conhecidas e sabe-se apenas que o bebé não foi levado ao centro de saúde, nem ao hospital, já que esta comunidade rejeita qualquer tratamento médico.
De resto, a forma como a comunidade do Pineal lidou com a morte da criança — tomando iniciativa de cremar o corpo, sem qualquer reporte às autoridades competentes — representará mais uma infração à lei, tendo em conta que, à semelhança daquilo que acontece com o nascimento, também o óbito deveria ter ser registado. “O Estado português quer saber quais são as razões pelas quais as pessoas morrem. Por isso é que toda a gente tem uma certidão de óbito e tem uma causa de morte. Às vezes, essa causa de morte é fácil de detetar, nomeadamente quando, estando a pessoa no hospital, o estabelecimento hospitalar indica que ela tinha determinada patologia que a conduziu à morte. Outras vezes é menos fácil e é necessária uma autópsia”, enquadra Rogério Alves.
No caso do filho da seita do Pineal, o caso é distinto: “Ali, manifestamente, temos infrações das regras do registo e dos procedimentos pós-morte”, explicou o advogado ao Observador.
É sabido — porque o próprio líder da comunidade o disse — que foi feita uma cerimónia fúnebre de Samsara, que terá envolvido cremação. E aqui poderá estar um dos crimes que as autoridades estarão a investigar: o crime de profanação de cadáver. Como explicou ao Observador o advogado Paulo Saragoça da Matta, “os enterros são regulados por lei” e não podem ser feitos à margem, mesmo sem registo de nascimento. “Ninguém tem esse poder, não há um direito ou um poder legal de as pessoas, mesmo sendo próximas, poderem enterrar onde quiserem”, acrescentou.
É possível investigar um homicídio sem corpo?
“Quando o corpo desaparece, fica-se sem saber qual foi a causa da morte. Ou melhor, fica-se com menos probabilidade de saber”, adianta Rogério Alves. Caso o corpo tenha mesmo sido queimado, primeiro, a investigação terá de apurar em que circunstâncias foi feita a tal cremação, sobretudo porque, como lembra o advogado Saragoça da Matta, no processo de cremação restam sempre vestígios. Um dos problemas, no entanto, é que a morte terá ocorrido em abril do ano passado e o inquérito para investigar esta morte foi aberto apenas este ano.
Mas será sempre possível investigar o motivo que levou à morte desta criança, mesmo não tendo o corpo para analisar. Como explicaram os advogados ouvidos pelo Observador, mesmo sem a prova física, a prova testemunhal poderá ser um começo. Os moradores do Reino do Pineal serão interrogados pela Polícia Judiciária — que, até ao momento, não fez quaisquer buscas ao local — e poderão ajudar a reconstituir a história de Samsara. É, no entanto, necessário encontrar prova testemunhal suficientemente credível.
Em relação a eventuais suspeitas por crime de homicídio, existem dúvidas, precisamente por não existir a tal prova física. “Não é que o crime não seja possível de investigar, o que acho é que poderá ser extremamente difícil recolher material probatório que sustente uma acusação”, explica Saragoça da Matta. Na mesma linha, Rogério Alves acrescenta que, “sem corpo, evidentemente que a indagação da causa da morte é muito mais difícil. De qualquer modo, pode um investigador, e mais tarde um tribunal, convencer-se de uma versão sobre a morte, mesmo sem a existência de corpo”, como aconteceu noutros casos já julgados em Portugal.
“Porque é que morreu? De que é que morreu? Que provas, que evidências têm disso? O que aconteceu ao corpo tem de ser objeto de uma investigação. E, obviamente, tudo isto depois nasce do facto de as crianças nem serem registadas”, conclui.
Condenação sem corpo? Não é inédito em Portugal
Apesar de não ser comum haver uma condenação sem corpo – a tal prova física –, é possível identificar vários processos em que se investigavam mortes e que resultaram em penas de prisão. Alguns tornaram-se mediáticos, quer pelo mistério que acompanhava as histórias, e que perdura, quer pela violência dos crimes praticados. Há, pelo menos, dois exemplos mais conhecidos: a condenação de Leonor Cipriano e a de Francisco Leitão, conhecido como Rei Ghob.
Leonor Cipriano foi condenada pelo homicídio da filha Joana em 2004, cumpriu cinco sextos da pena de 16 anos e 8 meses na prisão de Odemira – uma prisão exclusiva para mulheres – e já se encontra em liberdade. Quando foi libertada, em 2019, voltou a dizer o que sempre disse: “Fui condenada sem provas. Não matei a minha filha. Nunca lhe faria mal. Só confessei tudo porque fui agredida na PJ de Faro.”
Leonor Cipriano saiu em liberdade esta quinta-feira: “Não matei a minha filha”
Aliás, Leonor Cipriano foi condenada em primeira instância a 20 anos e 4 meses pelo crime de homicídio, mas a pena acabou por ser reduzida pelo Supremo Tribunal de Justiça, numa decisão que não reuniu consenso – dois dos juízes conselheiros defenderam que a mãe de Joana deveria ser absolvida, uma vez que o corpo nunca foi encontrado.
O Tribunal de Portimão considerou como provado que Leonor e João, seu irmão, “agiram em plena consciência das consequências dos seus atos ao espancarem violentamente a pequena Joana”. Com recurso à “sua força desproporcional relativamente à de uma criança de oito anos”, Leonor e João só terão parado de bater em Joana “quando a mataram, apesar de ela sangrar pelo nariz, boca e têmpora”. A tese do Ministério Público para que o corpo nunca tenha sido encontrado é a de que a mãe e o tio de Joana cortaram o corpo, com uma faca e com uma serra de cortar metal, e que, depois disso, terão dado os restos mortais aos porcos.
Mas mais pesada foi a pena aplicada a Francisco Leitão, ou Rei Ghob. Foi condenado à pena máxima aplicada em Portugal, de 25 anos de prisão, e a Polícia Judiciária nunca conseguiu desvendar o mistério da morte de três jovens, que desapareceram sem deixar rasto. Os corpos nunca foram encontrados e Francisco Leitão nunca falou durante o julgamento no Tribunal de Torres Vedras, repetindo apenas durante as alegações finais que nunca matou ninguém.
As autoridades só começaram a perceber que a morte dos três jovens poderia estar relacionada quando foi apresentada queixa pelo desaparecimento de Joana, em 2010. Com 16 anos, Joana saiu de casa, dizendo que ia ter com uma amiga. Não foi e não se sabe o que terá acontecido – a hipótese do Ministério Público é que tenha ido ter com Francisco Leitão. Mas foi a ligação de Joana a Rei Ghob que levou os inspetores da Polícia Judiciária a perceber que Tânia e Ivo, desaparecidos dois anos antes, em 2008, também conheciam este homem, que cumpre pena na prisão desde 2012. Todos tinham em comum o amigo Francisco Leitão.
Rei Ghob: sucateiro, bruxo e assassino. A história dos crimes do castelo dos gnomos
Os dois processos do desaparecimento de Tânia e Ivo foram reabertos e, na altura, o diretor nacional da PJ, Almeida Rodrigues, em entrevista ao Diário de Notícias, admitiu que não existiam grandes probabilidades de encontrar os corpos e que esta era uma investigação “extremamente difícil”.
Depois de três meses de julgamento, Rei Ghob acabou por ser condenado a 13 anos de prisão pelo homicídio de Tânia, a 12 anos e meio pelo homicídio de Ivo, a 18 anos pelo homicídio de Joana e ainda a três anos por crimes de ocultação de cadáver — 12 meses por cada uma das vítimas.