Da próxima vez que lhe servirem um galão num destes copos, observe. Comece por reparar na forma como ele chega até si. O galão, bebida típica dos cafés portugueses, três quartos de leite e um quarto de café diluídos num tom de caramelo claro, sem espuma, nunca está sozinho. Traz uma colher longa e um pacote de açúcar, tudo pousado num pires branco de chávena de café, volumoso e muitas vezes já esbeiçado, onde espreita um logotipo desmaiado de uma marca de café qualquer. Vem trémulo, gaguejando com o tilintar no prato, porque a base do copo nem sempre encaixa no bordo interior do pires. A incompatibilidade entre copo e pires ouve-se, mas também se vê. Um copo de vidro e um pires de cerâmica, um transparente, o outro opaco, um facetado, o outro liso. Claramente não foram feitos um para o outro. Convivem num casamento forçado, relação sem diálogo, que costuma acabar com o galão meio entornado. O pires, acompanhante emprestado do copo de galão, é um ator importante nesta história. Vai lembrar-se dele adiante.
Em alguns cafés, o copo de galão vem entalado numa estrutura de metal com uma pega larga e alta, que morde a borda do copo como uma pinça cirúrgica e que se desenvolve até à sua base em dois aros finos, quase que em forma de vénia. A pega é uma forma presunçosa de dizer ao cliente que aquele café pensou no seu conforto, que não serve galões num copo qualquer. Anuncia, com a sua curva pomposa e brilhante, que a bebida está quente. Mas traz contradições térmicas. Uma pega fria de metal impede o aconchego de envolver com as mãos um copo morno antes de o levar à boca. E é desajeitada. Não há maneira de entrelaçar os dedos confortavelmente naqueles aros. A pega de metal também é importante nesta história, não se esqueça dela.
Quando o empregado do café finalmente pousar o galão na sua mesa, observe o copo com mais vagar. Não se preocupe que o galão não arrefece depressa. Segure no copo e passe os dedos pela sua superfície. É difícil descrevê-lo: não é grande nem pequeno, nem largo nem estreito. É um copo modesto, de vidro espesso e fundo grosso, mas com pormenores que refinam a sua aparência. A ondulação da superfície do copo dá-lhe interesse. A base mais estreita afina a regularidade primitiva do cilindro. As linhas das facetas altas espelham a luz, com um discreto brilho de cristal. As facetas aumentam a resistência do vidro e ao mesmo tempo disfarçam riscos e cicatrizes de lavagens constantes. O canelado suave é uma textura agradável ao toque, que não escorrega, e que permite a quem pega no copo perceber a temperatura do líquido sem se queimar facilmente. A borda lisa e larga no topo reforça a resistência do copo e conforta os lábios de quem bebe. Não é inquebrável, mas sobrevive bem à vida dura dos cafés e pastelarias, às máquinas de lavar loiça das cozinhas industriais, aos empregados apressados e aos clientes desajeitados.
O copo de galão resulta de uma combinação graciosa de material resistente para quem o serve, agradável para quem o usa. Mas, apesar dos seus detalhes, um copo de galão nunca será um objeto elegante, como uma chávena de chá de porcelana fina. E não há no gesto de segurar num copo de galão a sofisticação de pegar uma chávena de chá pela ponta dos dedos. São membros de famílias diferentes que não se misturam.
Até meados do séc. XX, também os clientes dos cafés não se misturavam com as clientes das salas de chá em Portugal. Os cafés portugueses eram locais de boémia masculina onde as senhoras não entravam. Entre nuvens de tabaco e de política, inalavam-se conversas movidas a café, vinho e jornais, tais como as conhecidas histórias dos cafés Martinho, Nicola, Chave D’Ouro, A Brasileira, e de tantos outros nos relatam. Do outro lado da rua, as senhoras elegantes faziam pausas nas suas compras para tomarem o chá da tarde. Nas salas de chá e confeitarias, como a Patisserie Benard, a Confeitaria Nacional ou a Pastelaria Foz, recuperavam o fôlego perdido a escolher tecidos, adoçando sussurros entre chávenas de porcelana, pastelaria fina e menus escritos em francês.
A história dos cafés e das salas de chá portuguesas é conhecida, e, no que diz respeito a Lisboa, não há melhor relato deles do que o da Marina Tavares Dias, sobretudo nos seus célebres livros dedicados à Lisboa Desaparecida. Também é Marina Tavares Dias que descreve como café, jornais e vinho, de um lado, e chá e bolos de outro, dois universos tendencialmente separados, viriam a encontrar-se em Portugal algures a meio do séc. XX, nas figuras mais indiferenciadas dos snack-bares e dos cafés/pastelarias com fabrico próprio que ainda hoje existem em todo o país.
Curiosamente, é essa também a data aproximada em que os copos de galão começaram a aparecer nos catálogos das fábricas de vidro portuguesas.
A origem exata do copo de galão não é conhecida, e as empresas que hoje fabricam o copo não têm informação rigorosa sobre a sua história. Muitos catálogos das fábricas de vidro não sobreviveram, sobretudo porque os catálogos, quando atualizados com novos modelos e preçários, eram frequentemente deitados fora. Mas, em diversos catálogos de meados do séc. XX aparecem copos com um desenho muito aproximado, se não mesmo idêntico, aos copos de galão, apesar de nem sempre lhes atribuírem esse nome. Os copos de galão vinham nas páginas dos catálogos destinadas a copos de uso corrente, ao lado de copos de vinho e de canecas de cerveja, também eles facetados. Aliás, as facetas dos copos de galão fazem lembrar as facetas dos copos usados desde há vários séculos para servir bebidas alcoólicas nos cafés, botequins e tabernas, que tinham de ser resistentes. Alguns exemplares de copos de taberna facetados podem inclusivamente ser vistos nos catálogos das fábricas de vidro da Marinha Grande do séc. XVIII, quando João Beare e posteriormente Guilherme Stephens lá desenvolveram atividade. A propósito, conta-se que Stephens terá um dia entrado numa estalagem a caminho da Marinha Grande, depois de partir de Lisboa, e terá ouvido a estalajadeira elogiar a resistência dos copos que provinham da sua própria fábrica. Stephens atirou o copo ao chão, prometendo pagá-lo se se partisse. Tendo o copo resistido, Stephens comprou o copo à estalajadeira, pediu um martelo e desfê-lo em pedaços, comentando depois que copos resistentes não eram bons para o seu negócio. Não é inverosímil que tal copo fosse um copo de taberna facetado.
Será o copo de galão resultado da evolução do copo facetado de taberna, ou um descendente da caneca canelada de cerveja, que, algures no tempo, para servir café com leite, perdeu a sua pega (ou, numa leitura darwinista, a sua cauda)? Será que, naquela fusão entre os cafés e as salas de chá, foram aproveitados os copos de vinho para servir café com leite, os quais foram sendo progressivamente refinados na sua forma e no número das suas facetas, até se chegar ao atual copo de galão? Um copo grosseiro, que aprendeu bons modos quando as senhoras começaram a entrar? Será, afinal, o copo de galão filho do casamento entre os cafés e as salas de chá? O café, escuro, forte e encorpado, diluído na brancura cheia e pura do leite, o universo masculino e o universo feminino, misturados num copo de galão?
É o próprio copo que nos sugere esta história. São as suas facetas que apontam para uma longínqua, apesar de hipotética, ascendência. É a utilização desajeitada de um pires de chávena de café onde pousar a colher que nos revela que o copo de galão poderá ter vindo, originalmente, de um copo de vinho ou de cerveja, que nunca teve necessidade de fazer par com qualquer prato. Mas a verdade é que, tal como sucede com muitos outros objetos do nosso dia-a-dia cuja origem não conhecemos e que não questionamos, o copo de galão tem uma história difícil de reconstituir.
Quando acabar de beber o galão, verá que no fundo do copo está escrito Portugal. O copo de galão é fabricado em Portugal, e é anunciado por várias empresas como sendo um produto típico português, um portador semiótico e nostálgico dos costumes do nosso país. É vendido em lojas que celebram e promovem as tradições nacionais. Qualquer pessoa de nacionalidade portuguesa lhe dirá que é um copo de design original português.
No entanto, experimente perguntar a uma pessoa de nacionalidade brasileira, russa ou ucraniana se conhece este copo. Não se espante com a resposta: todos dirão, se não olharem detalhadamente, que é um copo tradicional do seu país.
Em 1947, Nadir Figueiredo, empresário brasileiro do setor do vidro, começou a produzir um copo facetado a que chamou Copo Americano. Aparentemente, o nome do copo não tem nada que ver com design americano; diz-se que terá vindo do facto de ter começado a utilizar maquinaria proveniente dos Estados Unidos da América. O Copo Americano é parte integrante da tradição brasileira, e continua hoje a ser produzido em grandes quantidades. A própria marca, que ainda o fabrica, chama-o de “copo oficial do Brasil”. Em 2009, foi integrado numa exposição sobre design brasileiro no MoMA, em Nova Iorque, e vendido na sua loja como produto típico brasileiro.
O Copo Americano tem menos facetas, mas partilha os mesmos traços de família do copo de galão. É utilizado para as mais diversas bebidas e para os mais diversos fins, inclusivamente como medida em receitas. Mas é usado sobretudo para beber café com leite. O cartaz publicitário onde aparece à frente de um pão com manteiga podia ser primo de um cartaz equivalente de um copo de galão português, acompanhado por uma torrada aparada.
Muitos afirmam, contudo, que o Copo Americano além de não ter nada de americano também não tem nada de brasileiro.
Diz-se que uns anos antes, em 1943, Vera Mukhina, escultora nascida na atual Letónia, desenhou um copo facetado, que pretendia ser mais resistente às novas máquinas de lavar loiça industriais soviéticas. As facetas do copo soviético são menos marcadas do que as facetas do copo português, mas o seu desenho é idêntico, até na borda lisa superior. Mukhina terá concebido o copo em conjunto com Kazimir Malevich, outro artista soviético. Terá sido, em qualquer caso, um aperfeiçoamento de um design mais antigo, atribuído a um fabricante de vidro do séc. XVIII, Efim Smolin. Efim Smolin ofereceu um copo facetado (literalmente, granyonyi stakan, nome que ainda é usado para os copos facetados) a Pedro, o Grande, alegando que não se partiria. O monarca atirou-o ao chão depois de o usar, partindo-o, e daí terá vindo o costume russo de partir copos em ocasiões de celebração.
Mukhina passou parte da sua infância na Ucrânia, onde tinha família. Malevich, de origem polaca, nasceu e viveu em Kyiv. O copo facetado soviético está embebido de história ucraniana. E veio a entrelaçar-se com as tradições ucranianas. Tanto na Rússia como na Ucrânia (e em outros países antes incluídos na União Soviética), os copos facetados na versão atribuída a Mukhina são usados para as mais diversas bebidas, desde o chá à vodka. Tal como no Brasil, são referidos em receitas como medida. Tanto na Rússia como na Ucrânia, estes copos são muitas vezes usados para servir chá em comboios, abraçados por suportes de metal para não queimar quem os usa e para dar mais estabilidade à bebida num veículo em movimento. São muitos os blogues de viagens que, descrevendo viagens de comboio pelo vasto território da Ucrânia, mencionam os copos facetados, pousados em suportes de metal trabalhados e gravados com mensagens ucranianas.
O que dizer do design idêntico do copo de galão português, do copo americano brasileiro, e do copo facetado soviético? O que dizer, em concreto, do facto de os três aparentarem surgir, no seu desenho atual, em meados do séc. XX, sem que nada na sua história conhecida os cruze? O que pensar da semelhança funcional, apesar das diferenças formais, entre os suportes metálicos portugueses e soviéticos? E, finalmente, o que concluir dos copos partidos partilhados pelas histórias de Stephens e de Efim Smolin, ambas do séc. XVIII? É certo que há copos facetados pelo menos desde o tempo dos romanos, e a verdade é que o copo de galão não é um copo de design particularmente original. Mas haverá uma explicação mais profunda para estas coincidências? Sem contar, claro, com o copo Vardagen, versão da Ikea, quantos mais copos facetados, irmãos ou primos do copo de galão, existirão?
Deyan Sudjic explica que há um código genético nos objetos, que revela a sua pertença a um determinado contexto cultural, geográfico, político e económico, e que justifica, pelo menos em parte, a razão de ser de as mesmas coisas, pensadas para as mesmas funções, concebidas com as mesmas tecnologias, terem designs diferentes. Compara, inclusivamente, uma cápsula espacial americana com uma russa, assinalando as suas diferenças. A história do copo de galão, contudo, demonstra-nos que o oposto também pode ser verdade. Poderão existir, é certo, elos de ligação entre as histórias destes copos que ainda não foram descobertos. Afinal, o design também viaja, e por vezes de forma surpreendente. O copo de galão pode ser fonte – ou fruto – de transferências tecnológicas que ocorreram algures no tempo entre várias culturas e países. Mas não se pode excluir que este copo seja, simplesmente, produto da otimização transcultural de um determinado design. Um resultado material do inconsciente coletivo de Carl Jung, de uma semântica universal, um design inevitável.
Os tempos de hoje dificultam uma investigação mais detalhada destes copos. Nos comboios ucranianos, que hoje transportam milhões de refugiados em fuga da guerra, servia-se em tempos de paz chá em copos facetados soviéticos, produzidos em fábricas russas. Pode ser doloroso e complexo falar nesta altura de um copo que tanto pode ser celebrado pela ligação à sua história como desprezado pela sua eventual carga simbólica. O que farão os ucranianos a estes copos, quando terminar a guerra? É impossível não imaginar que poderiam parti-los em celebração da sua vitória. Ou, como desvio propositado à tradição russa de partir copos, que poderiam mantê-los, um espólio de guerra, uma apropriação justa. Mas como voltar a beber tranquilamente um galão, num café português, e não pensar nisto?
Materialista é uma série sobre memória material em que Joana Albernaz Delgado dá a voz a objetos icónicos do quotidiano. Desde que terminou o mestrado em História do Design no Victoria and Albert Museum e no Royal College of Art que Joana escreve sobre tudo e mais alguma coisa, em especial sobre coisas. É materialista, no bom sentido.
Este artigo resulta de uma exploração inicial da história do copo de galão, que a autora se encontra a desenvolver com investigação adicional. Todas as opiniões aqui expressas são da sua exclusiva responsabilidade.