Resistia ao ser despida, chorava quando a tentavam observar e tinha o impulso de fechar as pernas sempre que um médico lhe tocava. Os sinais no comportamento da menina de um ano e sete meses eram estranhos e suspeitos por si só. E poucas dúvidas restaram quando os médicos detetaram que a bebé tinha a zona genital muito inflamada. Menos ainda quando a mãe, sem que ninguém lhe perguntasse nada, começou a repetir: “Eu não fiz nada! Eu não fiz nada!” Ali, ficou quase certo que a menina tinha sido submetida a uma mutilação genital.
A mãe, então com 19 anos, tinha levado a filha a um centro de saúde na Amadora precisamente por causa da vermelhidão na zona genital. Explicou que tinha chegado há duas semanas de uma viagem à Guiné-Bissau, de onde é natural, e associou o problema ao uso de fraldas num país tão quente. Sugeriu até aos médicos que talvez fosse uma infeção urinária. Quanto ao choro, garantiu, não havia razão para se preocuparem: era normal a filha chorar quando estranhos a tentavam despir.
A tese não convenceu os médicos. E, por isso, tomaram duas decisões. Primeiro, deram indicações à mãe para levar a criança às urgências do Hospital Amadora-Sintra o mais rapidamente possível — o que a jovem nunca chegou a fazer. Depois, pediram uma perícia médica ao Instituto de Medicina Legal e Ciências Forenses. A perícia acabaria por ser feita três meses depois e viria a confirmar a suspeita dos médicos: a menina tinha cicatrizes de um centímetro que eram compatíveis com práticas de mutilação genital feminina.
Viria também a confirmar-se quase três anos depois pelo Tribunal de Sintra que esta sexta-feira condenou a mãe da criança a três anos de prisão efetiva pelo crime de mutilação genital feminina à filha, agora com três anos e meio — a quem terá ainda de pagar uma indemnização de 10 mil euros pelos danos causados. É a primeira condenação deste tipo de crime em Portugal desde que a prática passou a ser considerada um crime, em 2015. “A arguida não soube proteger a filha”, afirmou o juiz Paulo Almeida Cunha durante a leitura da decisão.
Nesta condenação inédita, o Tribunal citou até uma Resolução do Parlamento Europeu, de 12 de fevereiro de 2020, que estima que “até 2030 haverá 68 milhões de raparigas em todo o mundo em risco de serem vítimas de mutilação genital feminina”. E aponta ainda para “que vivam na Europa cerca de 600 mil mulheres e raparigas com sequelas físicas e psicológicas permanentes” resultantes desta prática “e que, só em 13 países, estejam expostas a um elevado risco cerca de 180 mil raparigas”. O juiz afirmou que as “necessidades de prevenção geral são elevadíssimas”, especialmente porque “as vítimas não se podem queixar” e este ato fica no “silêncio familiar”. “Temos de prevenir a pratica sobre todas as outras meninas”, disse no final do acórdão e antes mesmo de anunciar o veredito final.
Mutilação terá sido feito numa estadia de dois meses e meio na Guiné-Bissau
O crime ocorreu entre o dia 4 de janeiro de 2019 e 15 de março do mesmo ano — nem a investigação, nem o Tribunal conseguiram exatamente determinar o dia específico em que aconteceu. Nessa altura, a mãe da criança, então com 19 anos, vivia na Amadora com a sua mãe e duas irmãs, mas viajou com a filha para Guiné-Bissau — que em 2011 aprovou uma lei que criminaliza a mutilação genital feminina. Foi durante essa estadia de dois meses e meio naquele país africano que a menina de um ano e meio foi submetida a essa prática. “É indiscutível que a mutilação genital feminina é praticada neste país”, disse o juiz.
Apenas quatro dias depois da ida para a Guiné-Bissau, “as campainhas começaram a tocar”, nas palavras do juiz. A criança tinha uma consulta de vigilância de saúde infantil marcada para dia 8 de janeiro e não apareceu. Logo aí, o delegado de saúde, por “receio de mutilação”, sinalizou a situação junto da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens. Só que “a menor e a mãe já tinham ido em viagem” e apenas três meses depois, a 4 de abril, a menina voltou a ser vista pelos médicos do centro de saúde, que viriam a confirmar o seu receio.
O desfecho foi o dado como provado em tribunal, mas o que aconteceu exatamente durante a viagem ninguém sabe — a não ser a mãe da criança, que não o revela. “Quem foi que fez isso?”, questionou o juiz, para depois ele próprio responder: “A perícia não nos responde a isso e temos de perceber o que se passou depois de regressar”. Na verdade, é uma pergunta sem resposta: não foi possível descobrir o autor material do crime, isto é, quem mutilou exatamente a bebé.
Ainda assim, para o Tribunal de Sintra isso foi indiferente. Os juízes entenderam que “não ficou provado que foi a arguida, mas alguém a seu pedido na Guiné-Bissau” e também não ficou provado que tenha agido de forma “autodeterminada”, apenas por sua vontade e sem a influência de outros, até porque “foi a própria a dizer que a mutilação genital feminina era proibida” e, lembrou o juiz, tinha 19 anos quando cometeu os factos. Mas, de uma forma ou de outra, o que importa é que a arguida “atuou com o propósito alcançado de cortar genitalmente a sua filha”, segundo o acórdão. Mesmo que a execução, na prática, tenha sido de alguém a seu pedido, o Tribunal responsabilizou a mulher por provocar “dores, lesões, sequelas permanentes e aptas a afetar a fruição sexual” futura da sua filha.
A perícia médico-legal classificou a mutilação de que a criança foi vítima como de tipo IV . Quer isto dizer que a forma de mutilação menos grave. Segundo a classificação da Organização Mundial de Saúde, este tipo de mutilação inclui “punção/picada, perfuração, incisão/corte, escarificação e cauterização” sobre os órgãos genitais femininos. A remoção parcial ou total do clítoris está incluída no tipo I, o mais grave. Ainda assim, aos olhos do Tribunal de Sintra, também esta classificação foi indiferente para condenar a mãe. O juiz enumerou até algumas das consequências, atuais e futuras: “Dores, hemorragias, complicações crónicas, alterações da sensibilizada e ausência de orgasmo”.
Mãe nega crime e diz-se contra mutilação genital: “Dou a minha vida pela minha filha”
Durante o julgamento, a arguida sempre se mostrou contra este ritual, a que ela e a sua irmã também foram submetidas na infância. Foi ela, aliás, quem disse aos juízes que tinha plena noção de que esta prática era proibida, quer em Portugal quer na Guiné-Bissau. Garantiu que o objetivo da viagem era mostrar a sua filha aos familiares que tinha no país africano e que a sua própria mãe ligou várias vezes para a irmã que vivia na Guiné-Bissau “para não fazerem nada à neta“, relata o acórdão.
No entanto, as suas contradições foram evidentes ao longo do julgamento e acabaram elencadas no acórdão. Numa primeira fase, disse que não detetou, em momento algum, sangue nas fraldas da filha; mas acabaria por admitir que, de facto, isso aconteceu, no regresso a Portugal. Também afirmou, primeiro, que a criança nunca tinha chorado da maneira como estava a chorar no centro de saúde; mas acabaria por confessar mais tarde que já durante a viagem chorava assim.
Garantiu também aos juízes que, durante a estadia na Guiné-Bissau, não deixou a filha à guarda de outras pessoas que a pudessem ter submetido à prática. “Perguntaram-me se tinha ficado a dormir com alguém e eu disse que não, que não dormiu com ninguém. Eu não deixo que ninguém toque nela. Dou a minha vida pela minha filha”, disse na sessão das alegações finais, a 17 de dezembro de 2020. Mais tarde, porém, acabou por admitir que a deixou com outras pessoas em duas ou três ocasiões, incluindo durante um dia inteiro.
Também a avó da criança foi ouvida em tribunal, como testemunha. Revelou que todas as suas filhas, à exceção da mais nova, foram sujeitas à mutilação genital — algo de que está arrependida. “Arrependi-me. Se pudesse voltar atrás, voltava”, garantiu. Segundo a Agência Lusa, a mulher explicou que, na altura, não tinha informação sobre os efeitos desta prática que via como “cultura”, e só quando veio viver para Portugal percebeu na Mesquita de Central de Lisboa que a mutilação genital não era um preceito da sua religião, o Islão.
Apesar de a família pertencer à etnia fula, uma das que mais pratica a mutilação genital, a avó da criança garantiu aos juízes que a filha agora condenada “nunca falou no fanado [nome em crioulo para este ritual]” e que “a nova geração” não segue esta prática, por estar mais informada sobre as suas consequências.
Ainda assim, o Tribunal de Sintra não ficou convencido e, na leitura do acórdão, afirmou que “a única situação que a arguida tem a seu favor é não ter antecedentes criminais”. Quanto ao resto: “Não confessou, não manifestou arrependimento, desprezou a apreciação dos médicos”, indica o acórdão. O juiz apontou ainda o facto de ter havido uma premeditação ao marcar a viagem até a Guiné-Bissau e de ter agido “contra a própria filha”, numa “traição da confiança e dos deveres de proteção”. O magistrado avisou que “a juventude” seria “ponderada”, mas não iria “determinar algum privilégio” e, por isso, numa moldura penal que vai dos dois aos 10 anos, decidiu condená-la a três anos de prisão efetiva. Além de ser nova, o facto de a mutilação exercida não ser a mais grave também funcionou como atenuante.
Mutilação genital feminina tornou-se crime em 2015. Há mais dois casos em investigação
Em Portugal, a mutilação genital feminina foi autonomizada enquanto crime em 2015 e prevê uma pena de dois a 10 anos de prisão para quem exercer essa prática e de até três anos para quem realizar os atos preparatórios da mutilação. No ano anterior tinham sido registados dois inquéritos na Amadora, mas foram investigados como um crime de ofensa à integridade física e acabaram arquivados, informou fonte da Procuradoria-Geral da República ao Observador. Em 2015, também foi investigado outro caso, mas como um crime de ofensa à integridade física.
A partir da mudança na lei, já houve 11 inquéritos abertos pelo MP: oito foram arquivados; dois ainda estão a ser investigados; e o restante era este, agora transformado no primeiro caso a chegar a tribunal e a ver uma condenação.
Primeiro caso de mutilação genital feminina chega aos tribunais portugueses