Quando, há um ano, o partido da extrema-direita espanhol VOX alcançou um acordo com o Partido Popular (PP) para governar na comunidade de Valência, em Espanha, Nuria Enguita, então diretora do Instituto Valenciano de Arte Moderna (IVAM), percebeu que o seu tempo estava a chegar ao fim.
O acordo do governo deixou a pasta da Cultura, de que depende o museu, nas mãos da formação de extrema-direita representada por Vicente Barrera, vice-presidente da Generalitat. A tensão subiu de tom em fevereiro, quando Barrera pediu ao Ministério Público para investigar a doação de dois terrenos rústicos de Enguita a uma fundação dirigida por Vicente Todolí, argumentando que poderia constituir uma retribuição por este ter feito parte do júri que escolheu a curadora para a posição.
Em 24 horas, a diretora do IVAM desde 2020 denunciou o que diz ter sido “uma campanha difamatória” e demitiu-se do cargo. Um mês depois, a denúncia foi arquivada e, semanas mais tarde, a curadora espanhola foi anunciada como a primeira diretora artística do MAC/CCB, em Lisboa, no resultado de um concurso internacional para o museu inaugurado em outubro e que sucede ao Museu Coleção Berardo.
Não é, por isso, de estranhar que Nuria Enguita, 57 anos, considere que “todo o comportamento é político”. “Toda a minha trajetória tem uma posição”, afirma ao Observador. Nesta primeira grande entrevista, Enguita explica os contornos da sua chegada a Belém, alerta para o momento “crítico” que a Cultura atravessa perante a ascensão da extrema-direita e define objetivos para os próximos quatro anos: fazer do MAC/CCB “um museu habitável”, “um lugar necessário”.
Chegou em maio ao MAC/CCB. Sabendo que o trabalho de programação exige um determinado tempo, quando é que será possível ver uma exposição ou atividade por si programada?
Efetivamente, as programações dos museus fazem-se com muita antecedência. A programação está fechada para este ano, 2024, mas ainda estamos a fazer uma pequena exposição comissariada por mim.
Ainda este ano?
Ainda este ano, a partir de outubro. A nova programação, do próximo ano, apresentaremos no final deste ano. Está ainda em processo, não pode ser anunciada.
Sobre essa exposição, é uma mostra individual ou coletiva?
É uma exposição a partir das coleções do museu.
O que é possível para um diretor artístico fazer num primeiro mês? O que tornou prioritário?
Para mim é prioritário conhecer a gente que aqui trabalha, a equipa. Falei com toda a equipa individualmente e coletivamente e com o conselho de administração. É muito importante conhecer a estrutura pessoal, jurídica, perceber a questão geográfica, entender qual é a posição do CCB no ecossistema das artes em Lisboa e em Portugal.
E qual é?
É uma casa muito presente, muito importante. É um museu que é um museu novo numa estrutura com uma história. Era tudo isso que eu queria entender: qual pode ser a posição do MAC/CCB agora? Agora mesmo, porque teve uma posição, com outras denominações, noutros momentos da história. Estamos em um momento muito importante, com muita transformação. É um momento interessante, difícil, complexo, que agora entendo melhor. Mas tenho de continuar, porque as coisas mudam. Foi isso que fiz, além de começar a trabalhar no programa do próximo ano.
Estando no mesmo espaço físico, que não teve alterações de maior, e tendo como núcleo mais representativo o acervo do empresário José Berardo, as comparações são inevitáveis. O maior desafio é que o MAC/CCB não seja um eterno ex-Museu Berardo?
Já não é. Mas a Coleção Berardo é uma potência e é uma potência que não existe noutros lugares. Agora temos mais três coleções: a Coleção Ellipse, a Coleção Teixeira de Freitas e parte da Coleção CACE, que é um depósito, mais acervo. O acervo destas coleções juntas é uma potência incrível com a qual se pode contar toda a história do século XX e parte do século XXI. A Coleção Berardo continuará a ter um espaço, mas será uma parte de um projeto muito maior. As coleções vão ser trabalhadas conjuntamente para criar outras narrativas, para criar outros discursos, para incorporar contemporaneidade, incorporando artistas também.
Sobre a Coleção Berardo, havia um protocolo de comodato, mas agora a coleção está emprestada por imposição do tribunal. Se o processo não correr como espera o Estado, e o CCB não puder aceder à Coleção Berardo pela negociação, a relevância do museu fica posta em causa?
Não tenho uma bola de cristal. Não posso responder a uma pergunta que é futurologia. Aconteça o que acontecer, faremos frente a isso. Não é algo em que pense agora. Se acontecer, acontece. Isso ou outra coisa. Tudo pode acontecer.
Todos os museus de arte moderna e contemporânea das principais fundações culturais do país são hoje liderados por estrangeiros. Além da Nuria no MAC/CCB, Philippe Vergne está no Museu de Serralves, no Porto, Benjamin Weil no Centro de Arte Moderna, da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. O que acha que o olhar externo aporta à direção artística de um museu?
É sempre um olhar diferente do de uma pessoa que está dentro do contexto. A decisão não é minha, eu apresentei-me. É uma pergunta também para os gestores que decidem os diretores dos museus em Portugal. Sou ibérica, não sou tão estrangeira [risos]. Portugal é um país muito próximo, que conheço bem, onde tenho colegas desde há muito tempo. Comecei a vir cá em 1992, 1993, nas Jornadas de Arte Contemporânea do Porto.
Sobre esse olhar externo, cada pessoa funciona e trabalha de uma determinada maneira. Para mim, é importante trabalhar com o que é local, não há [a noção de] periferias. Cada museu pode estabelecer um vínculo, pode criar um centro e como núcleo gerar um diálogo com o mundo. No mundo em que estamos, enquanto profissionais movemo-nos, os artistas movem-se. Há uma coisa contextual que a mim me interessa, que é como com um olhar estrangeiro se pode colocar esse diálogo de Lisboa, do CCB, com o mundo.
O júri do concurso optou pelo seu projeto destacando “também o seu conhecimento da realidade portuguesa”. Como acompanhava a cena artística portuguesa?
Tenho muita relação com Portugal desde que comecei do mundo da arte. Na altura, no princípio dos anos 90, havia muita relação. Era outro momento, não é comparável. Não é que agora seja pior porque há menos relação, mas as estruturas artísticas mudaram completamente, o mercado mudou completamente.
Hoje há menos relação entre estruturas?
Hoje há uma relação diferente, não havia tecnologia, não havia voos baratos. É um mundo completamente diferente.
Isso não devia propiciar precisamente um estreitar de relações?
Não, havia uma relação mais pessoal. Agora a tecnologia uniu-nos de outra maneira. Na altura, ou se falava pelo telefone ou ia-se aos lugares, porque não havia internet. Mas não sou nostálgica. Sempre gostei de museus e dependendo de onde estava e como podia, a relação [com Portugal] era uma ou outra, mas foi contínua. Trabalhei algumas vezes com Serralves quando estava na Fundació [Antoni] Tàpies [onde foi diretora artística entre 1998 e 2008]. Trabalhei com artistas portugueses.
A complexa contenda jurídica sem fim à vista afetou a credibilidade e imagem internacional do museu?
Diria que não. Quando estamos num contexto pensamos que todo o mundo sabe de tudo, que toda a gente lê, e não é assim. O pior é que a cultura, às vezes, não é tão interessante como a política, e não está todos os dias [nos media]. Pessoalmente, percebo a questão, mas acho que não.
Com que projeto se candidatou? Ou seja, que MAC/CCB propôs à administração do CCB?
O MAC/CCB deve ser um lugar muito presente na sociedade, na cidade, um espaço aberto. É um museu aberto já, mas como podemos trabalhar para que seja um museu habitado, habitável, um lugar necessário? No sentido de algo que faz parte da vida das pessoas, como faz a escola, o médico ou ir ao parque. Tem de ser algo que realmente ofereça um serviço público, que possibilite maneiras de entender o mundo. Entendo a arte como uma maneira também de entender o mundo. O MAC/CCB tem que ter uma relação de investigação para dentro, mas de apresentação e mediação para fora intensa. Esse é o meu maior desafio: criar uma comunidade de pessoas e objetos em potência que possam contribuir para entender melhor o mundo que nos rodeia através das práticas artísticas. Num momento tão polarizado, o museu tem de ser um refúgio do pensamento, de práticas artísticas complexas, que pode propor questões para debater.
Uma das suas exposições mais reconhecidas foi a que dedicou à Ruta del Bakalao — nome pelo qual ficou conhecida o movimento contracultura que despertou a cena clubbing em Valência nos anos 1980 e 1990. É uma crítica feita não raras vezes, à arte contemporânea de não estar próxima do público. O caminho do MAC/CCB passa por este género de mostras?
Essa foi uma exposição que não fiz, mas que programei no anterior museu. Foi uma exposição de posters, uma exposição gráfica, que achava que ainda estava por fazer. Porque a Ruta del Bakalao implicou um modo de vida, arquitetura, música, arte, ilustração, escrita. Foi um momento de explosão realmente depois da ditadura na região. Na medida do possível, essas questões formam parte dos meus interesses. A questão de onde estamos pode ser uma forma de falar do mundo. Falamos a partir daqui, de Valência, de Madrid. É uma coisa não necessariamente local, mas que pode criar um diálogo, uma conversa com o público.
É um equilíbrio difícil para uma instituição que tem uma dimensão nacional, mas que também quer explorar uma componente local?
E internacional. Não é necessariamente difícil, é uma questão de programação. Entendo o meu trabalho mais como curadora, como programadora, ao colocar as coisas juntas, definir um programa de interesses, de projetos, que pode ser mediação, exposição, pode ser uma parceria, pode ser uma atividade. Isso vai criando relações com outros museus de fora, relações com artistas de dentro, com outros coletivos. No museu de onde venho foi um trabalho que funcionou.
Aquando da abertura do MAC/CCB, em outubro, foi dito que o novo museu consumiria, em 2024, grande parte do reforço de um milhão de euros que o Orçamento do Estado concedeu ao CCB e que teria, assim, uma verba a rondar os 3,1 milhões de euros. É esse o seu orçamento?
Estamos a definir o orçamento para o próximo ano, não posso responder a essa pergunta. Mas estou a pedir mais orçamento. Um diretor tem sempre de pedir mais. É sempre uma negociação, seja com o poder político ou com os conselhos de administração. Ainda estamos a definir a programação e a verba, vamos ver. Acho que vai correr bem.
Demitiu-se em Fevereiro da liderança do IVAM — Instituto Valenciano de Arte Moderno, em Valência, na sequência de uma “campanha difamatória”, utilizando palavras suas, orquestrada pelo vice-presidente da Generalitat, Vicente Barrera, membro do partido de extrema-direita Vox e também responsável regional pela pasta da Cultura. O anúncio do CCB nomeando-a deu-se poucas semanas depois. Quando se demitiu já sabia que tinha sido escolhida para dirigir o MAC/CCB?
Sim. Sim, mas não tem nada a ver. Foi por uma coisa diferente: demiti-me pela perda de confiança do Governo. Digamos que a minha vida profissional é uma coisa e uma questão política é outra. Um ataque direto a mim leva a que me demita, ali e em qualquer lugar, porque considero que não se pode trabalhar sem a confiança política dos conselhos de administração. Não se pode trabalhar num museu sem a autonomia necessária e decidi mudar a minha vida. Mas isso está escrito, está feito. É a primeira vez que respondo a esta pergunta. É assim. A coincidência no tempo não tem nada a ver. Demitir-me-ia igualmente, se é essa a pergunta. Não sou uma pessoa que depois de um ataque assim pudesse continuar. A vida está à frente do trabalho.
O concurso para o MAC/CCB abriu largos meses antes desse episódio — o concurso abriu em junho de 2023 e terminou a 31 de agosto. Portanto, apresentou a sua candidatura ainda sendo diretora do IVAM.
Sim, claro.
Porque se candidatou?
Porque a coligação com a extrema-direita me fez pensar que Valência podia não ser o lugar onde eu pudesse continuar a trabalhar.
Olhando para o cenário político português, e tendo em conta a ascensão também da extrema-direita em Portugal, isso fá-la refletir sobre a possibilidade de questões semelhantes acontecerem por cá?
Não vou responder a perguntas políticas que têm a ver com um país que não conheço. A extrema-direita é a extrema-direita em todos os lugares.
Em França, o sector cultural francês une-se para tentar travar a extrema-direita — por receio de que o partido de Marine Le Pen vença as eleições.
Não falo de política normalmente, nem aqui nem lá. Todos estamos a viver um momento e cada um tem que tomar uma posição. É o mais importante, a posição que tomamos para a continuação de uma coisa ou de outra. Para a Cultura este é um momento muito crítico, muito perigoso.
Na única entrevista [Público] da nova presidente do CCB, Francisca Fernandes, em março, a propósito de um “certo apagamento” dos diretores dos museus na participação da vida pública e dos debates culturais, dizia: “É verdade que um estrangeiro pode ter menos vontade de participar [no debate], mas esse é um risco que não corremos com a Nuria”. O que acha que queria dizer?
[risos] Todo o comportamento é político. Creio que estamos num momento em que temos que decidir. Não vou falar de política, entrar um debate político sobre partidos. Mas num debate de política cultural, o que possa oferecer oferecerei.
Hoje o diretor de um museu também deve ter uma voz ativa, participativa?
Creio que sim. Não precisa de ser num debate na televisão, na imprensa. Pode ser na sua forma de trabalhar. Não é só falar. Pode escrever, poder ter uma conversa, fazer uma leitura, fazer um projeto … Toda a minha trajetória tem uma posição. E todas as programações que fiz nos museus que dirigi têm uma posição.