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Após, em 2016, ter distinguido o medíocre Chanson douce de Leila Slimani (publicado em Portugal como Canção doce, pela Alfaguara), o Prémio Gouncourt de 2017 foi atribuído a L’ordre du jour, de Éric Vuillard (n. 1968), um fascinante reenquadramento e reexame de alguns dos eventos históricos que conduziram à II Guerra Mundial. O livro acaba de ser publicado em Portugal pela D. Quixote.

“A Ordem do Dia”, de Éric Vuillard (Dom Quixote)

O assalto ao poder

As eleições federais de Julho de 1932 foram um momento decisivo na história da Alemanha: o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei = NSDAP), que obtivera 6.380.000 votos (18.2%) nas eleições de 1930, mais do que duplicou a sua votação para 13.745.000 votos (37.3%), conquistou 230 dos 608 ligares do Reichstag e transformou-se no maior partido alemão, o que lhe conferiu o direito a presidir ao parlamento (cargo assumido por Hermann Göring) e colocou Hitler em posição de se propor para o cargo de chanceler, no lugar do conservador Franz von Papen, renegando um “acordo de cavalheiros” que fizera com este antes das eleições. Porém, o presidente Hindenburg recusou a proposta e Hitler também não aceitou a proposta de von Papen de ser nomeado seu vice-chanceler.

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O marechal Paul von Hindenburg (1847-1934), um dos principais comandantes alemães da I Guerra Mundial e presidente do Reich entre 125 e 1934. Foto de Março de 1932

No Reichstag instalou-se um impasse, pois a radicalização do voto debilitara o centro e dera a comunistas e nazis mais de metade dos lugares e, uma vez que o Partido Comunista encarava todos os partidos da esquerda moderada , incluindo os sociais-democratas (SPD), como “sociais-fascistas”, nunca consideraria uma aliança com eles. Enquanto nas instâncias políticas prevalecia o bloqueio, nas ruas eclodiam confrontos de rua entre milícias comunistas e milícias nazis (as SA, “secções de assalto”, popularmente conhecidos como “camisas castanhas”) – no rescaldo das eleições de Julho de 1932, só em Berlim ocorreram 461 episódios de violência política, de que resultaram 82 mortos.

Von Papen voltou a convocar eleições em Novembro, mas, apesar de o NDSAP ter perdido dois milhões de votos (baixando para 33%) e 34 deputados, continuou a ser o partido mais votado e a soma dos deputados nazis e comunistas no Reichstag continuou a ser superior a 50%, inviabilizando qualquer acordo. Von Papen, sabendo que este parlamento dificilmente aprovaria um moção de confiança ao seu governo, entabulou novas negociações com Hitler e inverteu a proposta que lhe fizera após as eleições de Julho: iria convencer o presidente Hindenburg a aceitar um governo em que Hitler fosse chanceler e von Papen fosse vice-chanceler. Hindenburg receava que um governo “liderado por Hitler se convertesse inevitavelmente numa ditadura”, mas o presunçoso von Papen estava convencido de que seria capaz de “domar” Hitler e persuadiu o velho marechal a nomear Hitler.

30 de Janeiro de 1933: após a tomada de posse, Hitler abandona o Reichstag de automóvel, entre aclamações da multidão

O novo governo tomou posse a 30 de Janeiro de 1933 e embora o maior número de pastas coubesse aos conservadores de von Papen, os nazis ficaram com dois cargos cruciais para o seu plano de “assalto ao poder” (Machtergreifung): Wilhelm Frick era Ministro do Interior e Hermann Göring era ministro sem pasta e Ministro do Interior da Prússia (além de presidente do Reichstag).

30 de Janeiro de 1933: Os nazis organizam um desfile nocturno, à luz de tochas, em honra do novo chanceler

A reunião secreta

Antes de empreender uma nova fase da sua estratégia, os nazis precisavam de consolidar a sua maioria no Reichstag. Hitler dissolveu o parlamento mal tomou posse, convocou novas eleições para Março de 1933 e lançou as SA numa campanha de violência e intimidação mais violenta do que alguma vez se assistira, pois desta vez contava com a indiferença ou a cumplicidade das forças da ordem controladas por Frick e Göring. Mas além de perseguir comunistas e sindicalistas, o NSDAP também pretendia investir maciçamente em propaganda política e não dispunha de fundos. Foi para os obter que convocou uma reunião secreta a 20 de Fevereiro de 1933 com 24 grandes empresários alemães – é ela o assunto dos dois primeiros capítulos de A ordem do dia.

Vuillard recria com liberdade literária os eventos e interrompe a narração quando os magnatas sobem as escadas da residência oficial do presidente do Reichstag para reflectir sobre o poder da literatura: “A literatura autoriza tudo, diz-se. Poderia, por conseguinte, fazê-los rodar indefinidamente na escada de Penrose [um “objecto impossível” concebido por Lionel & Roger Penrose], sem que pudessem nunca mais subir ou descer, obrigados a fazer ao mesmo tempo uma coisa e outra. E, na verdade, é um pouco esse o efeito que os livros têm sobre nós. O tempo das palavras, compacto ou líquido, impenetrável ou cheio de pormenores, denso, alongado, granuloso, petrifica os movimentos, imobiliza todos os que se confrontam com ele”.

Uma escada de Penrose em “Subindo e descendo”, de M.C. Escher, 1960

Vuillard não o menciona, mas a reunião de 20 de Fevereiro não surgiu do nada: a 19 de Novembro de 1932 já um grupo de 19 representantes da indústria e alta finança alemãs tinha apresentado ao presidente Hindenburg uma petição (a Industrielleneingabe) para que, face ao resultado das eleições, Hitler fosse nomeado chanceler. E fora precedida em Julho de 1931 por uma petição da União Socio-Económica de Frankfurt e em Julho de 1932 por uma petição de 51 professores universitários. Hjalmar Schacht, que fora presidente do Reichsbank entre 1923 e 1930, foi o principal redactor da Industrielleneingabe e foi figura decisiva na “reunião secreta” – Hitler recompensá-lo-ia nomeando-o novamente presidente do Reichsbank (1933-39) e Ministro da Economia (1934-37), mas acabaria por ser afastado por se opor à política belicista de Hitler.

Gustav Krupp von Bohlen und Halbach, que liderava o conglomerado de indústria pesada Friedrich Krupp AG, era um dos 24 magnatas presentes na reunião de 20 de Fevereiro. Hitler recompensaria os seus serviços condecorando-o com a medalha de ouro do Partido Nazi, em 1940 (na foto)

Os nomes das outras figuras podem pouco dizer aos ouvidos de hoje, mas, como escreve Vuillard, “os 24 não se chamam nem Schnitzler, nem Witzleben, nem Schmitt, nem Finck, nem Rosterg, nem Huebel, como os seus cartões de identidade nos fazem crer. Chamam-se BASF, Bayer, Agfa, Opel, IG Farben, Siemens, Allianz, Telefunken. Por estes nomes, conhecemo-los. […] Estão aí, em toda a parte, sob a forma de coisas. O nosso quotidiano pertence-lhes. Cuidam de nós, vestem-nos, iluminam-nos, transportam-nos pelas estradas do mundo, embalam-nos. […] Os 24 homens presentes no palacete do presidente do Reichstag […] são apenas os seus mandatários […] 24 máquinas de calcular às portas do inferno”.

Fritz von Opel, membro do conselho de administração da Opel AG, fazia parte dos 24 magnatas da reunião de 20 de Fevereiro. Na foto (à direita), quando de uma competição motonáutica no Lago Templin, em 1928, em que a Opel participou

As contribuições dos 24 industriais e banqueiros, aliadas ao incêndio do Reichstag, a 27 de Fevereiro de 1933, seis dias antes das eleições (cuja responsabilidade os nazis imputaram aos comunistas), produziram o efeito desejado: o NSDAP conquistou nas eleições de Março 288 deputados (mais 92) e 43.9% dos votos e os comunistas (KPD) ficaram-se pelos 81 (perderam 19) e por 12.3% dos votos. O efeito prático dos votos do KPD em breve foram reduzidos a zero, pois Hitler conseguiu que o Partido Comunista fosse expulso do Reichstag e o voto conjunto dos nazis e dos conservadores tornou possível a aprovação, a 24 de Março, de legislação especial que conferiu a Hitler plenos poderes durante quatro anos. Com a interdição, em Julho de 1944, dos partidos não-nazis e a morte do marechal Hindenburg, em Agosto de 1934, que permitiu a Hitler somar ao cargo de chanceler o de presidente, desapareciam os últimos obstáculos internos ao poder absoluto dos nazis.

No capítulo “Mas quem é toda esta gente?”, Vuillard regressa a Gustav Krupp von Bohlen und Halbach, dando-o a ver uns anos no futuro, quando as suas empresas prosperavam a reboque do esforço de guerra do III Reich e exploravam o trabalho escravo que este punha à sua disposição: “A Bayer arrendou mão-de-obra em Mauthausen. A BMW contratava em Dachau, em Papenburg, em Sachsenhausen, em Natzweiler-Struthof e em Buchenwald”. Como Vuillard escreve noutra parte do livro, “é preciso que os negócios prossigam”.

Outra figura proeminente na reunião de 20 de Fevereiro era Georg von Schnitzler, membro do conselho de administração do conglomerado químico IG Farben. A IG Farben ergueu em Monowitz uma fábrica que recorria a trabalho escravo proveniente do campo de Auschwitz (foto de 1942, com a fábrica ainda em construção)

Os idiotas úteis

Se na Alemanha Hitler se desembaraçou, pouco a pouco, das figuras e instituições alemãs que poderiam cercear o seu poder, a maioria dos governantes e políticos estrangeiros também não possuíam as qualidades necessárias para lhe fazer frente. Uma das mais notórias e ineptas foi Lord Halifax, líder da Câmara dos Lordes (e ex-Vice-Rei da Índia, ex-Secretário de Estado da Guerra, futuro Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros), cuja desastrada visita à Alemanha em Novembro de 1937, a pretexto de um convite pessoal de Göring para a inauguração de uma exposição sobre caça, Vuillard toma para assunto do capítulo “Uma visita de cortesia”.

[Göring recebe Lord Halifax na sua mansão de campo de Carinhall, na floresta de Schorfheide]

A visita, que incluiu encontros com Göring e Hitler, proporcionou a Lord Halifax o ensejo para tirar ilações asininas, das quais Vuillard retém esta: “O nacionalismo e o racismo são forças poderosas, mas não as considero nem contranatura nem imorais!” (para mais detalhes sobre Lord Halifax e outras figuras eminentes cuja estultícia, inépcia ou conivência permitiram a ascensão de Hitler, ver A Europa no fosso da barbárie).

Fascistas contra fascistas

A aspiração à união da Alemanha e da Áustria começou a germinar após a unificação alemã, em 1871. A dissolução do Império Austro-Húngaro, após a derrota na I Guerra Mundial, trouxe novo ímpeto a essa possibilidade, mas a última coisa em que as potências vencedoras estavam interessadas era ver reerguer-se dos escombros uma super-potência austro-germânica, pelo que a união dos dois países foi explicitamente interditada pelos tratados de Saint-Germain e de Versailles.

A história da Áustria no pós-I Guerra Mundial foi marcada pelas tensões entre os que favoreciam a união com a Alemanha – nacional-socialistas apoiados pelo NSDAP – e os que se lhe opunham, que tinham como principais forças os social-democratas e os conservadores nacionalistas do Partido Social-Cristão (Christlichsoziale Partei = CS), que tinha por si a Igreja Católica e os principais industriais. Uma revisão constitucional realizada em 1929 restringiu as competências do parlamento e deu mais poder ao presidente – cargo ocupado, desde o ano anterior, por Wilhelm Miklas, do Partido Social-Cristão.

Wilhelm Miklas, presidente da Áustria entre 1928 e 1938

Os confrontos violentos entre as forças paramilitares social-democratas (a Republikanischer Schutzbund) e nazis (a Heimwehr) criavam uma situação de grande instabilidade, que levou a que, a 10 de Maio de 1932, o presidente Miklas, oferecesse o cargo de chanceler ao social-cristão Engelbert Dollfuss.

Parada da Heimwehr, a força paramilitar da extrema direita austríaca, 1928

Dollfuss aceitou e tratou de converter a Áustria numa ditadura, que tinha orientação formal fascista e por principal aliado internacional Mussolini, que não via com bons olhos a unificação austro-germânica e que, naquela altura, tinha receio das ambições expansionistas do seu futuro parceiro do Eixo, que ambicionava anexar o Tirol italiano. Porém, o fascismo de Dollfuss pouco tinha a ver com o de Hitler e assentava em valores conservadores, católicos e corporativistas.

Engelbert Dollfuss, 1934

A progressiva supressão de liberdades na Áustria não acalmou a situação política e em Março de 1933, aproveitando o pretexto de um conflito parlamentar que redundou num impasse burocrático, Dollfuss suspendeu a actividade do parlamento, ordenou que a polícia vedasse o acesso dos deputados ao edifício e, nos meses seguintes, ilegalizou os partidos comunista e nazi (que estava em ascensão meteórica, impelido pela subida ao poder de Hitler na Alemanha) e impôs o fim das forças paramilitares social-democratas. Em Fevereiro de 1934, um reacender da perseguição aos social-democratas levou estes a apelar à sublevação, lançando o país em duas semanas de escaramuças que ficaram conhecidas, algo pomposamente, como Guerra Civil Austríaca.

Forças governamentais tomam posição frente à Ópera Estatal de Viena, Fevereiro de 1934

A sublevação foi reprimida e Dollfuss aproveitou para ilegalizar o partido social-democrata e reforçar o totalitarismo social-cristão, através da criação de uma Frente Patriótica e da promulgação de uma nova constituição modelada parcialmente na do Estado Novo português, aprovada no ano anterior. Porém o chanceler não teria tempo para colher os frutos desta política, pois foi assassinado por oficiais nazis numa tentativa fracassada de golpe de estado em Julho desse ano. Mussolini ficou furioso com o assassinato do seu aliado mais próximo, que atribuiu a maquinações de Hitler: ameaçou a Alemanha com a guerra se esta tentasse invadir a Áustria e deslocou tropas para junto da fronteira austríaca, dando a entender que estava disposto a passar das palavras aos actos. A veemência da reacção italiana apanhou Hitler de surpresa, obrigando-o, após a euforia perante a eliminação de Dollfuss, a empreender algumas acções conciliatórias – inclusive expressando pesar pela morte do chanceler.

Um mestre do bullying

O recuo de Hitler era, claro, apenas uma manobra: o seu objectivo de anexar a Áustria mantinha-se. E o novo chanceler, Kurt Schuschnigg, não tinha força para lhe fazer frente, sobretudo depois de perder o apoio de Mussolini, que, após invadir a Etiópia e ter ficado isolada no plano internacional, não teve outro remédio senão esquecer os atritos com Hitler e fazer tandem com a Alemanha – não tardaria que as duas potências fascistas estivessem a trabalhar em conjunto no apoio aos falangistas na Guerra Civil de Espanha.

Kurt Schuschnigg, 1934

O partido nazi austríaco, apesar de continuar ilegalizado, ia ganhando força e as relações austro-germânicas iam tornando-se mais tensas, o que levou Kurt Schuschnigg a ter um encontro com Hitler, na sua residência de Berghof, a 12 de Fevereiro de 1938, a fim de tentar amenizar a situação. O evento é o tema do capítulo “A entrevista do Berghof” em A ordem do dia, em que Vuillard põe em evidência o comportamento de bully de Hitler, que deixa o seu homólogo austríaco completamente subjugado. Em vez da negociação que esperava, Schuschnigg foi confrontado com uma série de exigências – boa parte delas ultrajantes para uma nação soberana – pela parte de Hitler. Schuschnigg primeiro vacilou, depois opôs resistência e Hitler, após fingir fazer uma concessão, propôs a Schuschnigg um acordo ainda mais leonino do que o anterior. O chanceler austríaco, atordoado, assinou-o sem perceber inteiramente o que estava a fazer.

O acordo previa, entre vários outros pontos, a libertação, amnistia e reintegração dos nazis austríacos que estavam presos e a nomeação dos nazis Arthur Seyss-Inquart como Ministro da Segurança – Hitler sabia bem quão vital era para o “assalto ao poder” ter um homem de confiança a liderar as forças da ordem – e Hans Fischböck como Ministro das Finanças.

Arthur Seyss-Inquart, 1925

Schuschnigg e o presidente Miklas cumpriram os termos do acordo, mas o chanceler entendeu que se impunha dar ao mundo uma prova da determinação dos austríacos em permanecer independentes, pelo que decidiu convocar um referendo para o dia 13 de Março sobre a questão da união com a Alemanha, para o qual solicitou o apoio dos social-democratas que o seu antecessor Dollfuss ilegalizara. Hitler espumou de raiva quando sabe da convocação do referendo e voltou a exercer todo o seu poder intimidatório sobre Schuschnigg. Este acabou por ceder, mas Hitler não se contentou com a anulação do plebiscito, exigiu também que Schuschnigg se demitisse e que Seyss-Inquart fosse nomeado para o seu lugar.

Apoiantes de Schuschnigg e da manutenção da independência da Áustria, início de Março de 1938

No capítulo “Um dia passado ao telefone”, Vuillard dá conta das cenas tragicómicas que se desenrolaram no dia 11 de Março de 1938, com os governantes austríacos aflitos perante a pressão de Hitler e este tentando conferir uma ténue aparência de legalidade a uma flagrante violação do direito internacional. O presidente Miklas acabou por ceder e aceitar a demissão de Schuschnigg, mas, inesperadamente, recusou-se a nomear Seyss-Inquart para o seu lugar. Cada vez mais irritado, Hitler introduziu uma alteração no enredo da farsa: contentar-se-ia em receber de Seyss-Inquart, na qualidade de Ministro do Interior, um telegrama a “convidar os alemães a entrar no seu belo país e de o fazer depressa e oficialmente” (Vuillard). Mas o tempo escoava-se e o telegrama de Seyss-Inquart não havia maneira de chegar, pelo que os alemães lhe enviaram o texto do “apelo à invasão” que Seyss-Inquart lhes deveria reenviar.

Março de 1938: As polícias fronteiriças alemã e austríaca desmantelam um controlo de fronteira

Mas nem assim o telegrama chegou, pelo que as tropas alemãs acabaram por entrar na Áustria na manhã de 12 de Março, mesmo sem convite. A invasão foi mal organizada e a máquina de guerra alemã viu-se a braços com avarias e engarrafamentos (que Vuillard trata de forma satírica no capítulo “Um engarrafamento de Panzers”), mas isso acabou por não ter importância, pois as tropas austríacas tinham recebido ordem para não resistir.

Hitler atravessa a fronteira germano-austríaca

Com os alemães já a tomar conta dos pontos nevrálgicos, o presidente Miklas lá se resignou a nomear Seyss-Inquart chanceler. Hitler cruzou a fronteira na tarde de 12 de Março e ficou tão agradavelmente surpreendido com o acolhimento entusiástico dispensado pela população austríaca que mudou de planos.

15 de Março de 1938: A coluna de veículos onde segue Hitler é euforicamente recebida pelos vienenses

Em vez de contentar-se em fazer da Áustria um estado-fantoche liderado nominalmente por Seyss-Inquart, iria anexá-la ao Reich, numa flagrante violação do Tratado de Versailles. Foi isso que anunciou aos 200.000 austríacos extáticos que enchiam a Heldenplatz de Viena a 15 de Março.

[15 de Março de 1938: Hitler anuncia a anexação (Anchluss) da Áustria]

https://youtu.be/v2iCc-Go9DY

O Anchluss seria confirmado por um referendo realizado a 10 de Abril, com uma espantosa percentagem de 99.7% dos eleitores a pronunciar-se a favor da anexação. É legítimo perguntar como poderão os que dias antes apoiavam o Partido Social-Cristão ou o Partido Social-Democrata e se opunham à integração na Alemanha ter mudado de ideias tão abruptamente. Vuillard não o menciona, mas é relevante saber que o voto no referendo não foi livre nem secreto, pois os membros das mesas de voto recebiam nas suas mãos o boletim e podiam ver qual das opções fora assinalada – e deve também tomar-se em consideração que o boletim de voto era, já de si, enviesado.

Boletim de voto no referendo de 10 de Abril: “Concorda com a reunificação da Áustria com o Reich alemão que foi levada a cabo a 13 de Março de 1938 e vota no partido do nosso líder Adolf Hitler?”. Atente-se na diferença de tamanhos entre os círculos correspondentes ao “sim” (ja) e ao “não” (nein)

E também terá influído no resultado do referendo o facto de na semana seguinte à chegada das tropas alemãs terem sido presas 70.000 pessoas e de os judeus terem sido alvo de humilhações e perseguições – nos meses seguintes seriam expulsos do ensino e da administração pública e veriam as suas lojas boicotadas, pilhadas e encerradas e as suas sinagogas incendiadas – a fúria anti-semita da noite de 9 para 10 de Novembro de 1938 (a tristemente célebre Kristallnacht) teve eco na Áustria.

Viena, Março-Abril de 1938: Judeus forçados a apagar slogans independentistas perante o olhar trocista de tropas alemãs e civis austríacos

Felix Austria

Uma velha piada diz que os austríacos tiveram a arte de fazer crer ao mundo que Beethoven (que nasceu em Bona) era austríaco e Hitler (que nasceu em Braunau am Inn, na região austríaca de Innviertel, e passou a juventude em Linz e Viena) era alemão. A pilhéria oculta sentidos mais amplos e inquietantes: com efeito, a Áustria do pós-II Guerra Mundial conseguiu implantar-se no imaginário do resto do mundo como um país de civilização, cultura, bonomia, bem-estar e felicidade e branquear o seu passado, nomeadamente o facto de se ter empenhado na II Guerra Mundial com o mesmo fervor e ferocidade da Alemanha (ver Uma factura detalhada para Angela Merkel).

Da esquerda para a direita: Arthur Seyss-Inquart, Hitler, Himmler e Heydrich, Viena, 1938

A Áustria da Sachertorte, dos museus, palácios e teatros de ópera, das valsas, polcas e galopes da família Strauss, das operetas de Franz von Supppé e Franz Lehár, dos Concertos de Ano Novo, dos pares revoluteando em salões iluminados por candelabros feéricos nos bailes da imperatriz Sisi, da monarquia de conto de fadas à beira do Danúbio azul, é a mesma que respondeu maciçamente “sim” no referendo sobre a anexação de 1938.

A imperatriz Isabel da Áustria (1837-1898), conhecida carinhosamente por “”Sisi”, numa foto de 1867

É também a mesma que teve como Ministro dos Negócios Estrangeiros (1968-70) e Presidente (1986-1992) Kurt Waldheim, que, na qualidade de oficial da Wehrmacht destacado para os Balcãs, esteve envolvido em crimes de guerra. E em que a extrema-direita quase conseguiu, nas eleições presidenciais de 2016, eleger o seu candidato – Norbert Hofer, do FPÖ (Freiheitliche Partei Österreichs = Partido da Liberdade da Áustria) – só perdendo, por pequena margem, após uma segunda votação decorrente de irregularidades na primeira. E em que o FPÖ, após ter obtido 51 dos 183 lugares do parlamento nas eleições legislativas de 2017, formou um governo de coligação com os democratas-cristãos do ÖVP (o único país europeu em que a extrema-direita goza de maior poder e apreço popular é a Hungria – a outra metade da antiga monarquia austro-húngara).

O tenente Kurt Waldheim (segundo a contar da esquerda) num aeródromo em Podgorica, na Jugoslávia (hoje capital do Montenegro), 22 de Março de 1943

A euforia, as flores e as bandeirinhas com suásticas com que os austríacos acolheram os alemães não representam toda a realidade do Anschluss. Esta teve um reverso, diz-nos Vuillard no capítulo “Mortos”: antes do Anschluss “houve mais de 1.700 suicídios numa só semana”. Devem ter sido, escreve Vuillard, os que adivinharam o que estava para vir: “os judeus acocorados, de gatas, obrigados a limpar os passeios sob o olhar divertido dos transeuntes”, “os milhões de forçados”, “a escadaria de granito [do campo de concentração] de Mauthausen”. “Nenhum deles se matou. A sua morte não pode identificar-se com a narrativa misteriosa das suas desditas. […] Não foi um desespero íntimo a devastá-los. A sua dor é uma coisa colectiva. E o seu suicídio, um crime cometido por outrem”.

Sob a esplêndida fachada da Felix Austria oculta-se um negrume e um mal-estar que irrompem na obra de Karl Kraus (1874-1936), Thomas Bernhard (1931-1989) ou Elfriede Jelinek (n.1946), escritores austríacos de sanha e acidez sem par, cujos principais alvos são o seu próprio país, as instituições burguesas e as convenções sociais que promovem a anomia e a estultícia. No discurso de aceitação do Prémio Nacional Austríaco, em 1968, Bernhard proclamava: “Somos austríacos, somos apáticos, somos a vida como indiferença […] Não há nada a dizer, a não ser que somos lamentáveis, sucumbimos por imaginação a uma espécie de monotonia filosófica-económica-mecânica”.

Bilhete postal austríaco, da autoria de Franz Kock, 1938: “Homens, chegou o tempo!” (Mander s’ischt Zeit!). No verso lê-se “A partida do Sr. Schuschnigg e dos seus aliados”. Além do chanceler Schuschnigg (a figura maior, ao centro) há figuras representando (da esquerda para a direita) o capitalismo judeu, um rapaz (com traços judaicos) de uma organização de juventude cristã-social, um político e um padre católico

Não são os austríacos o único povo a sucumbir a uma “monotonia filosófica-económica-mecânica”, o canto de sereia do populismo revela-se hoje tão enfeitiçante como há 80 anos e, mais do que em algum outro período da história da humanidade, “é preciso que os negócios prossigam”. E também vão emergindo os bullies, cada vez mais afoitos, respaldados por vitórias eleitorais confortáveis, conseguidas à custa do controlo dos media, da subjugação do sistema judicial ao poder político, da intimidação, do apelo aos instintos mais básicos de parte do eleitorado (nacionalismo, receio dos estrangeiros) e da indiferença de outra parte do eleitorado.

É um caminho que não se faz de forma abrupta nem com alarido: são passos dados “com pezinhos de lã”.