Minutos após o desfile em que apresentou a sua 30ª coleção, no passado sábado, Nuno Baltazar anunciou que tinha sido o último na passerelle do Portugal Fashion. Com 20 anos de carreira e presença assídua no evento de moda portuense desde 2014, o criador expôs, dois dias mais tarde, os argumentos por detrás da rutura com a organização. Fê-lo através de um comunicado público na sua página de Facebook, elegendo este meio por ser “exactamente assim que eu e a grande maioria dos meus colegas temos sido ‘informados’ sobre os mais variados assuntos”, segundo escreveu.
Enquanto endurece as críticas ao Portugal Fashion, Nuno Baltazar, que há menos de um ano se mudou para uma nova loja e atelier no centro do Porto, prepara-se para reestruturar a própria marca. Ao “bater com a porta”, expressão que usou no dia do desfile quando anunciou a retirada, o designer de 43 anos desvinculou-se da organização que, através de uma estrutura montada duas vezes por ano, possibilitou as últimas apresentações públicas do seu trabalho. Por outro lado, Baltazar aponta a falta de esclarecimento, a dualidade de critérios entre criadores e “falhas gravíssimas” nos bastidores do desfiles. Em janeiro deste ano, a organização fez saber que continua a trabalhar com verbas do verbas do biénio 2017–2018, não tendo, na altura, qualquer informação sobre os prazos da candidatura aos fundos europeus de que tem beneficiado.
“É muito triste não saber se vou voltar a fazer um desfile ou como é que o vou fazer”, refere ao longo da conversa com o Observador, esta terça-feira, 19 de março. Todas as opções estão em aberto, incluindo voltar à ModaLisboa, calendário que deixou em março de 2014, cerca de dez anos depois de se ter estreado na passerelle lisboeta em nome individual. Sem arrependimento, Nuno Baltazar mantém uma certeza: continuará a produzir coleções. Sobre a partida, resumiu o sentimento com uma frase de Frida Kahlo: “Onde não puderes amar, não te demores”.
Como é que foram estas últimas três semanas?
Muito complicadas. Sou um criativo, acho que se percebe, até pelo meu trabalho, que me envolvo e emociono com as coisas que observo. Obviamente, esta decisão não foi fácil. Estar a desenvolver e a terminar uma coleção e a preparar um desfile no contexto em que o fiz, sabendo já a decisão que tinha tomado, foi um processo muito difícil. Talvez tenha sido, até hoje, o processo mais difícil no desenvolvimento de uma coleção. No fundo, é quase como um divórcio que se anuncia e onde últimos tempos são sempre mais complicados.
Em que momento teve a certeza de que ia deixar o Portugal Fashion?
Quando tive a certeza de que o que me era dito sobre os pressupostos sobre as ações internacionais não eram iguais para toda a gente.
Percebeu isso quando?
Três semanas antes do desfile. Houve uma conversa em que percebi, porque foi óbvio, que os pressupostos eram diferentes. Os motivos, não sei. Pedi esclarecimentos que não me foram dados, mais uma vez. Não foi uma decisão que tenha surgido do nada, foi um processo em que a relação se foi deteriorando cada vez mais. Nunca desisto sem dar uma primeira oportunidade, uma segunda e, muitas vezes, até chego a dar a terceira. Mas cheguei a um ponto em que já não acredito na direção do Portugal Fashion, nem nas intenções que foi manifestando comigo. Não podia continuar a compactuar com algo de que discordo e em que não me revejo.
Refere-se à forma como foi excluído da estratégia de divulgação internacional do Portugal Fashion. Esse foi o fator que mais pesou nesta sua decisão?
Não, o que mais pesou foi perceber que havia uma diferença de critérios entre criadores, apesar de eu ter essa disponibilidade e essa vontade. Uma coisa era dizerem que não me enquadrava no que queriam fazer ou que a minha estratégia era outra e aí, apesar de ser sempre questionável, teria de aceitar. Quando me são apresentados e exigidos pressupostos que não tinham sido exigidos anteriormente a todas as pessoas e quando, mesmo depois, volta tudo a acontecer, é isso que provoca a rutura definitiva. É a diferença de critérios e, principalmente, a ausência de informação. Desde que comecei a ter todas essas dúvidas, fiz várias perguntas, enviei e-mails, avisei várias vezes de que os e-mails tinham de ser respondidos de um modo formal e nunca foram. Tenho um percurso, um trabalho e um nome, é justo que as minhas perguntas sejam feitas e que tenham uma resposta.
Que pressupostos é que lhe foram exigidos?
Que tivesse uma estratégia comercial em simultâneo. Antes de exigir qualquer estratégia, o próprio Portugal Fashion deveria dizer qual é a sua, coisa que não faz. Não é claro, não é público e não é definido quanto a estratégias e a objetivos concretos. Divulgar a moda portuguesa é muito vago, tem de ser um bocado mais concreto do que isso. Quando eu, numa reunião em outubro, exponho a minha vontade e os meus objetivos para as ações internacionais — uma reunião onde, praticamente, só eu falei — não houve qualquer tipo de interação da parte do Portugal Fashion, apenas me ouviram. Quando me fazem, finalmente, um convite para uma ação internacional, que seria em Milão, esse convite vem com uma obrigatoriedade de uma estratégia comercial que teria de ser levada a cabo na mesma estação. Este convite acontece em dezembro de 2018 para uma ação que teria de acontecer na segunda ou terceira semana de fevereiro. Não tendo eu encetado ainda nenhum contacto, seria absolutamente inviável poder corresponder a essa necessidade de uma forma eficaz. Não é só chegar, pendurar umas peças e fazer um showroom ou o que quer que seja. Agora, ter de facto uma estratégia comercial, ter uma ação preparada e estruturada e contactos feitos, de dezembro para fevereiro, é impensável.
Depois, foi-me dada a oportunidade (entre aspas) de poder integrar uma outra ação da ANJE [Associação Nacional de Jovens Empresários], chamada Next Step, que passaria por uma presença na White, em Milão. Aí, teria de pagar logo, na totalidade, o valor dessa participação para, depois, me ser devolvido 50% desse valor, sem qualquer tipo de indicação de quando é que esse valor seria ressarcido. É uma opção que questiono, mas que, em última análise, poderia aceitar se ela fosse igual para toda a gente. E não foi. Em setembro de 2018, houve ações em Paris com um dos meus colegas, que não teve qualquer ação comercial e que voltou a não ter em fevereiro deste ano. Há aqui uma óbvia dualidade de critérios e é isso que questiono. Apesar de achar também que as presenças internacionais, no limite, até deveriam ser propostas pelos próprios designers à organização. Apresentando os seus argumentos, seriam escolhidos e não de uma forma quase pessoal. Dei o benefício da dúvida e pedi justificações que nunca me foram dadas. Recusei fazer parte de um projeto que não me dá provas de que posso confiar nele. Porque aquilo que mais queria era ser esclarecido. Até posso estar muito enganado, mas, se não me são dadas respostas, como é que posso saber?
Apesar de não ter tido qualquer justificação, que motivos encontra para a dualidade de critérios de que fala?
Pois, adoraria ter uma resposta. A minha convicção — vale o que vale — é de isto é potenciado pela falta de organização. Falta de organização e uma comunicação muito deficitária e tardia. Se calhar, na minha situação, ainda foi possível ser substituído. No caso do meu colega, que não foi fazer ação nenhuma, talvez já não houvesse hipótese. Acredito que não seja uma coisa pessoal, mas estamos a falar de uma coisa demasiado séria para acontecer desta maneira. Não estamos a falar de ações que começaram há seis meses, estamos a falar de uma associação que lidera um projeto que já tem anos, os suficientes para se exigir que as coisas sejam feitas em condições. Não é transparente a forma como estas ações são preparadas. Nem estas ações, nem o próprio evento nacional. Inclusivamente, agora, houve desfiles que estavam marcados no calendário e que não aconteceram. Parece que não é preciso falar sobre o assunto, mas aconteceu. Quem é que cancela um desfile no próprio dia?
Mas identifica falhas também a esse nível? Nas críticas que fez, salvaguarda as equipas técnicas do Portugal Fashion.
Salvaguardo porque as equipas técnicas são os verdadeiros heróis do Portugal Fashion, são eles que suportam tudo o que é feito. As coisas são muito mal preparadas, do ponto de vista da direção, e são as pessoas que lideram as equipas, que não fazem parte da estrutura e que trabalham durante estes dias, que asseguram as condições mínimas. Nem preciso ir muito mais longe. Esteve nos bastidores e não viu nenhuma casa de banho, pois não? Não sei se tentou beber água, mas o único ponto de água que havia nos bastidores não funcionou durante uma boa parte do tempo em que estive lá. E não foi a primeira vez. Há seis meses, tinha acontecido exatamente a mesma coisa. Chamei a atenção, tive um almoço, disse tudo. Por isso é que escrevo o que escrevi. A partir do momento em que comuniquei tudo isto a quem devia comunicar, tenho liberdade para fazê-lo. Há falhas gravíssimas. Não quero culpabilizar ninguém do ponto de vista pessoal, mas se não há capacidade para organizar o evento então não se faz. Ou então faz-se uma coisa à escala daquilo que se consegue organizar. Não desta maneira.
Está a falar de um evento demasiado grande face à real capacidade da organização?
Acho que houve um foco demasiado grande na dimensão, no número de pessoas que as salas levam, no número de pessoas que entra no Portugal Fashion, como se isso fosse — e certamente é — um critério de avaliação na hora de atribuição de verbas. Mas não deve ser. Em lado nenhum do mundo, a qualidade de um desfile é avaliada pelo número de pessoas que está a assistir, muito pelo contrário. Os melhores desfiles são coisas muito exclusivas, não são do acesso do público em geral. São clientes da marca, compradores, algumas figuras públicas e imprensa e não o que acontece nestes desfiles. Os atrasos. Faço questão de desfilar àquela hora [no início do dia] exatamente para evitar isso. Há seis meses, chegou a haver um atraso de duas horas no calendário do Portugal Fashion, com pessoas na fila, clientes que compram as nossas coleções à espera de pé durante duas horas. Não é assim que se fazem as coisas. Isso afasta o público e isso notou-se imenso nesta estação. Tive vários clientes a agradecer os convites e a dizer que não iam, pela forma como são tratados, por estarem tempos infinitos na fila, pelo facto de entrarem e de já não se conseguirem sentar por não haver qualquer tipo de cuidado na maneira como é dada a entrada das pessoas. E acho impossível não se ter sentido que não há alegria nos bastidores, quando tem de ser um momento de vontade, de efervescência, de alegria do designer, das manequins. Quando as manequins quase não têm água para beber e, para irem à casa de banho, têm de atravessar sabe-se lá quantos metros… No meu caso, por exemplo, nem sequer consegui sair da sala porque a de desfiles já estava cheia. Quis e não consegui ir à casa de banho. Estamos a falar de um pormenor que parece tão pequenino, mas não é. É muito revelador da falta de cuidado, da falta de atenção. As pessoas têm de ser bem tratadas. Foi para estes rastilhos todos que tenho vindo a chamar a atenção, com sugestões e com críticas construtivas. Quando chego a este ponto é porque já a coisa, infelizmente, ultrapassou o aceitável.
Para fazer estas críticas, o Nuno tem de ter um termo de comparação. Em que momento é que as coisas correram melhor?
Quando volto a apresentar coleções no Portugal Fashion, em setembro de 2014. Foi um desfile no Mosteiro de São Bento da Vitória. Foi irrepreensível, com todas as condições possíveis para um off location, que é sempre diferente. Mas as coisas têm vindo a degradar-se de uma forma muito vertiginosa. E, desde que esta direção assumiu, basta ver… A tenda do Parque da Cidade. Estas últimas três edições do Portugal Fashion foram absolutamente catastróficas. Se não fosse o trabalho dos designers e das equipas que trabalham sem condições e sem sequer um obrigado, muitas vezes. Por isso é que fiz questão de mencionar todas as pessoas que construíram este Portugal Fashion. Estavam todas na minha folha de sala, do carpinteiro que fazia parte da equipa da Eusébio Rodrigues a todos os cabeleireiros que faziam parte da equipa do Vasco, os maquilhadores da MAC, todos os aderecistas.
Porque é que tem havido essa degradação? Acha que está relacionada com a demora dos fundos europeus?
Isso não sei. Mais uma vez, os criadores não são tidos nem achados. Não lhes é comunicada coisa nenhuma. Houve, inclusivamente, um suposto acordo com a ModaLisboa, do qual soube pelas redes sociais. Não há comunicação. A partir do momento em que uma edição do Portugal Fashion tem um patrocínio da Pedras Salgadas, não consigo entender como é que pode faltar água, nem que fosse com gás, nos bastidores. E acho que, se as verbas não chegam, então não se faz. Até para quem desbloqueia estas verbas ter noção de que estes atrasos influenciam o normal decorrer das ações. Mas não me parece que esse argumento justifique falhas deste nível. Há sempre coisas que se conseguem fazer, quanto mais não seja com patrocínios. Honestamente, acho que o Portugal Fashion nem sequer tem equipa interna suficiente para fazer uma edição como deve ser. Por variadíssimas situações, é óbvio que não percebem do que estão a tratar. Todos nós já tivemos propostas para assumir cargos para os quais não estávamos preparados e aí temos de saber dizer que não.
Referiu no seu comunicado que a organização trabalha em função das candidaturas aos apoios e não realmente para promover a moda nacional. Considera que existem prioridades trocadas?
Totalmente. A partir do momento em que os designers não são envolvidos em qualquer tipo de decisão, não consigo perceber como é que uma organização se propõe a promover a moda portuguesa. E também era bom que alguém definisse o que é a moda portuguesa — se estamos a falar de moda de autor, de moda industrial, de moda comercial, que são conceitos completamente diferentes e que não são, quanto a mim, compatíveis. Cada um deles tem o seu próprio espaço. Mas se assim é, há que assumir e que ouvir todos. Ou que alguém seja ouvido. Eu, pelo menos, não sou. Avisei varias vezes que um dia ia bater com a porta e nunca ninguém acreditou.
Acha que algum designer tem essa influência na organização?
Não lhe consigo dar essa resposta. Acho que não é apenas comigo, é geral. Entre os criadores, existem pessoas com personalidades diferentes. Umas mais reativas, outras mais acomodadas. Depois, existo eu, que defendo aquilo em que acredito. Sobretudo, depois de lutar para que tudo corresse bem.
A tentativa de formar uma espécie de sindicato de designers fez parte dessa luta?
São coisas independentes. Na minha luta geral, sim. Uma associação que represente os designers faz muita falta no panorama da moda portuguesa. Não é para defender os interesses dos designers, mas para ajudar a clarificar os organismos e a forma como as ações são levadas a cabo. Pelo menos isso. Porque quando se entra neste tipo de associações, muitas vezes pensam que é uma defesa cega dos interesses de uma classe e não é isso que acho que seja necessário. O necessário é que tudo seja claro e que se promova também o diálogo entre designers, porque isso é fundamental. Há aqui também um jogo que utiliza o facto de ser uma classe muito dispersa. Nunca há encontros que potenciem conversas. Uma coisa é ser eu, que na verdade acabo por me estar a expor a uma situação que pode vir a ser muito prejudicial para mim no futuro. Não sei o que pode acontecer. Mas, de facto, se houvesse uma associação de designers, não seria eu, pelo menos não sozinho, a tomar esta posição. Felizmente, todas as manifestações que tenho tido na publicação que fiz vêm, muito além do que esperaria, reforçar a admiração pela coragem que tive. De facto, expus-me aqui a uma situação mas espero que, no fundo, valha a pena, mais que não seja para quem fica. Que isto sirva para refletir, para corrigir e para esclarecer. Isso é fundamental. Imagine, eu posso estar completamente enganado. Mas se deixam tudo em aberto, se não há respostas…
Essa associação não avançou porquê?
Porque não teve a adesão da esmagadora maioria dos meus colegas. Acho que há uma falta de entendimento da importância dessa união. Se fosse hoje, se calhar o resultado era diferente. Cada vez mais, as pessoas percebem que sozinhas têm um peso muito relativo. É fundamental que isto seja dito: o Portugal Fashion tem uma atitude de grande favorecimento da moda portuguesa, mas gostava de saber o que é que o Portugal Fashion faria sem os designers portugueses. E isso é uma coisa que passa pouco pela cabeça dos designers — a relevância que têm para a manutenção dos projetos como o Portugal Fashion. Têm um peso relevante, imagino eu, na Associação Nacional de Jovens Empresários. Por algum motivo, insistem em fazer isto, não sendo sequer pessoas com uma ligação afetiva à moda, como é o caso da ModaLisboa, que, inicialmente, é criada por designers. Há uma diferença. Há um enorme desconhecimento da direção [do Portugal Fashion] do que é a moda e isso nem parece ser grande motivo de vergonha. Quem lidera este projeto percebe muito pouco do que está a fazer.
Em algum momento se arrependeu de ter deixado de apresentar coleções na ModaLisboa?
Não. As coisas não tiveram nada a ver uma com a outra. Não saí da ModaLisboa para vir para o Portugal Fashion. O próprio Portugal Fashion sabe disso. Desvinculei-me, ou melhor, tomei a decisão de não continuar a apresentar as coleções na ModaLisboa, pelo menos durante algum tempo, em junho ou julho de 2014 e só fui convidado para o Portugal Fashion em setembro de 2014, depois de já ser pública a minha saída. Não negociei de forma nenhuma, exatamente como agora — não tive nenhuma conversa com a direção da ModaLisboa, não tenho esse objetivo, nem essa segurança. Foi exatamente como fiz há cinco anos. Quando decidi sair da ModaLisboa, houve situações que me desagradaram, muito diferentes destas, porque o nível de capacidade financeira da ModaLisboa é totalmente diferente do do Portugal Fashion. É completamente diferente e tenho a certeza de que [a ModaLisboa] faria muito mais com o mesmo. Mas 2014 é um ano muito complicado, a crise estava instaladíssima no país. Obviamente, a maioria das minhas clientes da loja são do Porto, estão no norte, e apercebi-me de que era muito complicado para as pessoas irem a Lisboa. Portanto, achei que fazia sentido parar, perceber o que podia fazer, se fazia uma apresentação na loja. Entretanto, fui convidado, no tempo de Manuel Teixeira, e deram-me garantias de boas condições. Tive e agradeço, apesar de ele ter saído imediatamente depois de me ter feito o convite, antes do próprio desfile. O Manuel Teixeira era uma pessoa que estava a fazer um percurso muitíssimo interessante para o Portugal Fashion, de foco, de valorização e de melhoramento. E é um trabalho que, infelizmente, vejo a ser deteriorado estação após estação.
Como designer, como é que vê o facto de um país tão pequeno, com um sector também reduzido, ter dois eventos de moda?
Antes de qualquer outra coisa, tem de haver uma definição do que é que faz sentido. O que é que deve ter uma fashion week? Qual o objetivo destas semanas? É mostrar moda de autor? É mostrar moda de autor e misturá-la com moda comercial e moda industrial? Porque essa definição é fundamental para a estratégia do que deve ser uma semana de moda. Não vejo em lado nenhum, noutros países ditos mais modernos, semanas de moda com desfiles de criança, com desfiles de roupa interior e até de calçado. Por muito carinho e respeito que tenha pelo setor e pela APICCAPS, em especial pelo trabalho excelente que têm feito, para mim, não faz sentido. Não vejo isto em mais lado nenhum. Isto acontecia nos anos 90 ou 80, quando os desfiles eram feitos nas feiras, na FIL Moda e por aí fora. Estamos a regredir a olhos vistos, quanto a mim. Se a estratégia é essa, então sejam tratados da mesma maneira, designers e marcas.
Também aí vê um tratamento desigual?
Sim, em detrimento das marcas. E aqui ponho-me a defender as marcas. Das duas uma: ou não faz sentido estar, ou se estão, têm de ter as mesmas oportunidades e os mesmos critérios de entrada. Obviamente tem sempre de haver uma avaliação. É inviável fazer uma semana de moda com toda a gente que quer entrar. Tem de haver um critério e o critério associado à moda é sempre um bocado relativo. Mas defendo que houvesse uma reunião de pessoas do meio — desde jornalistas, editores de moda, diretores de revistas e até da indústria — que formassem um board, um grupo de avaliação para que fosse definido quem seriam as pessoas e marcas a estar nestes eventos.
Mas defende esse organismo a nível nacional?
Apesar de tudo, a ModaLisboa define-se melhor. Trabalha moda de autor, ponto final. Tem algumas exceções e com elas também não concordo, tenho de ser honesto. Mas são casos muito pontuais. Uma fashion week fala de moda de autor. É por isso que existem feiras de moda, showrooms. A moda de autor é pensada para uma apresentação. Não é como a maioria das coleções da indústria, que é pensada do ponto de vista comercial e que não faz sentido estar incluída numa semana de moda. A não ser que estas marcas tivessem também o cuidado de desenvolver uma coleção que pudesse fazer sentido aqui. A H&M tem coleções do mais comercial que pode haver e tem coleções cápsula que desenvolve com criadores convidados. Aí sim, justifica-se fazer uma apresentação num formato um bocadinho mais especial.
Mas tem de haver algum critério. Senão, o que é que é a moda? É preciso definir o que é isto. Estamos a falar da parte criativa, estamos a falar da parte industrial, estamos a falar da parte têxtil? A dada altura, só nos falta ter desfiles de têxteis para o lar. Não quero nada ser elitista, mas as coisas são como são. Se for fazer uma apresentação de vestidos de noite numa feira de têxteis de lar, estou deslocado. Dois desfiles de criança, no meio de um fim de semana em que a maioria das coleções são moda de autor, também estão completamente deslocados. Mas qual é a estratégia? Se estas marcas são válidas para o nacional, então porque é que não se propõe um desfile de criança em Milão, por exemplo?
Infelizmente, há aqui alguma dependência instalada. As pessoas têm pouca coragem. Os desfiles são uma coisa maravilhosa, dão-me muito prazer, e uma das coisas que me fez tomar esta decisão foi também ter deixado de ser feliz a fazer isto. Eram tantas as situações que me desagradavam que já não vinha com alegria para fazer um desfile no Portugal Fashion. Mas é bom que os meus colegas também percebam que o desfile, neste momento, não lhes acrescenta grande coisa. Ou é bem feito, de uma maneira irrepreensível, ou fazer por fazer não vale a pena.
Acha possível que outros designers tomem a decisão que tomou em edições próximas?
Não faço a menor ideia. Falo apenas em meu nome, não me sinto no direito de falar sobre qualquer intenção de que possa, eventualmente, saber. Até porque as intenções às vezes mudam de um dia para o outro. E por respeito aos meus colegas, é natural não me manifestar relativamente a isso.
Mas identifica sinais de desgaste?
Quase que lhe podia fazer essa pergunta a si. Certamente que consegue ver esses sinais de desgaste. Há nomes que desapareceram do calendário e não se fala sobre o assunto. O que é que anda a acontecer no meio disto tudo? E depois vêm dizer que a moda está a atravessar um ótimo momento. A Alexandra Moura está a passar um ótimo momento. E felizmente, porque começou um processo sozinha. Os Marques’Almeida também começaram sozinhos. Houve aqui uma apropriação. O Portugal Fashion entra num processo que já tinha sido iniciado, quer pelos Marques’Almeida, quer pela Alexandra Moura, quer pelo Felipe Oliveira Baptista, que, no passado, também aconteceu com ele. Quando já estão em andamento é que foram apanhados. Não critico isso, acho é que não vamos puxar o mérito todo para o Portugal Fashion porque os Marques’Almeida existiam antes do Portugal Fashion estar lá. Apareceram, ganharam notoriedade e posicionamento sem qualquer tipo de aproximação do Portugal Fashion. A própria Alexandra Moura fez algumas presenças em showrooms internacionais e fez um trabalho sozinha primeiro. Portanto, calma. A moda não está a atravessar um momento assim tão bom.
Antes de sair do Portugal Fashion, fez o exercício de pesar os prós e os contras?
Fiz. O grande pró é não validar algo com que não concordo. A partir do momento em que me apercebo, peço esclarecimentos e não os tenho e continuo a fazer, estou a validar. Estou a dizer: ‘Sim senhor, isto pode ser feito desta maneira’. E isso é uma coisa a que me recuso. Nem que nunca mais faça um desfile na minha vida. Felizmente, tenho educação que me permite tomar decisões também com base nas minhas convicções e não apenas sob interesses que se possam sobrepor àquilo em que acredito. Tenho imensos defeitos, mas tento, ao máximo, ser justo. Esse é o aspeto mais positivo desta decisão. O mais negativo, quem me conhece um bocadinho sabe que é a tristeza do dia daquele desfile, no sábado, e o que estava a sentir naquele final. Era evidente. É muito triste não saber se vou voltar a fazer um desfile ou como é que o vou fazer. Mas a minha convicção e verticalidade não me deixavam outra opção. E avisei, avisei sempre que ia fazer isto, caso não fosse ouvido. Não podia voltar atrás. E estou muito calmo em relação a esta decisão, porque como disse, foi ponderada e até discutida com a minha equipa e com algumas pessoas de outras áreas que considero e que me deram imenso apoio. Apoio esse que também tenho visto ser manifestado no dia de ontem e de hoje, depois da minha publicação. Tem sido de facto uma enorme força para que não me sinta sozinho neste momento e nesta decisão.
Houve mensagens de apoio de outros designers?
Houve mensagens públicas e mensagens privadas, se foram de designers ou não é uma coisa que não quero… Não quero levantar qualquer tipo de tomada de posição por parte dos meus colegas. Eles, se quiserem, que se manifestem. Há uma que é óbvia, do Luís Buchinho, que me deseja felicidades para o futuro. E do Nuno Gama, que vai um bocadinho mais longe e diz que, finalmente, alguém diz alguma coisa.
Neste momento, tem estrutura financeira para organizar um desfile independente?
Depende. Se me perguntar se ter estrutura financeira é conseguir financiar sozinho um desfile inteiro, acho muito difícil, sou franco. Mas um desfile pode também acontecer com patrocinadores, pode acontecer com colaborações, de diferentes formas. E há diferentes formas de apresentar uma coleção, até em suporte de vídeo, de instalação. Há variadíssimas formas positivas e estimulantes. Antes de qualquer outra coisa, elas têm de ser genuínas e verdadeiras. Ter aquilo em que acredito e que me faça feliz, porque essa é uma parte muito importante desta equação.
Qual é o caminho mais provável neste momento?
É muito recente, não sei dizer mesmo. Numa entrevista à agência Lusa, houve uma coisa mal interpretada — que não me passa pela cabeça ir para a ModaLisboa. Não foi isso que disse. Disse que ir para a ModaLisboa ou ir para outro sítio qualquer é uma decisão que não me passa pela cabeça tomar neste momento. Nem é uma decisão que tome assim, porque são coisas que acontecem por convite. E, honestamente, nem estou a pensar nisso agora. É um momento de reestruturação.
Mas mantém todas as opções em cima da mesa?
Neste momento, preciso mesmo de descansar. Estes três dias estão a ser de um enorme desgaste físico e emocional. Preciso de descansar, de estruturar as minhas ideias, de definir objetivos para o futuro e seguir em frente. Mas não tenho balizas. A única coisa que quero é ser fiel àquilo em que acredito e tomar as decisões em função disso antes de qualquer outra coisa.
Já houve alguma conversa com o Portugal Fashion desde sábado?
Não. Não houve qualquer tipo de contacto. Da minha parte não houve e, pelo menos que me tenha apercebido, no meu telefone também não tive qualquer tipo de tentativa de contacto da parte do Portugal Fashion.
Tendo em conta que mostrou interesse em explorar o mercado internacional, essa estratégia é de alguma forma fundamental para a viabilidade da marca Nuno Baltazar?
Seria diferente, obviamente. Mas a marca viveu até aqui sem essas participações, portanto, vai continuar a existir sem elas. Acho que uma marca de moda de autor tem de estar em constante evolução. Tem de ser, muitas vezes, pensada e repensada, porque a moda é mesmo assim. Temos de estar com disponibilidade para evoluir e em constante avaliação. É o que faço ao meu trabalho e é o que farei neste momento.
Não considera que comprometeu o futuro da marca com esta decisão?
Não, de todo. Aliás, se pensar bem, há imensas marcas internacionais que param de fazer desfiles, que fazem pausas, que voltam. São situações que acontecem no dia-a-dia das marcas. E avaliar a pertinência de um desfile é algo que deve acontecer. Devemos fazer isto só porque é mais um? É que às vezes parece-me que há coleções que são apresentadas só para não dizer que não. Não devia ser assim. Uma paragem não é um sinal de fraqueza. É um sinal de consciência, de solidez e até de grande maturidade, apesar de não ter sido esse o motivo que me levou a sair. Mas acho que também devemos transformar as curvas mais apertadas que nos surgem pela frente em percursos interessantes e é isso que vou fazer. Não era a decisão que queria ter tomado, mas teve de ser. Portanto, a partir daqui, é com estes ovos que farei a minha omelete. Vai sair boa, pode ter a certeza.