“Eu nem sabia que era possível um escritor de não-ficção ganhar o Nobel!… Mas fiquei contente. Muito contente. Agora o mundo inteiro vai saber de nós!” Foi assim, tomado de supresa, que o editor de Svetlana Aleksievitch reagiu à notícia de que ela tinha recebido o Prémio Nobel da Literatura de 2015.
Já recomposto, Igar Lohvinau pegou no telemóvel e marcou o número da jornalista de 67 anos. Em dias normais, ela ter-lhe-ia atendido o telemóvel com facilidade: afinal, Lohvinau foi o único editor que até hoje teve a coragem de publicar o trabalho de Aleksievitch naquele país conhecido como “a última ditadura na Europa”, liderado há mais de 20 anos por Alexander Lukachenko. Mas o dia 8 de outubro de 2015 não foi um dia normal. “Bem tentei, mas a linha estava sempre ocupada”, conta ao Observador por telefone, duas horas depois do anúncio em Estocolmo, na Suécia.
Aconteceu o mesmo a Andrei Sannikov, candidato presidencial na Bielorrússia em 2011 que, depois de ter sido preso, torturado e finalmente libertado, acabou por fugir para o exílio em Varsóvia, na Polónia. Também tentou ligar logo à autora — sem sucesso. A conversa vai ter de ficar para outro dia. “Estou muito contente”, diz ao Observador numa conversa por Skype. “Eu ontem estava tão nervoso por causa disto que obriguei-me a mim próprio a parar de pensar no assunto. Estava tão, mas tão desejoso de que ela ganhasse este prémio. Às tantas dei por mim a ser supersticioso, achei que se pensasse muito no assunto ela acabaria por não ganhar”.
Mas ganhou. E Sannikov não podia ter ficado mais feliz: “A ditadura já dura há mais de 20 anos na Bielorrússia. Passado este tempo todo, é bom sabermos que o primeiro Nobel que nos chega é atribuído a uma pessoa que se rege pelos valores da liberdade”.
“Tudo isto é novo e por isso estou em choque”, diz ao Observador Viktor Martynovitch, um escritor bielorrusso que ainda há poucos dias teve um encontro fortuito com Aleksievitch. “Estava no aeroporto de Minsk quando me chamaram. Olhei para o lado e vi que era a Svetlana. Ficámos a falar um bocado sobre literatura em geral. Não falámos do Nobel… Ela não falou do assunto e eu não quis puxá-lo, porque ainda não se sabia se ela ganhava ou não.” No final da conversa, Svetlana perguntou-lhe se teria tempo para tomarem um café em breve. “Eu disse-lhe que sim, claro. Mas agora duvido que ela tenha tempo nos próximos tempos para tomar um café comigo!” Martynovitch fala depressa e ri alto, sem filtros, num registo bastante diferente daquele que lhe conhecemos quando há um ano estivemos com ele em Minsk. “Desculpa, mas isto é tudo inesperado.”
Alexander Lukachenko é Presidente da Bielorrússia desde 1994. Desde então vence eleições presidenciais recorrendo à fraude eleitoral e monopolizando os meios de comunicação social de maneira a que a oposição tenha pouco ou nenhum tempo de antena. O Nobel de Svetlana Aleksievitch veio mesmo a tempo de mais um desses processos eleitorais: a votação para as presidenciais começou esta semana e o resultado é anunciado no domingo — sendo que, quando este for conhecido, ninguém ficará espantado por saber que, pela quinta vez consecutiva, Lukachenko foi reeleito.
Como acontece com todos aqueles que pisam as linhas vermelhas de Lukachenko, Svetlana Aleksievitch foi até aos dias de hoje marginalizada pelo regime. É verdade que quem quiser encontrar um livro com a sua assinatura na Bielorrússia, tem várias maneiras de o fazer: pode encomendá-lo pela Internet da Rússia; pode pedir emprestado a um amigo que, por sorte, tenha em casa um exemplar dos tempos da Perestroika; pode até dar com um exemplar nos poucos alfarrabistas ou livreiros particulares de Minsk, como é o caso de Igar Lohvinau.
Porém, todas as maneiras de pôr as mãos num livro da vencedora do Nobel de 2015 são, no mínimo, complicadas: os sites de compras online são restringidos na Bielorrússia e alguns são mesmo ilegais; aquando da sua publicação nos anos 80, os livros de Aleksievitch foram pouco massificados no país; e os livreiros independentes são constantemente postos à prova pelas autoridades. Ainda no início de 2015, a livraria de Lohvinau, no centro de Minsk, foi alvo de uma multa 55 mil euros depois de ter vendido exemplares de um livro não autorizado que continha imagens da repressão policial na última noite eleitoral da Bielorrúsia, em 2011.
A maneira mais simples seria comprar os livros de Svetlana nas livrarias do Estado, que são a larga maioria e chegam ao país inteiro. Só que, até hoje, o nome da nova Nobel da literatura nunca passou por aquelas prateleiras. “O governo bielorrusso finge que eu não existo”, disse Svetlana Aleksievitch numa conferência de imprensa pouco depois de saber que vencera o Nobel. “Não sou publicada, não sou citada por ninguém. Pelo menos não me lembro de a televisão estatal bielorrussa alguma vez me ter ligado.”
Se houvesse dúvidas, bastaria olhar para o alinhamento de um noticiário da televisão pública de 8 de outubro. Apesar de a notícia ainda estar fresca — e, sublinhe-se, de ser o primeiro Nobel bielorrusso —, a referência ao prémio mereceu apenas 23 segundos de tempo de antena. Por outro lado, foram dados 3,26 minutos a uma cerimónia em que o Presidente Lukachenko se dedicou à entrega de condecorações oficiais.
Só já no final do dia é que o líder bielorrusso felicitou Aleksievitch através de uma carta. “O seu trabalho criativo tocou os sentimentos dos bielorrussos e de leitores em todo o mundo (…). Estou sinceramente feliz por si. Desejo fortemente que este prémio venha a servir o Estado bielorrusso e a nação”, escreveu. Não se podia esperar outra mensagem de Lukachenko. Primeiro, porque faz questão de referir “o Estado bielorrusso e a nação”, elementos indispensáveis no seu discurso. Depois, porque descreve o trabalho de Aleksievitch, uma jornalista que nunca escreveu ficção, como “criativo“. Esta não foi, porém, a primeira vez que o Presidente bielorrusso deu provas de ser pouco dado a leituras. Em 2003, quando Vassil Bykov, um dos escritores mais aclamados no país, morreu, Lukachenko fez questão de fazer uma declaração. “Gostava muito dos seus poemas”, disse, desconhecendo que Bykov, um antigo combatente na Segunda Guerra Mundial, apenas escrevera prosa.
Não deixa de ser irónico que Svetlana Aleksievitch tenha enfrentado mais barreiras depois do fim da União Soviética — cujo processo faria adivinhar, nalguns casos erradamente, o início da democratização das várias repúblicas que a compunham — do que durante os dias em que a Europa estava dividida em dois blocos. Os seus primeiros trabalhos foram feitos no período da Perestroika e da Glasnost, na segunda metade da década de 1980, quando houve uma maior abertura para a publicação de matérias comprometedoras do regime soviético. A sua tarefa ficou, porém, dificultada com a subida ao poder de Lukachenko em 1994.
Poucos anos depois da eleição de Lukachenko, e quando as suas obras já não eram vendidas nas livrarias, a autora chegou a ter de responder em tribunal por causa de entrevistas que fizera para o livro Rapazes de Zinco (sem edição em Portugal, Zinky Boys em inglês). Em 2000, acabou por sair do da Bielorrússia “em protesto”. Ao longo de 11 anos viveu em cinco países diferentes: Áustria, Alemanha, Dinamarca, Suécia e França. Ganhou prémios literários importantes em toda a Europa, como o Prémio de Reportagem Ryszard Kapuściński (Polónia) ou o Livro do Ano da Revista Lire (França). Da Bielorrússia, só teve silêncio.
Regressou 11 anos depois, em 2011. “Voltei porque, enquanto escritora, precisava de respirar este ar, de falar com estas pessoas, de vê-las. (…) Voltei porque tinha saudades. Queria ver a minha neta Yanka a crescer. Queria ver o nosso povo e as paisagens. Ainda assim, é difícil viver aqui. É um espaço fechado”, disse numa conferência em maio deste ano.
A filha de um militar que fez livros sobre a guerra
Svetlana Aleksievitch nasceu a 31 de maio de 1948 em Ivano-Frankovsk, no Oeste da Ucrânia, filha de um pai bielorrusso e de uma mãe ucraniana. Depois de o pai, militar, ter terminado a sua missão na Ucrânia, a família mudou-se para Komarovichi, uma aldeia no sul da Bielorrússia. Os pais foram professores na escola primária — profissão que, mais tarde, e já depois do colapso da União Soviética, a filha de Aleksievich viria a exercer.
A0s 18 anos começou a estudar Jornalismo na Universidade de Minsk. Depois de terminado o curso, e após um breve período em que tal como os pais também deu aulas a crianças, começou a escrever para a secção de não-ficção de revistas literárias.
Em 1985, lançou o seu primeiro livro, intitulado em inglês War’s Unwomanly Face e que em português poderá ser traduzido como A Guerra Não Tem Cara de Mulher. Centrando-se nas memórias de mulheres que sobreviveram à Segunda Guerra Mundial, Aleksievitch falou com dezenas de mulheres que lhe lembraram aquele episódio traumático — só na União Soviética, a Grande Guerra Patriótica, como ainda hoje é conhecida, provocou a morte de 26 milhões de civis e soldados. A Bielorrússia perdeu 2,3 dos 9 milhões de habitantes — ou seja, um quarto da população, o que torna a Bielorrússia na república soviética com maiores perdas em termos percentuais em toda a URSS. Por isso, foram tempos que viriam a marcar várias gerações, como explicou Aleksievitch na introdução de A Guerra Não Tem Cara de Mulher:
“Eu escrevi depois da guerra, quando já tinha crescido relva nas trincheiras, quando os esconderijos de três andares já tinham desmoronado e quando os capacetes que os soldados deixaram para trás nas florestas já estavam cobertos de ferrugem. Mas o bafo de morte da guerra também afetou a minha vida. Nós ainda somos das gerações que têm contas a prestar com a guerra. A nossa família perdeu onze membros: o meu avô ucraniano, pai da minha mãe, Petro, que está enterrado algures nos arredores de Budapeste; a minha avó bielorrussa, mãe do meu pai Yevdokia, morreu de subnutrição e com febre tifóide quando os nazis isolaram as regiões controladas pelos partizans; uns familiares afastados foram queimados vivos pelos nazis juntamente com os seus filhos na minha aldeia de Komarovichi; e o irmão do meu pai, Ivan, que foi voluntário na guerra, foi dado como desaparecido em 1941.”
Aí ficou definido o estilo de Aleksievitch, que mantém até aos dias de hoje. Alicerçando-se num processo moroso de várias entrevistas, a autora preocupa-se em dissecar os traumas da União Soviética através do testemunho de cidadãos comuns. “Eu entendo o mundo através das vozes humanas. Elas nunca deixam de me hipnotizar, ensurdecer e enfeitiçar, tudo ao mesmo tempo”, escreveu uma vez.
Acima de quaisquer outras, é nas vozes femininas que Aleksievitch mais consegue capturar a angústia humana — e onde mais se dá pela sua “escrita polifónica, um monumento ao sofrimento e à coragem do nosso tempo”, como reconheceu nesta quinta-feira a Academia Real das Ciências da Suécia. É assim em Rapazes de Zinco, quando recolhe os testemunhos de mães cujos filhos e filhas morreram na invasão soviética do Afeganistão — uma guerra que decorreu entre 1979 e 1989 e da qual pouca informação saía para o cidadão comum. O livro conta-nos a história de uma mãe que, depois de enterrar a filha morta na guerra, se dedicou à tarefa de guardar os cabelos dela espalhados pela casa numa caixa de fósforos. “Deixa-me. É tudo o que me resta dela”, respondeu às perguntas do marido.
É também em Rapazes de Zinco que dá voz a uma mãe que educou o filho segundo os arquétipos soviéticos (“Eu disse-lhe mais uma vez que a nossa vida soviética é linda e que as pessoas são boas. Eu acreditava nisso”) e que mais tarde é confrontada com a sua morte no Afeganistão: “Não aguento mais isto, não aguento. Já estou a morrer há dois anos. Não estou doente, mas estou a morrer. O meu corpo está morto. Nem me fui queimar para a Praça Vermelha [em Moscovo], nem o meu marido lhes atirou o cartão de militante do Partido [Comunista] às caras. Parece-me que já estamos os dois mortos, mas quem sabe… Nem nós sabemos…”.
Aleksievitch também escreveu sobre o desastre nuclear de Chernobyl de 1986. Apesar de ter acontecido na Ucrânia, afetou em grande escala a Bielorrússia graças aos ventos para Norte na altura da tragédia. A sua família e a sua aldeia, junto à fronteira com a Ucrânia, foram vítimas da onda de radiação — e também do facto de as autoridades soviéticas só terem alertado as populações para o acidente 19 dias depois da sua ocorrência.
Mais recentemente, Aleksievitch escreveu sobre os anos que se seguiram ao desmoronamento da URSS, em O Fim do Homem Soviético, o seu único trabalho publicado em Portugal, em abril deste ano, pela Porto Editora. Também aqui se trata do trauma mais recente deste povo que se julga “escolhido por Deus”, como diz uma das vozes retratadas no livro. Trata-se do choque que se seguiu à queda do império em 1991: “De um modo geral levávamos uma vida fechada, não sabíamos nada do que se passava no mundo. Éramos ‘plantas de interior’. (…) Uma Rússia como a que havia nos livros e nas nossas cozinhas [locais privados onde as famílias podiam discutir política sem aparente vigilância] nunca existiu. Só nas nossas cabeças”.
“O que é que Lukachenko fará disto?”
Embora raramente fale na primeira pessoa, preferindo que as histórias se deixem contar pelas vozes e testemunhos dos seus entrevistados, a obra de Svetlana Aleksievitch é, em grande parte, contrária ao Presidente bielorrusso, Alexander Lukachenko. É-o porque contraria a ideia idílica que o ditador quer preservar da União Soviética e do que ela deixou no país — o heroísmo inquestionável dos soldados nas guerras, a inquebrantável fraternidade entre povos, a certeza da imortalidade dos valores do marxismo-leninismo. É-o, sobretudo, porque faz uso das vozes “dos homens pequenos contra as grandes utopias”, como disse numa entrevista.
Numa outra entrevista, de 2009, Aleksievitch concedeu que a Bielorrússia é talvez o país da antiga União Soviética que mais se assemelha aos tempos de outrora. “As pessoas mais ricas da Bielorrússia de hoje em dia, aqueles que conduzem um Mercedes ou um Bentley, são mentalmente o mesmo do que seriam no período soviético. Já passaram 16 anos desde que Lukachenko veio para o poder. Os outros países usaram esses 16 anos para construir uma nova mentalidade, mas isso não aconteceu na Bielorrússia”, lamentou.
Na sua conferência de imprensa após receber o prémio, e ainda antes de Lukachenko lhe ter elogiado “o trabalho criativo”, Aleksievitch colocou a seguinte questão em jeito de pergunta retórica: “O que é que será que Lukachenko fará disto tudo?… Estou curiosa para saber”.
Para Andrei Sannikov, o candidato presidencial bielorrusso, restam poucas dúvidas: “De qualquer maneira, e de uma maneira muito sua, Lukachenko vai conseguir arranjar uma maneira de virar isto tudo a seu favor e de tentar tirar proveito do Nobel”.
Semelhante prognóstico tem Igar Lohvinau, o editor da autora. “É possível que o regime tenha agora finalmente uma mudança de atitude em relação à Svetlana Aleksievitch, porque agora é incontornável que ela é muito importante. Ela agora faz parte da nossa imagem perante o mundo“, diz. No entanto, admite que tudo isso, a acontecer, não passará de uma operação cosmética. “No domingo vamos ficar a saber mais uma vez — como se não soubéssemos já todos — que o Lukachenko ganhou as eleições. Portanto, na verdade, acho que não vai haver grandes mudanças”, lamenta. “Tanto no sistema como nas cabeças.”
Viktor Martynovitch, o escritor a quem a laureada convidou para um café, também é realista quanto às eleições. “No domingo não vamos ver nada que fuja do guião habitual, que passa sempre por uma atuação gloriosa do Lukachenko. As eleições serão sempre assim, ninguém tem dúvidas.”
Por outro lado, defende, a partir de 8 de outubro de 2015, com Svetlana Aleksievitch a receber o Nobel, algo mudou no campo do simbólico — o que, numa ditadura como a Bielorrússia, pode ter um peso considerável: “Finalmente, passados mais de 20 anos de ditadura, vai haver alguém cujas palavras são mais importantes do que as palavras de Lukachenko”.