Índice
Índice
À primeira vista, foi um debate de cavalheiros. Poucas interrupções (os microfones só tiveram de ser desligados uma vez), o tom de voz quase sempre baixo e muito poucos ataques pessoais: JD Vance não atacou Tim Walz pelas mentiras no seu passado militar; Tim Walz não recordou os comentários do passado de Vance sobre “as mulheres com gatos e sem filhos”. Críticas diretas só mesmo a Kamala Harris e Donald Trump. E houve até abertura para alguns consensos em termos de políticas: Vance mostrou-se a favor da licença parental paga pelo Estado e Walz reconheceu que “todos querem ordem na fronteira”.
No final da hora e meia de debate entre os dois candidatos à vice-presidência dos Estados Unidos, o que ficava claro é que ambos jogaram à defesa. O objetivo parecia ser apenas o de falar diretamente a um eleitorado moderado, do centro. Muito provavelmente porque é nos indecisos de uns poucos estados que se joga esta eleição e os candidatos foram disciplinados para este frente a frente.
Os piscares de olho às bases surgiram à direita no tema da imigração e à esquerda no tópico do aborto, mas longe da retórica mais agressiva usada no último debate entre Donald Trump e Kamala Harris. Mas também houve fraquezas a registar. Por mais minutos que passassem, Tim Walz não conseguiu descolar dos múltiplos exemplos do estado do Minnesota, onde é governador, falhando por vezes a mensagem nacional. Já JD Vance teve de fazer muitos recuos face a propostas que defendeu no passado — e não conseguiu desenvencilhar-se da questão da invasão ao Capitólio.
Ao centro, os exemplos do Minnesota e os ataque a Trump. Como Tim Walz debateu contra JD Vance
O candidato democrata à vice-presidência dos Estados Unidos da América parecia ter um guião para este debate. Quando era questionado pelas jornalistas, começava por abordar o tópico, respondia o que queria (e até fugia a certas perguntas quando não lhe era conveniente), dava exemplos da obra feita no estado do Minnesota, onde é governador, e apontava baterias contra Donald Trump. Ataques diretos a JD Vance foram raros e até houve momentos de concordância. “Desfrutei do debate de hoje até agora”, chegou a confessar a certa altura Tim Walz.
Em praticamente todos os tópicos discutidos, Tim Walz atacou diretamente o ex-Presidente. Logo na primeira questão, confrontado sobre se apoiaria um ataque contra o Irão num momento de aumento de tensão no Médio Oriente, o democrata não foi categórico. Por um lado, o candidato a vice-presidente lembrou que tudo começou com o 7 de outubro, quando os “terroristas do Hamas massacraram israelitas”, por outro, considerou importante que se “termine com a catástrofe humanitária na Faixa de Gaza”.
[Já saiu o primeiro episódio de “A Grande Provocadora”, o novo podcast Plus do Observador que conta a história de Vera Lagoa, a mulher que afrontou Salazar, desafiou os militares de Abril e ridicularizou os que se achavam donos do país. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube]
Aproveitando este tópico, no que definiu como sendo um “mundo perigoso”, Tim Walz acusou o antigo Presidente de ser “perigoso” e de não esconder “a sua admiração” por autocratas, como Vladimir Putin. Neste sentido, frisou ainda a “liderança inconstante” na maneira como Donald Trump geriu a política externa dos Estados Unidos. Prova disso foi, segundo o governador do Minnesota, o facto de ter retirado Washington do acordo nuclear com o Irão. “O Irão está mais próximo de desenvolver armas nucleares agora por causa de Donald Trump”, frisou.
Os ataques a Donald Trump sucediam-se, muitos deles focados quer na sua atuação quando passou pela Casa Branca, quer pelas suas declarações ou ações públicas. No que toca a uma questão sobre alterações climáticas, Tim Walz atacou o ex-Presidente por ter convidado “empresários da indústria petrolífera para a sua mansão em Mar-a-Lago para lhe darem donativos para a campanha” em troca de uma redução de impostos.
Num tema bastante central na campanha republicana, Tim Walz pegou na questão da imigração e denunciou o que diz ser uma estratégia para que o tópico continue a ser o “principal assunto” repetido por Donald Trump até à exaustão. Acusou o magnata de “demonizar” uma comunidade, quando alegou, no frente a frente com Kamala Harris, que imigrantes do Haiti comiam “gatos e cães”. Também trouxe a debate o muro com o México, um tema a que o magnata dedicou muita atenção em 2016. “Disse que seria fácil e que construía um muro com o México. Esse muro não foi 2% construído e o México não pagou um centavo.”
Os ataques a Donald Trump foram uma constante e poucas vezes se assistiu a confrontos diretos a JD Vance, mantendo um tom cordial e nada hostil. Um dos poucos momentos que Tim Walz elevou a voz ocorreu na secção sobre a proteção da democracia, quando questionou diretamente o adversário sobre se o ex-Presidente tinha perdido as eleições em 2020.
Noutro padrão no que toca à prestação de Tim Walz relacionou-se com as inúmeras referências no Minnesota. Por várias vezes e em vários tópicos, o governador daquele estado lembrou a obra feita e como quer que algumas medidas sejam aplicadas a nível federal. Assim, o democrata quis mostrar que não é inexperiente nas lides políticas e que também domina assuntos que vão desde a economia até à saúde. Em contrapartida, os Estados Unidos são muito mais do que o Minnesota — e muitos estados têm problemas muitos distintos.
Por exemplo, para revelar a obra feita, Tim Walz duvidou da solução de terrenos estatais para construir mais casas apresentada por JD Vance, indicando que, por exemplo, não existem muitos terrenos daquele tipo no Minnesota. Outro caso: quando o democrata realçou que o pagamento da licença de paternidade paga é algo que acontece com frequência no estado que governa.
Adicionalmente, em termos políticos, Tim Walz aproveitou todas as oportunidades para piscar o olho ao centro político e também para um eleitorado específico: a classe trabalhadora branca, que Kamala Harris tem tido alguma dificuldade de captar. Aliás, a candidata a Presidente escolheu o governador do Minnesota para seu vice-presidente por ser precisamente alguém eficaz junto àquela setor da população, essencial para vencer as eleições, principalmente nos swing states.
Como tal, Tim Walz apresentou-se como um rosto do bipartidarismo, lembrando que tomou parte de várias negociações com republicanos quando foi congressista. No tópico da imigração, o democrata lembrou que os dois partidos chegaram a acordo para um plano para a fronteira, que permitia ter “mais agentes na fronteiras e mais fundos públicos”, ainda que Donald Trump tenha depois pedido o seu ‘chumbo’ — que acabou por acontecer com os votos dos congressistas mais pró-Trump.
Ainda na imigração, o democrata reconheceu que todos “querem ordem na fronteira”, mas é preciso tratar com “dignidade” aqueles que lá chegam. Lembrou também que Kamala Harris foi procuradora-geral da Califórnia, um estado fronteiriço com o México, e que investigou e desmembrou redes de imigração ilegais e gangues transnacionais.
Sobre a posse e porte de armas, Tim Walz reiterou que “ninguém vai tirar armas a ninguém” e que defende a segunda emenda da Constituição norte-americana. “Sou caçador, tenho uma arma de fogo. A candidata a Presidente também tem uma arma”, salientou o democrata. Num tom conciliatório, e afastando-se de posições mais extremistas no seio do Partido Democrata, defendeu que “há capacidade em encontrar soluções em que se protege crianças” nas escolas de tiroteios “e a segunda emenda”.
Na economia, o candidato a vice-presidente também se atreveu pouco. Apoiou o plano económico desenhado pela equipa de Kamala Harris, defendeu habitação mais acessível e colocou “a classe média” no centro das preocupações dos democratas. Já sobre o aborto, também quis esclarecer que não é “pró-aborto”. É antes “pró-liberdade” para a mulher “poder fazer o que quiser” com o seu corpo.
A bandeira da imigração, a história de vida e as piruetas ideológicas. A versão contida de JD Vance de olho no eleitorado indeciso
Um candidato moderado, conciliador, sem recorrer a ataques pessoais contra o adversário e que até recuou nalgumas das suas propostas mais radicais. Foi assim a prestação de JD Vance na noite desta terça-feira, com uma única exceção: o tema da imigração, onde não cedeu uma vírgula nas propostas que a sua campanha tem defendido. Com uma nuance — a responsabilidade nunca foi colocada diretamente em Tim Walz, mas sempre em Kamala Harris, com destaque para o epíteto “czar da fronteira” que a campanha de Donald Trump tem promovido.
Foi o tópico onde Vance foi mais incisivo. Falou numa “hemorragia” e em “comportas abertas” e acusou Harris de permitir a entrada em massa de opióides no país através da imigração. No caso de Springfield — a cidade do Ohio onde Trump afirmou no debate com Harris que os imigrantes haitianos andam a comer animais de estimação —, Vance evitou o ridículo ao não falar de animais, muito embora tenha sido ele um dos primeiros promotores dessa teoria da conspiração. Em vez disso, repetiu uma e outra vez a ideia de que a cidade representa um problema mais lato de toda a América: os “milhões de imigrantes ilegais” que estão a “competir com os americanos” por salários dignos e habitação acessível.
Até quando foi alvo de um fact check por parte de uma das moderadoras sobre o tema — que notou como muitos desses imigrantes haitianos estão legais, através de um esquema de proteção de asilo temporário —, Vance não desarmou: “Essa candidatura pode ser feita quando se é um um imigrante ilegal e é-lhe concedido estatuto legal graças à política de portas abertas de Kamala Harris”, disse. “Isso é um flirt com a imigração ilegal.”
O candidato a vice-presidente agarrou assim a base. E depois continuou a tarefa que parece ter sido uma das principais razões por ter sido escolhido para o lugar: explorar as suas raízes da classe trabalhadora branca da Appalachia, que pode ser decisiva nesta eleição em estados como a Pensilvânia. JD Vance invocou o seu exemplo pessoal muitas e muitas vezes ao longo de todo o debate: falou da “adição a opióides” da sua mãe e insinuou que ela considerou fazer um aborto e que lhe confessou que isso “teria destruído a sua vida”; lembrou que a sua avó “contraiu dívidas médicas para poder pôr comida na mesa” e como muitas vezes ela “não tinha dinheiro para ligar o aquecimento”. A sua história de vida dominou quer a declaração inicial como a final.
Mas se JD Vance pode ter conseguido pontos junto do eleitorado que disputa com recurso ao seu passado e a uma posição firme na imigração, nem sempre foi eficaz ao longo de todo o debate. Em algumas áreas, apresentou propostas vagas, como a ideia de usar “terrenos federais” para construir habitação sem explicar quais ou quando defendeu que a melhor forma de lidar com os tiroteios nas escolas era conseguindo portas que “tranquem melhor” e “janelas reforçadas”.
Pior do que isso: onde Vance não conseguiu, de todo, ser eficaz, foi em distanciar-se de declarações polémicas do passado, tanto suas como do seu candidato a Presidente. Umas vezes por falta de explicação convincente. Foi o caso da sua mudança de opinião face a Trump, que justificou com as “fabricações dos media”, mas também com a falta de “ajuda” do Congresso durante o mandato do Presidente. Vance também tentou elaborar o “conceito” para o plano de saúde que Trump mencionou de raspão no último debate, mas limitou-se a repetir que o ex-Presidente “salvou” o Obamacare — apesar de no passado ter tentado reverter essa lei.
Outras piruetas foram ainda mais difíceis de fazer, por representarem uma completa inversão de posições que defendeu no passado. Foi o caso da redução de impostos de Trump de 2017: em março, JD Vance confessava ao Politico não concordar com a parte da descida para os mais ricos; agora diz-se “orgulhoso” dessa reforma. Outro tema onde reverteu totalmente a sua posição foi em relação ao aborto: há apenas dois anos defendia que o aborto fosse proibido a nível nacional, enquanto agora segue a posição de Trump de “deixar os estados tomarem a decisão individualmente”.
Mas a área onde Vance mais tropeçou foi quando se recordou a invasão do Capitólio, mais perto do final do debate. O candidato que chegou a defender que se despeça “cada funcionário intermédio” em Washington para ser substituído “por um dos nossos” tem sido mais ambíguo no que diz respeito ao 6 de janeiro e voltou a sê-lo. “Eu e Donald Trump achamos que houve problemas na eleição de 2020, mas vocês acusam-nos de não respeitar a Constituição”, disse, afirmando que não foi assim tão grave porque Trump apelou a protestos pacíficos. “A censura de Harris é uma ameaça muito maior à 1ª Emenda.”
Ao ser repetidamente confrontado por Walz sobre se considera que os resultados da eleição de 2020 foram legítimos, JD Vance limitou-se a responder uma e outra vez que “a censura” promovida por Kamala Harris é a maior ameaça à democracia norte-americana. Concretizando, só conseguiu dar como exemplo os posts apagados em redes sociais sobre a Covid-19.
O resto do tempo, porém, foi um JD Vance muito mais conciliador e moderado que se apresentou aos eleitores. Sublinhou que é a favor dos tratamentos de fertilidade, apesar de ainda em junho, enquanto senador, ter votado contra uma lei para financiar este tipo de tratamento. Disse ser necessário “gastar mais recursos” para criar creches e afirmou haver uma “solução bipartidária” para que haja licença parental paga pelo Estado. Chegou até a afirmar que considera que Walz quer “resolver o problema da imigração” — “Kamala Harris é que não”.
Um exemplo claro que resume todo o programa do debate de JD Vance esta noite. Uma aparente abertura para consensos ao centro, recuando até em propostas polémicas do passado e um tom que nunca foi de ataque a Tim Walz. Chegou a lamentar o facto de o filho do adversário ter testemunhado um tiroteio numa escola (“Cristo tenha misericórdia…”) e até na mensagem final disse que estará sempre “orgulhoso” pelos americanos, independentemente de votarem em si ou em Walz. O alvo foi um e apenas um: Kamala Harris, a inimiga número um.