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Donald Trump comporta-se “como um mafioso”. Foi isso que Michael Cohen, o antigo advogado pessoal do presidente que em tempos dizia ser capaz de levar um tiro por ele, disse perante o Comité de Supervisão da Câmara dos Representantes esta semana. O testemunho foi o único dos três dias em que foi interrogado no Congresso cuja audição foi à porta aberta. Dos restantes, perante os comités das secretas do Senado e da Câmara, nada se sabe.
Aquilo que saiu desta sessão pública, contudo, foi explosivo o suficiente para ser digno de película de filme — aparentemente, de filme sobre o crime organizado. “Ele não dá ordens, fala em código. E eu percebo o código porque estive com ele uma década”, disse o advogado sobre a forma como terá sido instruído ao longo dos anos pelo próprio presidente para denegrir, esconder ou mentir. Cohen seria o fixer de Trump, o homem que lhe resolvia os problemas e que fazia os trabalhos sujos, consoante as necessidades.
As referências à Máfia têm até eco no testemunho de uma outra pessoa da confiança do presidente: o seu conselheiro Roger Stone, que — de acordo com a acusação judicial de que é alvo, como foi notado pela Associated Press — terá dito a um colaborador de Trump que deveria fazer como Frank Pentangeli quando fosse interrogado pelo Congresso. A referência à personagem do segundo filme da trilogia “O Padrinho”, que mente perante um comité do Senado para proteger a Família, não podia ser mais direta.
A manter-se a analogia, Cohen será um pentito (arrependido) como chamam no país-berço da Máfia aos que decidem contar tudo e colaborar com as autoridades. “Estou envergonhado pela minha fraqueza e pela minha lealdade às pessoas erradas, estou envergonhado de todas as coisas que fiz pelo senhor Trump numa tentativa de o proteger e promover”, declarou perante os congressistas, dando força a esta expressão. “Estou envergonhado de ter escolhido fazer parte da ocultação dos atos ilícitos do senhor Trump em vez de ouvir a minha consciência.”
Cohen pode ser um pentito, é certo, mas é um cuja credibilidade está posta em causa, já que no passado não teve pejo em mentir perante este mesmo Congresso. O presidente Donald Trump, no passado, optou pela fórmula rat (ratazana), o termo usado pela máfia italo-americana para se referir a um “bufo”. Se a verdade está do lado do ex-advogado ou não, não sabemos. Mas que acusações tão graves são essas que levantou contra o presidente dos Estados Unidos? E poderão ter peso suficiente para deixar o homem que ele comparou a um capo di tutti capi — e que é nada mais nada menos do que o presidente — em maus lençóis?
Remember, Michael Cohen only became a “Rat” after the FBI did something which was absolutely unthinkable & unheard of until the Witch Hunt was illegally started. They BROKE INTO AN ATTORNEY’S OFFICE! Why didn’t they break into the DNC to get the Server, or Crooked’s office?
— Donald J. Trump (@realDonaldTrump) December 16, 2018
O pagamento para comprar o silêncio de Stormy Daniels
“Forneço hoje ao Comité vários documentos. Eles incluem uma cópia do cheque que o senhor Trump passou, da sua conta pessoal, depois de se ter tornado presidente, para me reembolsar pelos pagamentos que fiz em troca de silêncio para encobrir o seu caso com uma estrela de filmes para adultos, e prevenir assim danos para a sua campanha.”
Foi assim que Michael Cohen tentou provar que Trump terá violado as leis de financiamento de campanha, ao utilizar fundos da sua conta privada para silenciar Stormy Daniels, a atriz porno com quem terá tido um caso. Cohen, como bom capo que foi durante anos, ter-se-á chegado à frente e comprado o silêncio de Daniels para não trazer problemas ao chefe. Mais tarde, já na Casa Branca, Trump terá reembolsado o seu colaborador pela despesa.
O cheque, datado de agosto de 2017, pode de facto ser prejudicial para o presidente: se se provar que Trump sabia estar a reembolsar Cohen por aquele ato em particular, feito para não prejudicar as suas hipóteses de vir a ser presidente, então estava a violar a lei. Isto porque, legalmente, as contribuições para uma campanha não podem ir acima dos 2.700 dólares (cerca de 2.400 euros) — e o cheque era no valor de 130 mil dólares (cerca de 115 mil euros). Cohen declarou-se culpado deste crime perante as autoridades e vai cumprir, a partir de maio, três anos de prisão.
A situação pode de facto ser complicada para Trump — mas apenas a longo prazo já que tudo se trata de uma questão legal e, enquanto ocupar a presidência, tem imunidade. Para alguns especialistas, como Lawrence Noble (ex-conselheiro da Comissão Federal de Eleições, ouvido pelo Washington Post), não há dúvidas de que o testemunho de Cohen implica diretamente o presidente num possível crime: “O dinheiro para comprar o silêncio foi uma contribuição de campanha exagerada e ilegal e devia ter sido reportada pela campanha”, declara. “O reembolso de Trump a Cohen foi uma despesa de campanha que também devia ter sido reportada.”
É claro que, no entanto, o sucesso de qualquer acusação judicial futura está também dependente da defesa de Trump, razão pela qual há quem tenha menos certezas sobre a eficácia deste golpe de Cohen ao presidente. “Para ser considerado um crime, os procuradores têm de demonstrar que foi uma violação intencional”, explica Richard Hasen, professor de Direito Eleitoral, à Reuters. “Se Trump não sabia que estava a violar leis de financiamento de campanhas, não será responsável criminalmente”, argumenta. A doutrina divide-se, portanto.
A fraude bancária
“O senhor Trump inflacionava os seus bens quando isso servia os seus interesses, como ser considerado uma das pessoas mais ricas pela revista Forbes, e mitigava-os para reduzir os seus impostos de propriedade.”
A segunda acusação de Cohen volta a estar ligada a uma questão judicial: a de que Trump poderá ter cometido fraude. Para o provar, Cohen entregou ao Comité declarações financeiras do seu rendimento referentes aos anos de 2011 e de 2013 que foram prestadas ao Deutsche Bank na tentativa de obter um empréstimo para, alegadamente, comprar a equipa de futebol americano Buffalo Bills. Essas declarações de rendimentos seriam exageradas e não corresponderiam à verdade.
Uma vez mais, em causa poderá estar uma acusação judicial como a que pende sobre o seu antigo diretor de campanha Paul Manafort, acusado de fraude bancária, como explica a Associated Press. E, também uma vez mais, qualquer acusação judicial só poderá avançar depois de Trump abandonar o cargo de presidente.
De acordo com o Washington Post, a acusação de Cohen não é nova, já que o Congresso tem estado a investigar as finanças do presidente e também a sua relação com o Deutsche Bank, como explicou um porta-voz do banco ao editor do jornal David Ignatius.
Para além de tudo isto, há as implicações políticas: a democrata Alexandria Ocasio-Cortez referiu, durante a audição, que a entrega de declarações de rendimentos inflacionadas poderia ser razão suficiente para o Congresso poder consultar as declarações de rendimentos e de impostos do presidente — algo que os democratas têm considerado. Stephen Lynch, outro representante democrata, disse mesmo que o testemunho de Cohen poderia ser suficiente para o Congresso intimar Trump a entregar as suas declarações de rendimentos.
Trump, contrariando a tradição política norte-americano, não divulgou as suas declarações de impostos como os restantes candidatos presidenciais.
A ligação aos russos
“O senhor Trump pôs o senhor Stone em alta voz. O senhor Stone disse ao senhor Trump que tinha acabado de falar ao telefone com Julian Assange e que o senhor Assange disse ao senhor Stone que, dali a uns dias, haveria uma divulgação em massa de emails que prejudicariam a campanha de Hillary Clinton. O senhor Trump respondeu dizendo qualquer coisa como ‘Isso seria ótimo, não seria?’.”
Michael Cohen disse não acreditar que Donald Trump tivesse ordenado a Roger Stone que entrasse em contacto com a organização Wikileaks, conhecida por divulgar informação confidencial, dizendo antes acreditar que Stone estava a fazer trabalho como freelancer. Contudo, testemunhou perante o Congresso que Trump terá sabido desses contactos. E mais: que terá inclusivamente sabido com antecedência que a organização iria divulgar informação que prejudicava a sua adversária política na corrida à presidência.
Qual é o problema? Bom, o problema tem um só nome: Rússia. Em causa está a origem dos emails, que terão sido adquiridos por um hacker com o nome de código Guccifer 2.0 que contactava diretamente com Roger Stone e que pode bem ser um agente dos serviços secretos russos. Semanas depois da alegada conversa a três (Trump, Stone e Cohen) sobre a Wikileaks, Trump disse o seguinte num discurso: “Rússia, se estás a ouvir, espero que consigas encontrar os 30 mil emails [do servidor de Clinton] que estão desaparecidos. Acho que provavelmente serão bem recompensados pela nossa imprensa.”
Trump diz que nunca na vida falou com Roger Stone sobre a Wikileaks. O testemunho de Cohen contradi-lo diretamente. Quem está a dizer a verdade? É difícil saber, mas é certo que a investigação do procurador especial Robert Mueller às suspeitas de conluio da campanha de Trump com os russos levará isto em conta.
A somar-se a isto há outro ponto relacionado com possíveis ligações à Rússia, mas menos sólido. Cohen destacou que Donald Trump revelava bastante interesse no projeto de construção de uma Trump Tower em Moscovo e que deu a entender a Cohen que deveria mentir sobre a existência desse projeto se questionado, para não ser prejudicado durante a campanha. Para além disso, declarou ter assistido a um momento em que Donald Trump Jr. falou ao ouvido do pai sobre algo que Cohen assumiu ser o encontro com uma advogada russa que teria prometido informações comprometedoras sobre Clinton — encontro esse que Trump nega ter tido conhecimento prévio.
“Os comentários sobre Donald Trump Jr. a murmurar ao pai, possivelmente sobre o encontro na Trump Tower, pareceram-me mais especulativos. Mas a questão de Stone — dizer que Stone estava em alta voz a contar a Trump sobre a Wikileaks — tem potencial para ser uma coisa em grande”, afirmou Quinta Jurecic, editora da Lawfare, à New Yorker. “Em termos políticos, se é verdade, é completamente prejudicial, porque liga diretamente Trump aos esforços de Stone em contactar a Wikileaks, de uma forma que ainda não tínhamos visto.”
Em causa podem estar acusações de tentativa de “conspiração para defraudar os EUA”, como explicou Max Boot, colunista Washington Post, já que, a confirmar-se, Trump não pode alegar desconhecimento sobre a origem dos emails, visto que já eram públicas as suspeitas de que hackers russos teriam entrado nos servidores do Comité Nacional Democrata. A somar-se a isso, há uma possível acusação de ter mentido ao FBI e ao Departamento da Justiça, alegando que nunca tinha falado com Stone sobre a Wikileaks nem sobre a reunião entre o seu filho e a advogada russa.
O golpe de Cohen tentando ligar Trump à investigação de Mueller sobre o conluio russo é a acusação mais grave sobre o Presidente, já que o envolve diretamente — algo que, até agora, ainda não foi tornado público que Mueller tenha conseguido fazer. A investigação do procurador-especial pode servir para os democratas abrirem um processo de impeachment, ou seja, a destituição do Presidente, que a lei prevê que possa ocorrer quando há “altos crimes e delitos”.
Por enquanto, os democratas têm preferido esperar pelo resultado final do dossiê de Mueller e, o mais certo, é que continuem a fazê-lo, como explicou a revista Atlantic. “Deixem-me repetir: temos de esperar pelo relatório de Mueller e ver o que diz”, declarou Steny Hoyer, democrata na Câmara dos Representantes, à saída da audição de Michael Cohen.
O código de silêncio
Até lá, Trump pode dormir descansado — e, mesmo nesse caso, não é certo que um processo de impeachment seja bem sucedido. Quaisquer acusações judiciais, essas, só podem avançar depois de o milionário deixar de ser presidente. Pelo meio, Donald Trump continuará a afirmar que Michael Cohen está a mentir — “é risível que alguém confie num mentiroso encartado como Cohen”, declarou a Casa Branca após a audição —, uma afirmação que ganha peso pelo facto de o seu ex-advogado já ter confessado ter mentido no passado ao Congresso.
Agora, alega que o fez por pressão do presidente: “O senhor Trump não me disse diretamente para mentir ao Congresso, não é assim que ele funciona”, disse. “Ao mesmo tempo que eu fazia negócios diretamente com a Rússia por ele [sobre a Trump Tower de Moscovo], ele olhava-me nos olhos e dizia que não havia negócios com a Rússia e depois mentia ao povo americano ao dizer a mesma coisa. Ele estava a dizer-me para mentir, à sua maneira.”
Segundo Cohen, a omertà imposta por Trump é prova dos seus próprios crimes, tendo o advogado ousado agora quebrar esse código de silêncio — depois de, dirão os críticos, ter sido ele próprio apanhado. “O trabalho de toda a gente na Organização Trump é proteger o senhor Trump”, confessou aos congressistas. Mas, é preciso dizê-lo, Cohen não foi o primeiro a fazer a comparação com a Máfia: já James Comey, o antigo diretor do FBI despedido por Trump, a tinha feito, falando num “círculo de silêncio, no controlo completo do chefe, nos juramentos de lealdade, numa visão do mundo de nós-contra-eles”, como relembrou a New Republic.
“Ao longo dos últimos dois anos, fui difamado como sendo ‘um bufo’ pelo presidente dos Estados Unidos. A verdade é bastante diferente”, disse Michael Cohen perante o Congresso esta semana.
Resta saber quem diz a verdade: o Padrinho Don ou o capo Cohen? No final do segundo filme do Padrinho, a personagem invocada por Roger Stone, Frank Pentangeli, suicida-se como prova de lealdade à Família. Fredo Corleone, o irmão do Padrinho que o traiu, acaba executado por ordem de maior capo de todos.
E este filme, como acabará? Só mesmo assistindo até ao fim para saber.