Marcelo na Madeira tem sido como uma ilha, cercado de autonomistas por todos os lados. O atual presidente do Governo Regional, Miguel Albuquerque, o antecessor, Alberto João Jardim, e o presidente da Assembleia Legislativa, José Manuel Rodrigues exigiram, cada um no seu estilo, que o Presidente intervenha no sentido de aprofundar a autonomia das Regiões Autónomas, com especial enfoque na Lei das Finanças Regionais. Mas se isso não é surpresa — na apresentação de um livro sobre o assunto na assembleia regional, foi citado um autonomista que disse as seguintes palavras num prefácio de 1997: “Um dia se fará justiça àqueles como Alberto João Jardim e Mota Amaral, entre muitos outros, foram garantia da unidade na Madeira e nos Açores, mesmos quando tiveram de clamar e clamar alto contra as insensibilidades do Governo da República”.
O autor desta e de outra frases que sugeriam uma maior autonomia era o atual Presidente da República e o ex-deputado do PSD, Guilherme Silva, fez questão de o referir para apertar o cerco a Marcelo. O Marcelo de 1997, pró-aprofundamento da autonomia, contra o Marcelo de 2021, que não se quer comprometer nesta matéria. E faz questão de o deixar claro: “O Presidente da República não tem intervenção no domínio da revisão constitucional”. Quem quiser avançar que o faça “no plano político, legislativo, económico, social, da revisão constitucional, com imaginação, com criatividade, com o contributo dos que são titulares, com o contributo dos que foram titulares, com o contributo dos que serão titulares”.
Basicamente o chefe de Estado responde a Albuquerque e Jardim e diz: se querem avançar, lutem por essa revisão constitucional. Tudo isto surge depois de, na manhã desta quarta-feira, Alberto João Jardim publicou uma carta no Jornal da Madeira — que tinha enviado a Marcelo há mais de uma semana — a dizer que o Presidente tinha de mediar as negociações entre a região autónoma e o Governo. Marcelo responderia mais tarde aos jornalistas que Jardim “só dá recados“, mas recusava-se a assumir o papel exigido pelo anterior líder do Governo regional.
Já depois da resposta de Marcelo, em entrevista ao Observador, Alberto João Jardim voltaria à carga para dizer que Marcelo não pode “apenas andar a beber poncha”, pois tem de cumprir o juramento que fez de defender a Constituição. E isso passa por defender a autonomia regional.
Marcelo, ao seu estilo, tentou descrispar. “É natural que não haja convergências fáceis à partida, porque os títulos de legitimidade são diferentes. Essa é, repito, a riqueza da democracia, sem dramas, sem angústias, sem crispações – a não ser as crispações que decorrem de cada qual cumprir o seu dever, o dever de representar aqueles que considera que deve representar com o título de legitimidade que lhes assiste.”
O que dizia o Marcelo de 1997
O antigo vice-presidente da Assembleia da República e presidente da Comissão dos 600 anos da Madeira, Guilherme Silva, pressionou mesmo Marcelo concordando que não tem competências para suscitar ou intervir diretamente numa revisão constitucional, mas “tem uma magistratura de influência relativamente à qual não podemos esquecer o seu papel”. É exatamente o mesmo que Jardim e Albuquerque defenderam.
Guilherme Silva leu então o prefácio de uma edição da Constituição após a revisão constitucional de 1997, em que Marcelo escrevia que “a unidade nacional não está nem nunca esteve em causa” e que “o seu reforço e a sua aceitação serão tanto maiores quanto mais o processo autonómico responder de forma positiva às exigências das povoações insulares, o que requer maior responsabilização por quem tem o poder”.
Marcelo escrevia ainda, continuava a ler Guilherme Silva, que “com Sá Carneiro aprendemos a não ter medo da autonomia dos Açores e da Madeira”. Nesse mesmo texto o atual Presidente dizia ainda que “a democracia e com ela a autonomia dos Açores e da Madeira” significaram uma “verdadeira descolonização social”.
Quando acabou de ler o texto, que tinha os tais elogios a Alberto João Jardim e João Bosco Mota Amaral, Guilherme Silva ainda deu o passo em frente para dizer que este prefácio “diz tudo o que pensa o Presidente da República relativamente à autonomia e a esperança” que os madeirenses têm que se concretize.
Pouco depois, já na Quinta Vigia e ao lado de Miguel Albuquerque, Marcelo voltou a lembrar o que já tinha dito na Assembleia Legislativa Regional: que votou, como deputado constituinte, pela constituição das regiões autónomas. Mas o mais longe que foi foi dizer que se deve “frutificar essa autonomia” e lembrar que a “autonomia permitiu levar mais longe os direitos dos povos madeirense e açoriano.” Miguel Albuqueque lembrou que a autonomia é “evolutiva” e que “quem conceber o contrário, pára na história”.
Marcelo condecora EGMFA e os estados-maiores zangados
Na tentativa de desdramatizar as tensões, Marcelo vai aproveitar o 10 de junho para demonstrar que continua a valorizar as chefias militares. Não só o Estado-Maior-General das Forças Armadas — que reforça a sua posição com a nova Lei Orgânica das Forças Armadas — como também os estados-maiores de cada um dos três ramos das Forças Armadas — incomodados por perderem força com nova lei — vão ser condecorados com as “insígnias de membro honorário da Ordem Militar de Cristo”.
A condecoração não é, no entanto, atribuída pessoalmente aos chefes destas entidades, já que o Presidente vai impor as insígnias nos estandartes nacionais das quatro chefias militares. Ou seja: à instituição e não às pessoas.
O jantar com Costa e as horas extraordinárias
Marcelo Rebelo de Sousa jantou com António Costa na Quinta Vigia, a convite de Miguel Albuquerque. Ambos assistiram a um concerto da Orquestra Clássica da Madeira, na Praça do Povo, no Funchal, onde também já esteve o presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues. Desceram juntos, a pé, da Quinta Vigia para o concerto.
Horas antes, Alberto João Jardim tinha dito que “Marcelo dá o ar de que gosta de estar no colo do Costa”. De facto vieram cúmplices a descer a rua e iam a passar um café quando foi o 4-0 de Portugal contra Israel, que comentaram entre si. Mais uma nota: À hora de publicação deste artigo, Marcelo e Costa ouviam no concerto o clássico “Amigos para Siempre”, que em tempos marcou a boa relação de Passos e Portas na campanha das legislativas de 2015.
Desde que chegou à Madeira, Marcelo tem feito horas extraordinárias. Na primeira noite recebeu lesados do BES, na segunda noite fez questão de receber o líder da oposição, Paulo Cafôfo (o antigo presidente da câmara do Funchal, que se tornou no grande rosto PS na ilha) e também Filipe Sousa, presidente do Juntos Pelo Povo, partido também da oposição. Este é o partido dos “irredutíveis Gauleses”, uma vez que os irmãos Sousa — fundadores deste partido que começou por ser regional — são naturais da Gaula, no concelho de Santa Cruz. É na postura de desdramatizar que Marcelo insiste nestes equilíbrios e em fazer estas reuniões, mesmo que algumas sejam fora de horas.