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António Reis/Observador

António Reis/Observador

Novo Bolhão vai ser o grande mercado de frescos da cidade 

Não vai ser mercado gourmet. Metro vai ter ligação directa ao Mercado. Equacionada a colocação de uma cobertura. Obras começam até final do mandato de Rui Moreira. Anúncio é feito até ao fim do ano.

A obra avança mesmo que não haja dinheiro do QREN para o efeito. O investimento necessário para a reabilitação do Mercado do Bolhão andará no intervalo das propostas anteriormente apresentadas, entre os 12 e os 20 milhões de euros. Mesmo que não haja fundos europeus, a obra é para avançar antes de 2017. Rui Moreira prefere que ela seja feita preferencialmente com dinheiros públicos, mas não fecha a porta ao investimento privado.

O grande mercado de frescos do novo Bolhão vai ficar no piso térreo, ou terrado. No piso superior ficam instalados os restaurantes, o que levanta uma questão de higiene pública (por causa dos pombos e das gaivotas) e que deverá levar à colocação de uma cobertura. Esta é uma questão antiga. A cobertura, que nunca existiu, está no projecto original. Acontece que nessa proposta original a estrutura pesava 250 toneladas e como o Mercado está construído sobre terrenos pantanosos, ninguém arriscou, essa instabilidade do solo impediu que ela fosse erguida (mais adiante o professor e historiador Hélder Pacheco expõe outros motivos).

A instalação de uma cobertura será estudada

António Reis/Observador

Durante o período da duração das obras, que vai levar ao encerramento temporário do Mercado, a Câmara do Porto promete não abandonar os ocupantes, apesar de ainda não dizer de que forma o vai fazer.

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O filme do início de um dia no Bolhão

Quem nunca construiu um mercado sobre o terreno de uma feira, que atire a primeira pedra. Foi o que fizeram os homens a mando de Correia da Silva, arquitecto da Câmara Municipal do Porto e autor do projecto para o Mercado do Bolhão. Faz 100 anos este sábado.

Manoel de Oliveira começava a ser rapazinho de ir à escola quando a obra rasgou o chão à procura de alicerces e as paredes se começaram a levantar do imenso nada que por ali havia entre as ruas de Sá da Bandeira, Formosa, Fernandes Tomás e a menos mediática das quatro, a de Alexandre Braga, que fica a nascente de tudo isto.

A primeira luz do dia quando chega a este Porto de trabalho, já vem tarde. Muito antes dela ter vindo, pelas seis da manhã, já o silêncio começara a ir embora da noite e alguma gente principiara a jornada às escuras.

Dependendo dos dias, [dos camiões] saem flores, frutos, peixe, pão, enchidos, legumes.

O motor de um camião, com o seu barulho de grande porte, é o primeiro a avisar que o mercado está a chegar ao Mercado aos bocadinhos. Depois, mal o volante dobra a esquina, dois faróis bem acordados apontam a luz ao ferro forjado de um portão imponente. Chegou ao fim a função do camião, é preciso fazer baixar a carga, coisa que ainda se faz a braços. Dependendo dos dias, saem flores, frutos, peixe, pão, enchidos, legumes. Entenda-se por Mercado com maiúscula, o edifício. E por mercado todo corrido a letra miúda, as vidas que dão vida a paredes e tectos, mais a sua mercadoria.

Às sete da manhã, o Bolhão está pronto para receber a clientela, mas não há pessoas em torno do edifício quarteirão.

70 mil habitantes, ligação à estação de metro e uma cobertura

Hélder Pacheco, professor de História Social e Cultural, investigador, historiador, cronista da cidade há 25 anos, com mais de 40 livros publicados, aparece um pouco mais tarde e compra pão. É cliente fixo. Entra neste parágrafo como entrevistado e há-de ser a bengala que vasculha o passado e aponta caminhos até ao século XIX. Mas antes, o futuro.

Hélder Pacheco, professor, investigador, historiador, cronista da cidade do Porto há 25 anos tem mais de 40 livros publicados

D R

Que futuro para o Bolhão, “estacionado” num projecto de remodelação que está para avançar há tanto tempo e que nunca avançou? “O Bolhão é um grande mercado de frescos diários, o que é um problema. Para isso a cidade deveria ter ali mais 70 mil pessoas. O seu futuro passa pela capacidade da cidade em se regenerar”. A Câmara do Porto concorda com essa ideia e entende que o novo Mercado pode chamar mais gente ao centro da cidade. E acrescenta argumentos com um factor chamado turismo. São números oficiais: um milhão de turistas visita o Porto todos os anos e desse milhão cerca de quinhentos mil afirmam visitar o Bolhão em inquéritos realizados pela autarquia.

O aumento de residentes, por si, não resolverá o problema, não põe uma pedra em cima do assunto. Diz-nos Hélder Pacheco que outro momento da solução passa pela colocação de uma cobertura: “cobrir o Bolhão com uma estrutura leve. Não é pôr lá um pesadelo em cima”.

Correia da Silva, arquitecto da Câmara Municipal do Porto, foi o autor do projecto para o Mercado do Bolhão. As obras começaram a 19 de Julho de 1914

António Reis/Observador

Aqui, neste mercado a céu aberto encontrámos aquilo a que o crítico chama de deficiência principal. Deficiência estrutural. Deficiência de raiz. Deficiência de ADN. Tão definidora que a divide em três razões plausíveis, quando instado a explicar porque não foi coberto. Primeira: ” um país que não fez a revolução industrial desconfia muito da indústria. O Palácio de Cristal foi tido como um sorvedouro de custos. Segunda razão: “é mais barato sem cobertura. A manutenção é caríssima, exige conservação permanente. As pontes de D.Luis I e de D. Maria só lá estão porque houve gente a cuidar delas”. Terceira razão: “o conservadorismo da cidade. As pessoas estavam habituadas a um mercado tipo feira. Não se viam encafuadas num espaço fechado. O Mercado Ferreira Borges era mais antigo e tinha cobertura. Mas teve de fechar, porque as pessoas não iam lá. E veja-se o exemplo do Estádio do Dragão. Houve pessoas que criticaram aquela cobertura, que ia cair, que não ia aguentar. Agora transponha isto para o início do Século XX”.

A estação de metro do Bolhão, inaugurada em 2002, não tem ligação directa ao mercado. Hélder Pacheco encontra aqui uma hipótese para um futuro mais preenchido: “o metro devia estar ligado directamente ao mercado. Aumenta o fluxo gente. Nem que fosse de passagem”.

A Câmara do Porto não só concorda com esta ideia, como a vai pôr em prática. Basta deitar abaixo uma parede. A parede que existe entre o terrado do Bolhão, em Fernandes Tomás, e a estação do Metro.

A terceira idade que não teve infância

Quem ao longo dos últimos setenta e quatro anos entra pelo lado da rua de Fernandes Tomás e vira à esquerda dá logo de caras com Antónia. Setenta e quatro anos a vender o que a terra dá. Hortos, nabos, batata, e outros que tais: “há cinquenta anos é que era bom. Depois abriram dois supermercados aqui perto e estragaram tudo”.

Há cinquenta anos é que era bom, disse Antónia, o cabelo grisalho, a expressão a sorrir, ela que há cinquenta já não fazia o caminho a pé entre Gondomar e o centro do Porto, todos os dias, noventa minutos para cá e noventa minutos para lá. Isso de não o fazer foi a partir dos 22 anos. Antes dessa idade caminhava as três horas por dia, com o trabalho do mercado pelo meio. Começou aos sete anos. Uma criança. Não era a única. Por ali havia tantas. “Vim trabalhar com a minha mãe. Houve uma altura em que a minha mãe me mandou para uma fábrica, fazer caixinhas. Foi onde eu aprendi a ler e a escrever. Aqui e lá na fábrica”. Sobre os tempos difíceis, não quer deixar passar a oportunidade para deixar bem claro o seguinte: “éramos pobres, trabalhei muito, muito, muito, mas nunca passei fome. Comia a sopa feita aqui. Às vezes havia umas sardinhitas”. Antónia tem banca no Bolhão, tem 81 anos e nunca passou fome. Tem a banca na parte superior do Mercado.

A ligação entre o maior clube da cidade e o mercado é notória

António Reis/Observador

Por alturas da década de 1930 chegou-se à conclusão de que fazia falta uma ponte para ligar os lados de Sá da Bandeira e Alexandre Braga. Por esses dias, Manoel de Oliveira experimentava os metros inicias de filme na ribeira do Porto. Daí surgiria a curta metragem Douro, Faina Fluvial. Por essa ponte se chega de Antónia a Deolinda. Que só lá está diante da banca, e diante dos dias, “para espairecer a cabeça”. Espairecer a cabeça tem muito que se lhe diga. E ela diz. Diz que o filho morreu aos 52 anos: “o senhor deu-lhe uma doença e levou-o em três meses”. Diz por outro lado que o marido é uma força da natureza: “tem 89 anos. No domingo levantou-se e você havia de ver a terra que ele cavou. Ele tem muita genica com ele”.

"Éramos pobres, trabalhei muito, muito, muito, mas nunca passei fome. Comia a sopa feita aqui. Às vezes havia umas sardinhitas."
Antónia, 81 anos

É a vida que o Mercado do Bolhão tem para contar, à entrada do centenário do início da sua construção. E as obras? “Quando as obras começarem vou embora. Isto está tudo velho, foi ao desmazelo. É gatos, é ratos. O povo tem nojo. Os turistas a rirem-se, a fazer pouco”. Por acaso chegam dois turistas, um casal. Nem fazem pouco, nem fazem muito. Olham para baixo a partir do varandim, com olhos de quem estava há espera de ver mais, muito mais. Mais gente, mais barulho, e quando se diz mais gente, diz-se mais clientes e mais vendedores.

Ali ao lado havia uma loja de meias. Só lá está o quiosque, encaixado num canto. “Veja o exemplo da rapariga da loja de meias. A mãe morreu e não a deixaram ficar aqui a trabalhar. A licença era da mãe. Eles têm o tacho deles garantido, não se interessam. Quem vai embora dá baixa no posto e não deixam vir mais ninguém”.

Quem vende queixa-se da falta de cuidado, de manutenção do espaço

António Reis/Observador

Outra mulher entra na conversa que lhe tinha chegado à banca, vem assinar por baixo o testemunho da vizinha: “não deixam passar licenças para vender. A minha nora está em casa desempregada. Vinha ela para aqui e eu ficava em casa. Mas não pode ser”.

Senhoras com sessenta, setenta, oitenta anos, não conhecem outro caminho para o trabalho que não o caminho do Mercado do Bolhão. Maria da Conceição vende hortaliça desde os 8 anos: “vinha a pé dos Carvalhos, filho. Duas horas a pé com a trouxa na cabeça, com molhos de hortos e de couve galega”. E Maria Santos, agarrada à canadiana por causa de uma dor ciática (a vizinha de banca diz que é para ter lugar no autocarro e ri) : “vinha a pé de Gulpilhares. Duas horas a andar, filho. Ao meio-dia ia embora. A minha mãezinha dizia que parávamos na Rasa para comer. E chegávamos à Rasa e ela dizia anda meu amor anda, anda que comemos em casa. E eu cheia de fome”. E o Bolhão agora? “Agora é o meu centro de dia”.

Voltando à questão das licenças, levantada por várias vendedoras. Está no regulamento que assim seja, que não possam ser emitidas novas licenças, e que nas actuais não possa ser feita alteração o nome. Também essa política deve mudar quando a reabilitação estiver em marcha .

Estamos no Bolhão sem censura. A língua resvala.

Vai para nove anos, contados a partir da data do casamento de um casal de vendedores dos mais novos, que a paisagem do Bolhão está riscada por andaimes a toda a volta e de cima a baixo. A julgar o tempo pelo tal calendário dos noivos, os ferros foram postos em frente às bancas por alturas do lançamento do Filme Falado, de Manoel de Oliveira. Filme Falado. É o que sugerem duas irmãs de São Pedro da Cova. Tão frescas com o peixe que vendem no Bolhão vai para 47 anos, Ana Maria e Alice, mulheres de palavras prontas, fartas dos andaimes. “Estamos fartas desta merda. Parece que já estão aqui há 50 anos”. Também conhecidas por catatuas, Ana Maria e Alice têm saudades do João Tolo, que vinha sempre com a viola na mão e cantava músicas com letras ordinárias. “Uma vez metemos-lhe um caranguejo corre-corre na cancela. Ele baixou as calças e ficou com a colhoada toda à mostra e virada para a velhota do talho aqui do lado. Ui! Ela ficou uma víbora. Pegou num machado e disse que cortava aquilo”.

As palavras não são tímidas no Mercado do Bolhão, são, antes, marca do local e da região

António Reis/Observador

Ao que parece o João Tolo morria de amores por uma das catatuas: “ele queria deitar-me na cama com ele. Nem a cara lavava o filha da puta, imagino o resto”.

A conversa não pára o negócio. Enquanto recebe uma nota de cinco euros e vende o peixe, esta catatua lembra-se do troco que uma vez deu a um homem de camisola amarela: “vinha aqui e eu metia-me com ele. Uma vez veio com a mulher e apontou para mim, a dizer que eu me metia com ele. Veja lá que o cheira-o-cu à canalha foi fazer queixa à mulher”.

São memórias do tempo de raparigas espigadotas, mas também as há dos dias de uma relativa inocência, como a do episódio do senhor que vinha de Trás-os-montes para ver a mulher ao hospital: “perguntou onde era a casa das meninas. Das putas! E nós como éramos meninas dissemos é aqui! Ele tinha vinte escudos para dar”. Um filme falado, Ana Maria e Alice, com bolinha vermelha no canto superior direito.

Partículas da história dos primeiros passos

O projecto de construção do Mercado do Bolhão apanhou a transição do regime. Enquanto o país erguia a bandeira republicana, o Porto fazia “uma experiência muito interessante entre republicanos e monárquicos”, nas palavras de Hélder Pacheco. Terá sido um exemplo para Portugal inteiro.

A Câmara do Porto tinha um presidente monárquico, mas era composta por vereadores monárquicos e republicanos. A seguir ao 5 de Outubro manteve a vereação, mudando apenas o presidente, tendo saído do cargo o monárquico e assumido o lugar um republicano: “terá sido a única câmara do país que se manteve”. E assim, neste contexto, começou a sair do chão o actual Mercado, no espaço da anterior Feira do Bolhão, que ali existiria desde 1838.

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