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Laura e Constança foram abordadas por colegas que precisavam de garantir boa nota nos exames do ensino superior. A Laura pagavam-lhe o que ela quisesse para estar em frente ao computador. A Constança pediam-lhe que estivesse atenta ao Messenger para tirar possíveis dúvidas. Rafael, com mais dois amigos, criou um chat no Discord e usou o truque mais comum em tempos de pandemia: um olho no ecrã do computador, outro no chat do telemóvel. O lema é, ao estilo do século XVII francês, um por todos e todos por um.
Só que enquanto os três mosqueteiros do romance de Alexandre Dumas lutavam para salvar a honra de França, ou da sua rainha, o que Rafael e outros universitários fazem tem um nome: fraude académica. Por estar consciente disso, Natacha recusou fazer parceria com uma colega do curso de Medicina. No final, teve pior nota do que gostaria, mas ficou de consciência tranquila.
Este semestre houve fraudes em larga escala, diz Gonçalo Velho, presidente do Sindicato Nacional do Ensino Superior (SNESup), tudo porque o surto de Covid-19 obrigou universidades e politécnicos a avaliar alunos à distância. Os docentes tentaram um pouco de tudo — perguntas cronometradas, obrigação de filmar a divisão onde se faz o teste, tempos de resposta mais curtos e software próprio para detetar fraudes —, mas, no fim, “os alunos foram mais sofisticados”, argumenta.
Entre os reitores, o tema está em cima da mesa e foi discutido na reunião presencial de terça-feira do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas, garante o seu presidente Fontaínhas Fernandes, já que, ao longo do semestre, ficou claro que a avaliação era o maior problema que os reitores tinham em mãos.
Faculdade de Medicina. O browser seguro não impediu o copianço
Faltava uma meia hora para começar o exame de Anatomia quando o telefone de Natacha apitou. “Uma colega minha queria que eu fizesse o exame com ela através de um chat. Recusei. E ela disse-me que estavam todos a fazer os exames em conjunto, que devíamos fazer o mesmo”, conta a estudante da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.
Apesar da insistência, Natacha não vacilou. Não achava ético fazer um exame daquela maneira. Rapidamente acabou por perceber que era o modus operandi de muitos alunos da sua faculdade, provavelmente os mesmos que se insurgiram contra os métodos de vigilância e conseguiram que a instituição não os implementasse.
“O que eles fazem é enviar uma foto da pergunta que não sabem e alguém no chat responde”, conta a estudante. Natacha faz parte do grupo de futuros médicos que preferia a vigilância às perguntas com cronómetro. “Os estudantes dividiram-se em dois grupos: uns eram contra a cronometragem, para que o aluno pudesse gerir o seu tempo durante o exame, e não se importavam com a vigilância. O outro grupo defendia o contrário”, conta.
Ministro garante que cursos superiores não vão mudar para modelo de ensino à distância
A vigilância era feroz. “Tínhamos de ter a câmara do computador sempre ligada, podiam pedir-nos para mostrar tudo o que estava à nossa volta e, se não autorizássemos, não fazíamos exames e chumbávamos”, relata a aluna de 2.º ano. Mas a vigilância não vingou e a faculdade optou por outros métodos para tentar evitar a fraude.
Para começar, os exames à distância são feitos num browser seguro, onde os alunos têm de estar sempre no modo de tela cheia. Se tentarem sair — o que seria necessário para abrir qualquer documento ou outro browser no computador — aparece imediatamente uma mensagem de aviso. “Só pode continuar a realizar o exame em modo de tela cheia”, recorda a aluna, que fez cinco avaliações nestes moldes. Previamente, têm de enviar uma fotografia de rosto com o cartão de cidadão ao lado, para provar a identidade.
“Para além disso, ficámos com perguntas de escolha múltipla cronometradas, cerca de 100, e temos entre 70 a 90 segundos para responder a cada uma”, conta Natacha. O problema? Se conseguir dar uma resposta em 30 segundos, não pode aproveitar o tempo que lhe sobra para uma pergunta mais difícil. Se quiser voltar atrás para rever uma resposta, o programa também não permite.
Com o mesmo tempo para responder ao exame que habitualmente tem num presencial, a grande dificuldade para si foi não poder geri-lo. O segundo, os problemas técnicos. “O browser bloqueava, as perguntas bloqueavam, e até o chat com os regentes da cadeira bloqueava. Aconteceu-me uma vez, tirei fotos a tudo e reclamei. Naquele momento tinha 9,4 valores, a pergunta valia 2, e podia ser a diferença entre chumbar ou não. Passado quase um mês, continuo à espera de resposta.”
Politécnico de Leiria. Um chat a três para os exames de Engenharia Mecânica
“À distância é muito mais fácil copiar.” Rafael fez duas frequências à distância para o curso de Engenharia Mecânica. Estuda na Escola Superior de Tecnologia e Gestão do Politécnico de Leiria, diz ser um aluno mediano, e encontrou, em conjunto com dois amigos, uma forma de tentar garantir melhor pontuação.
“Estávamos os três ligados no Discord e, quando tínhamos uma dúvida, fazíamos um print screen e enviávamos para o grupo. Se alguém soubesse, ajudava”, conta o estudante. Apesar de ter usado uma forma de copiar, Rafael relativiza: não era como se apenas um soubesse toda a matéria e estivesse a fazer a prova pelos outros — era só para dúvidas rápidas. Ainda que reconheça que os resultados são enviesados por isso: “Desilude-me que seja mais fácil de copiar, há menos mérito no que fazemos. É como diz um professor meu: ‘Estamos a formar engenheiros ou não?’”
Quanto aos professores, diz que uns se adaptaram melhor do que outros. “Fizeram o melhor que podiam no tempo que tinham. Durante o exame tínhamos de ter a câmara ligada, mas basta ter uma câmara externa para resolver o problema. Eu fico o tempo todo em frente à câmara e, enquanto isso, está outra pessoa no teclado a fazer o exame por mim”, exemplifica Rafael.
No seu politécnico não houve recurso a browsers seguros, mas, se a webcam fosse desligada, a frequência era cancelada. Quando Rafael se afastava do campo de visão, era logo alertado de que assim não podia ser.
De resto, os passos seguidos são semelhantes na maioria de instituições do ensino superior. Primeiro é enviado um link para os alunos se ligarem ao Zoom, com a câmara ligada, onde os professores fazem a vigilância. Ali chegados, é-lhes enviada uma senha para acederem à prova no Moodle, software livre de apoio à aprendizagem das instituições.
“Houve professores que se adaptaram a pensar no copianço. Eles sabiam que íamos ver os apontamentos, então aumentaram o número de perguntas. Tínhamos hora e meia para responder a 125 perguntas de escolha múltipla. Mas, com os PDF ao lado, é fácil fazer um ctrl+F [teclas de atalho para fazer pesquisa num documento]. Mesmo assim, é preciso ter estudado para conseguir copiar”, sustenta o estudante.
Psicologia e Enfermagem. Câmaras ligadas, microfones indiscretos
Constança foi várias vezes assediada por colegas de Psicologia desesperados por ter positiva no exame. O telefone tocou mais do que uma vez. “Foram várias pessoas a ligar-me porque sabiam que eu tinha tido boas notas. Diziam-me que pagavam o que fosse preciso para fazer o exame por elas. Nunca aceitei porque não é ético e eu quero ser uma boa psicóloga”, conta a aluna do 1.º ano do Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA), que já vai na segunda licenciatura.
Apesar de não ter alinhado em nenhum dos esquemas propostos, viu muita coisa a acontecer durante os cinco exames que teve de fazer à distância. “No exame de Psicologia do Desenvolvimento, houve um aluno que se esqueceu do microfone ligado — só somos obrigados a ter a câmara ligada — e acabámos todos por ouvir o explicador a dar-lhe a resposta à pergunta que ele estava a fazer”, conta.
Mas o mais comum são as mensagens trocadas em catadupa durante as avaliações. “Temos um grupo de Whatsapp para nos ajudarmos uns aos outros a responder. Durante o exame enviam-se fotos e quem quer ajuda. Eu ajudo toda a gente até ao exame, depois disso é cada um por si”, sublinha.
Os professores, diz, vivem na ilusão de que os alunos não copiam, mas eles vão sempre fazê-lo, de uma forma ou de outra. “Os nossos exames de duas horas passaram a ser de uma, mas isso impede-me de fazer o ctrl+F? E ter a câmara ligada? Acham que não consigo aparecer na imagem e ter outra pessoa no teclado?”, questiona a estudante do ISPA.
Laura também disse que não, mas o seu pedido veio de mais longe. Estuda na Escola Superior de Enfermagem do Porto, onde todos os exames foram presenciais, e foi de outro ponto do país que recebeu o grito de socorro. Um amigo pedia-lhe que estivesse ligada ao Messenger, disponível para esclarecer quaisquer dúvidas que ele pudesse ter. “Não achei justo. Sei que na Escola Superior de Saúde de Portalegre havia alunos a fazer o exame todos juntos, mesmo com o professor a obrigá-los a ter a câmara e o microfone ligados o tempo todo. No fim, isto prejudica os alunos que não copiam porque em muitos cursos os professores reduziram o tempo do exame”, defende.
Constança concorda. No ISPA, tal como na Faculdade de Medicina, a plataforma onde era feito o exame (o e-Campus, que é o Moodle da instituição de ensino privada) não permite regressar atrás depois de respondida uma pergunta.
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“Não deixa de ser irónico fazerem esta escolha quando andamos a aprender o processo cognitivo e como por vezes é preciso deixar uma ideia estar em banho-maria para conseguirmos a melhor resposta”, conclui a estudante.
Para Laura, também nos exames presenciais se tornou mais fácil de copiar nestes tempos de pandemia. “Como estamos de máscara, num auditório, não se percebe se estamos a falar. Antes, não podíamos ter os nossos pertences connosco, como o telemóvel, mas agora fica tudo ao nosso lado, nas cadeiras plastificadas, e isso também facilita”, conta.
Por outro lado, tudo demora mais tempo, já que os professores estão de luvas a distribuir os exames. No final, o mesmo atraso. “As pautas demoram muito mais tempo a sair. Depois de fazermos os exames, eles ficam em descanso e ninguém lhes pode tocar. E a máquina de leitura ótica, que corrige os exames de bolinhas [escolha múltipla] só pode ser usada com hora marcada. Em vez de dois dias, chegam a demorar duas semanas”, clarifica Laura.
Os truques dos professores para evitar os plágios
“É virtualmente impossível impedir que os alunos copiem”, diz Filipa Alvim, professora na Universidade de Coimbra e no ISPA, em Lisboa, no departamento de Antropologia, e que, por isso mesmo, optou por fazer todos os exames com consulta.
Aos alunos, deixou um alerta: “Dou-lhes instruções muito claras: se for detetada metade de uma frase em plágio, toda a prova terá zero; se detetar a mesma resposta mais do que uma vez, esse item tem zero valores”, conta. Este segundo caso acontece quando, por exemplo, um aluno prepara uma resposta ótima — Filipa Alvim partilha as perguntas que vão sair antecipadamente com os alunos — e esse texto acaba por aparecer 20 ou 30 vezes nos exames.
Mesmos com os alertas e com as perguntas dadas de antemão, a professora tropeçou em muitos plágios nos exames. “No ISPA foram alguns, não muitos, mas em Coimbra, em Antropologia das Religiões, cerca de 30% dos 137 alunos fizeram plágio e tiveram prova zero”, conta. Uma realidade que os seus colegas também sentiram e que acabaram por partilhar uns com os outros nos seus grupos de Whatsapp.
Decisão semelhante tomou Madalena Ramos, professora do ISCTE que tem desenvolvido trabalhos sobre o tema da fraude e da integridade académica. “As fraudes existem desde que existem avaliações e não pensemos que vamos conseguir acabar com elas. Temos é de dar ferramentas aos alunos para não cometer fraude por incompetência e desconhecimento.”
No seu caso, a maioria das provas foram feitas presencialmente, só tendo recorrido à versão online no caso dos alunos doentes de risco e para os que estavam nas ilhas dos Açores e Madeira. “Fiz testes com consulta, na área de estatística e análise de dados, com câmara e microfone ligado, em que o exame era escrito à mão e o aluno devolvia-me uma fotografia do que tinha escrito. Se tivesse dúvidas, foram avisados de que poderia fazer uma oral a seguir.”
Nesses casos, chegou a ter seis alunos vigiados por três professores.
Filipa Alvim seguiu uma estratégia diferente. Com os alunos de Coimbra, optou por não fazer vigilância, já que o que lhe interessava era o produto final. No ISPA, recorreu ao Zoom, o que se revelou uma loucura: “Não criei salas simultâneas, então tinha cerca de 300 alunos divididos por 10 a 11 páginas de Zoom. Andava ali, para a frente e para trás, com o cursor. É impossível detetar quem copia, se bem que há alguns alunos que nem sequer tentam disfarçar.”
Com cinco turmas em cada cidade, Filipa Alvim não tem dúvidas de que, este semestre, os números de fraudes dispararam. “O plágio aumentou exponencialmente. Os alunos trocam uma ou duas palavras e acham que já não é plágio. Para além disso, têm uma grande dificuldade de se afastarem do texto original e isso até se vê nos trabalhos de mestrado”, relata.
Uma finalista da licenciatura de Antropologia, por exemplo, num trabalho apresentado, não fez plágio dos textos originais que estavam a ser estudados, mas antes das resenhas, denunciando-se na mesma. “Também encontro muitas idas à Wikipédia”, diz Filipa Alvim. As avaliações acabam por demorar mais tempo, já que está constantemente a ter de confirmar se está perante um plágio ou não.
É a tal fraude por incompetência de que fala Madalena Ramos. “Muitas vezes, a fraude é cometida por incompetência, às vezes as pessoas nem sabem que o estão a fazer — acham que substituir palavras por sinónimos numa frase não é plágio, ou seja, plagiam por desconhecimento. Ou então são incompetentes para dominar suficientemente a leitura de um texto e escrevê-lo de uma forma original.”
Na sua pesquisa mais recente ainda só tem as respostas de duas instituições e, por isso, não quer falar em conclusões. “O que posso dizer é que, perante esta amostra, na maioria das situações os estudantes reconhecem o que é fraude, reconhecem o seu grau de gravidade e concordam com a penalização sugerida. As áreas cinzentas são o autoplágio e o partilhar indevidamente o nome num trabalho”, esclarece. Ou seja, o que suscita mais dúvidas aos universitários é se podem ou não voltar a usar um trabalho que usaram no seu passado académico ou aceitar assinar um trabalho para o qual não contribuíram.
“Mas depois há um paradoxo: sabem que é fraude, admitem a gravidade, mas admitem fazê-lo. Consideram que eram capazes de copiar pelo colega, pela cábula, de assinar a folha de presença de um colega, mesmo atribuindo-lhe gravidade”, clarifica a professora do ISCTE.
As principais razões para cometer fraude? “A preguiça era o principal motivo num estudo anterior que fiz, agora ficou em terceiro lugar. Agora, o primeiro motivo é a necessidade de obter boas notas”, diz a professora.
Fraudes em larga escala e a vergonha de denunciar
Se não foram detetadas mais fraudes nos exames e frequências do ensino superior, foi porque os próprios professores não o quiseram, defende Gonçalo Velho, presidente do SNESup. Em alguns casos “até por embaraço” em assumir as situações que estavam a viver.
“Temos tido notícias de algumas fraudes em larga escala e se não foram detetadas mais foi porque os professores não quiseram cavar mais sobre o que estava a acontecer”, diz Gonçalo Velho, defendendo que houve uma grande benevolência na forma como foram vistos os trabalhos e corrigidas as avaliações.
Quanto a fraudes de alunos, o mais comum foi o desenvolvimento de sistemas de comunicação durante os exames, explica, muitas vezes nos chats das aplicações de telemóvel. “O sincronismo com que os alunos respondiam às perguntas mostrava que havia fraude. Já nos cursos de Matemática e Direito, os exames foram muito suscetíveis de ser feitos por terceiros.”
Gonçalo Velho diz ainda ter recebido relatos de plataformas de ensino à distância que foram pirateadas, mas, por enquanto, não passam de suspeitas ainda por provar. “Este ensino à distância também potenciou a venda de trabalhos, algo que já acontecia, mas que agora tomou proporções muito mais graves”, diz o sindicalista.
Madalena Ramos não tem dúvidas sobre isso e defende que aquilo que nos diz o senso comum corresponde à realidade. “Não tenho grande confiança na avaliação online porque potencia a fraude. Numa sala de aula normal, só o facto de existirem ferramentas tecnológicas facilita a comunicação com pessoas de fora da sala. À distância, tudo se multiplica”, sublinha.
Uma das formas de combater o problema é evitar replicar o ensino presencial nas aulas à distância. Aos docentes, conclui a professora do ISCTE, cabe repensar as estratégias usadas: “Quando um aluno é avaliado e há um processo fraudulento pelo meio dessa avaliação, estamos a certificar uma coisa que não ocorreu. A própria justiça da avaliação é posta em causa, assim como a integridade académica.”