910kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

i

Getty Images

Getty Images

O dia em que a Guerra não acabou

No centenário do armistício da Grande Guerra é necessário fazer uma reflexão sobre as origens do conflito, a paz de 1919 e as razões pelas quais essa paz não poderia prevalecer. Ensaio de Bruno Alves.

    Índice

    Índice

A “mais cruel e terrível guerra”

Há cem anos, à “décima primeira hora do décimo primeiro dia do décimo primeiro mês”, mais de quatro anos de guerra na Europa chegavam ao fim. Apenas alguns dias antes, o então Secretário de Estado da Alemanha, Mathias Erzberger, e uma variedade de outros representantes germânicos, tinham chegado a Rethondes, onde o marechal Ferdinand Foch, o supremo comandante francês das forças aliadas na guerra, estabelecera o seu quartel-general. Foch leu a Erzberger os termos propostos para um armistício, e deu-lhe três dias para chegar a uma decisão. Às 4 da manhã de 11 de Novembro, Erzberger aquiesceu, exclamando dramaticamente que “uma nação de setenta milhões” – a sua – “sofre, mas não morre”. Foch respondeu apenas com um desdenhoso “muito bem”. Sete horas depois, os sons de um cessar-fogo geral foram ouvidos em todo o continente.

Tudo começara a 28 de Junho de 1914, quando o carro que transportava o Arquiduque austríaco Franz Ferdinand pela principal avenida de Sarajevo foi atingido por uma bomba que acabou por ferir outras vinte e duas pessoas. Saído ileso do atentado, o herdeiro do trono imperial austríaco pretendia visitar os feridos, quando o seu chaffeur se enganou no caminho para o hospital, e para seu azar, entrou na rua onde se encontrava um tal de Gravilo Princip, um membro da Crna Ruka (a “Mão Negra”), o grupo terrorista sérvio que tinha sido responsável pelo atentado à bomba a que o Arquiduque escapara, e que desta vez, não falharia. Um mês depois, o império declarava guerra à Sérvia. No dia seguinte, a Rússia czarista ordenava a mobilização das suas tropas contra os austríacos. A 1 de Agosto, a Alemanha declarava guerra à Rússia, e no dia 3, declararia guerra à França. No dia seguinte, seria a Bélgica a receber uma declaração de guerra do governo do Kaiser. Nesse mesmo dia, o Reino Unido declarava oficialmente a abertura das hostilidades contra a Alemanha.

Na véspera da declaração de guerra, ninguém sabia se o Reino Unido se juntaria ao conflito continental. Quando, em finais de Julho de 1914, a Alemanha pediu a neutralidade britânica, deixara bem claras as suas intenções de atacar a França. Aparentemente, não era nada que Edward Grey, o Ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, levasse muito a sério. Como Churchill viria a descrever, o seu companheiro de Gabinete queria “fazer com que os alemães percebessem” que não poderiam ignorar a vontade inglesa, mas “sem fazer com que a França ou a Rússia sentissem que” a Inglaterra “estava no seu bolso”. Acabou por não conseguir nenhuma das duas, e os dois blocos agiam como se a Inglaterra lhes tivesse dado as garantias que cada um deles pretendia, a Alemanha acreditando que o Império Britânico se manteria neutral, França e Rússia confiantes de que em caso de guerra não seriam deixadas sozinhas.

Winston Churchill, ministro das Munições na altura da Grande Guerra, escreveu depois que Edward Grey queria "mostrar a vontade dos ingleses"

Getty Images

O próprio governo parecia não saber muito bem que caminho ia seguir. Nem todos os membros do Gabinete concordavam com Grey, e nem a declaração de guerra da Alemanha à Rússia foi suficiente para sanar a divisão. A neutralidade continuava a ser a opção preferida de muitos deles, e só quando o Chefe do estado-maior alemão Helmuth von Möltke lançou um ultimato à Bélgica, exigindo liberdade de circulação para as tropas alemãs por todo o território belga, os mais renitentes se deixaram convencer. Já em 1906, o cenário de uma violação da neutralidade belga era previsto como passível de arrastar a Inglaterra para uma guerra continental. Se, como garantia o Primeiro Ministro Asquith, nada a obrigava a nela participar, os riscos de se manter de fora pareciam demasiado elevados. A anexação da Bélgica e da Holanda fazia com que a Alemanha tivesse acesso aos portos da costa do Canal, em posição de atacar as ilhas britânicas, juntamente com a – como avisava então um memorando do Estado-Maior britânico – “elevada indemnização imposta à França”, colocariam a Alemanha numa “posição dominante” no continente, que poderia “deixar ao seu alcance” uma futura “preponderância naval”. A tradição estratégica britânica sempre procurara limitar a fraqueza do seu exército expedicionário através de duas linhas essenciais: a primeira, como o Sir Humphrey de Yes Minister diz, “manter a Europa dividida”, para que a sua superioridade naval (a segunda) não fosse posta em causa por uma potência hegemónica que a pudesse suplantar. Aliás, o receio de Grey de que a França e a Rússia se poderiam passar para o outro lado mostra bem como a prioridade da política externa britânica era a de impedir a supremacia continental de uma das potências. A Inglaterra entrava na guerra não por um mero chiffon de papier (como o Chanceller alemão Bethmann Hollwegg se lamentaria), mas pelo desejo de manter o equilíbrio da balança de poder.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A entrada da Alemanha numa guerra com a Rússia e a França tornava assim dificilmente evitável a participação britânica no conflito. Em plena “Crise de Julho” de 1914, a Alemanha daria ao seu velho aliado austro-húngaro um “cheque em branco” que declarava que este último podia contar com a Alemanha enquanto “um aliado e um amigo – fosse qual fosse a decisão”. Este “cheque em branco” talvez pareça um exemplo de um supostamente ambicioso “imperialismo militarista” alemão, ansioso por entrar em guerra para demonstrar a sua superioridade e, como dizia Lenine, “saquear” os concorrentes em “decadência”. Mas se alguém estava em decadência, era a própria Alemanha. Se é verdade que a média do crescimento anual do seu PIB per capita, no período 1870-1913, fora de 1,6% (apenas inferior ao dos Estados Unidos), representando um crescimento absoluto na ordem dos 84% (mais do dobro do inglês), também é verdade que a despesa pública crescia ainda mais (entre 1890 e 1913, a despesa pública alemã, em percentagem do PIB, cresceu 2%). Devido à dificuldade em cobrar impostos (continuava a ser, como dissera o futuro Chanceller Bernard von Bulow em 1890, “um pobre viajante” obrigado a “bater à porta dos estados individuais à procura de subsistência”), a Alemanha tornava-se dependente da contracção de dívida (60% do produto antes da guerra, 21 679 milhões de marcos em comparação com os 8 566 de 1887), ao mesmo tempo que tornava esse endividamento mais caro, devido à falta de confiança dos credores na capacidade alemã de saldar essa dívida (o preço dos títulos de dívida pública vendidos pelo Estado alemão caiu em 26,5% entre 1886 e 1913, enquanto as compensações pagas aos seus credores subiram de 3,56% para 4,06%, o que significa que os seus credores lhe entregavam menos dinheiro em troca de garantias mais elevadas). Em caso de guerra, os custos do esforço militar seriam, temiam, insuportáveis.

A solução para este problema poderá parecer simples: não entrar em guerra. Grey tinha a expectativa de que os alemães chegariam a essa conclusão. Mas se porventura a Alemanha viesse no futuro imediato a ser alvo de uma agressão externa, a progressiva degradação da sua situação financeira apenas agravaria a fragilidade que sentia em 1914. Longe de se ver como uma potência em ascensão, a Alemanha, dizia von Bulow, sentia-se “cercada”, e em 1914, o Kaiser achava-se já “contorcendo isolado na teia” em que o seu país se via enredado. Foi aliás por se verem a si próprios como fracos que os responsáveis militares alemães alteraram o famoso “plano Schlieffen”, reduzindo o número de tropas a serem mobilizadas para a frente de batalha. E era por esperar que a Alemanha ficasse “esgotada” em caso de conflito que Grey não acreditava que esta desencadeasse um ataque “agressivo e ameaçador” à Rússia. Mas talvez precisamente devido a essa hipótese, a Alemanha, alertava o financeiro Max Warburg, não podia “esperar” mais: por um lado, não se podia dar ao luxo de abandonar o aliado austríaco, o único que lhe restava; por outro, temia a ameaça que a França e a Rússia poderiam vir a constituir dois anos mais tarde.

Em plena “Crise de Julho” de 1914, a Alemanha daria ao seu velho aliado austro-húngaro um “cheque em branco” que declarava que este último podia contar com a Alemanha enquanto “um aliado e um amigo – fosse qual fosse a decisão”. Este “cheque em branco” talvez pareça um exemplo de um supostamente ambicioso “imperialismo militarista” alemão, ansioso por entrar em guerra para demonstrar a sua superioridade e, como dizia Lenine, “saquear” os concorrentes em “decadência”. Mas se alguém estava em decadência, era a própria Alemanha. 

Estes dois países, por sua vez, tinham também razões para preferirem uma guerra logo naquele Verão de 1914. A França estava obrigada, pelo tratado assinado em 1893, a aliar-se com a potência czarista em caso de guerra – além de que via nas atribulações austríacas uma oportunidade de expansão do poderio alemão, que compreensivelmente temia desde a humilhação da “guerra franco-prussiana”. A Rússia, por seu lado, avisara já os austríacos de que se a Áustria “corresse para a guerra”, a Rússia se sentiria “compelida” a defender a Sérvia. Em 1908, deixara-a “anexar” a Bósnia-Herzegovina – que a Áustria de facto já administrava como protectorado – e enfurecera os nacionalistas sérvios que esperavam dos seus “irmãos eslavos” protecção e ajuda. Agora não faria o mesmo, e só admitia suspender a mobilização de tropas se a Áustria se mostrasse disponível para “eliminar” do seu ultimato as exigências que “infringiam os direitos de soberania da Sérvia”. O problema estava em que eram precisamente esses “direitos” que a Áustria pretendia “infringir”. O “factor político” da Sérvia, dizia o Imperador, tinha de ser “eliminado”.

Talvez não fossem meras palavras de um pai desgostoso com a morte de um filho às mãos de um bando de assassinos. Afinal, já outro membro da família real, a Imperatriz Elizabeth, havia sido assassinada, esfaqueada em Genebra por um anarquista no ano 1898, e nenhuma guerra resultara daí. A diferença estava nas ambições sérvias, e na pressão que estas colocavam sobre o Império. A sua defesa implicava mais despesas militares, que implicavam a cobrança de mais impostos, que por sua vez implicavam maior descontentamento nas regiões de onde a instabilidade vinha. Por a “monarquia ter sido apanhada pelo pescoço”, e “não como vingança pelo assassinato” do Arquiduque, dizia Conrad von Hotzendorff, chefe do estado-maior do Império, este tinha de “optar entre permitir que fosse estrangulado ou fazer um último esforço para impedir a sua desintegração”.

A Sérvia era, realmente, um “factor político” complicado para o Império dos Habsburgos. Em 1898, em conversa com um diplomata britânico, um jornalista sérvio confessava que a ele e aos seus compatriotas “de forma alguma” interessava “o desarmamento” – ou seja, o fim da tensão entre as potências – “na esperança de ganhar alguma coisa com a conflagração geral”. A crescente decadência do Império Otomano conduzira à independência sérvia após o Congresso de Berlim de 1878, e permitia-lhe alimentar ambições de expansão e união eslava, com a bênção e as armas da Rússia. Com o apoio russo, a Sérvia criou uma Liga Balcânica com o objectivo de expulsar definitivamente os Otomanos da região, e em 1912, na primeira “Guerra dos Balcãs”, acabariam por consegui-lo. Pelo meio, tratariam de invadir a Albânia, um pequeno estado cuja independência o Império Austro-Húngaro se havia comprometido a garantir. No governo da Sérvia estava Nikola Pasic, o Primeiro-Ministro que chegara ao poder na sequência do regicídio de 1903, que arrancara o rei Alexander do poder e vários pedaços do corpo à rainha Draga, e fora já criada a “Mão Negra”; um dos seus fundadores, “Apis”, era agora o chefe dos serviços secretos sérvios. Se em 1898 os sérvios olhavam com esperança para a “conflagração geral”, agora pareciam procurar activamente fazê-la deflagrar. A visita do Arquiduque a Sarajevo oferecer-lhe-ia a oportunidade.

Gravilo Princip, um membro da Crna Ruka (a “Mão Negra”), assassinou o arquiduque Franz Ferdinand

AFP/Getty Images

O império Austro-Húngaro não fizera nenhum favor a si próprio ao “anexar” o território bósnio: se na prática já o controlava, a oficialização do domínio surgia como um acto puramente provocatório, e assim foi recebido não só pelos sérvios como pelos seus patronos russos, sem os quais a Liga Balcânica teria sido impossível. E não custa imaginar como, do lado sérvio, tendo recentemente escapado ao domínio Otomano, se olhava para o gigantesco vizinho austríaco e se temia passar para debaixo da sua alçada. Por outro lado, ao conspirarem um atentado contra Franz Ferdinand, o estado sérvio – na pessoa de “Apis” – e a “Mão Negra” garantiam que uma resposta austríaca não poderia nunca deixar as autoridades do estado eslavo incólumes.

Grey viria mais tarde a dizer que “a Alemanha estava com medo do futuro”. Na realidade, estavam todos. A Áustria temia que ele trouxesse a sua desintegração, às mãos do terrorismo sérvio e das ambições independentistas das suas minorias. A França e a Rússia, a destruição da Sérvia e a afirmação do rival germânico nos Balcãs. A Alemanha, a afirmação russa, e a degradação da sua própria situação interna. E a Inglaterra, paradoxalmente, temia a afirmação do poderio alemão. E assim, todos arriscaram um presente imediato sangrento, na expectativa de um evitarem um futuro ainda pior. Não tiveram grande sorte. Em plena crise, Bethmann Hollweg avisava para a possibilidade de um “conflito generalizado” conduzir a uma “revolução de todas as condições existentes”. No Verão de 1914, milhares de soldados partiram para os campos lamacentos que marcariam as suas vidas nos anos seguintes, ou no pouco tempo que lhes restou. Quando partiram, foi-lhes prometido que estariam de volta no Natal seguinte. Nesse Natal de 1914, as trincheiras foram palco de confraternizações de soldados inimigos, jogos de futebol, missas pelos mortos de ambos os lados. Nos Natais seguintes, esse cenário não se repetiu. Até Novembro de 1918, os que haviam sobrevivido estavam demasiado ocupados a tentarem matar-se uns aos outros. No dia do Armistício, em Londres, o primeiro-ministro, David Lloyd George, anunciou o quão feliz estava com o “fim” da “guerra mais cruel e terrível que já alguma vez assombrara a humanidade” e a sua esperança de que “assim, nesta manhã fatídica, chegasse o fim de todas as guerras”. Não chegou.

O “tumulto sem fim”

Dois meses depois do fim da Grande Guerra, os delegados dos vários países representados na Conferência que procurava garantir que a esperança de Lloyd George se tornava realidade começaram a reunir-se em Paris, para discutir os termos da paz, assinada em Versailles no Verão de 1919: a imposição de fortes “reparações” a serem pagas pela Alemanha aos seus antigos inimigos, a criação de uma série de nos estados independentes no continente europeu, principalmente no que fora o Império austro-húngaro, e a criação de uma Liga das Nações onde os conflitos entre os estados seriam discutidos e dirimidos.

Após a assinatura do tratado, o economista John Maynard Keynes, que assistira às negociações em Paris, escreveu um ensaio – The Economic Consequences of the Peace – em que dizia temer que a paz saída do palácio de Versailles iria condenar a Alemanha “à servidão por uma geração”, “degradando a vida de milhões de seres humanos”, “semeando a decadência de toda a vida civilizada na Europa”. Para Keynes, o elevado montante das “Reparações” que a Alemanha deveria pagar aos vencedores da guerra constituía “um instrumento de opressão e rapina”, que “procurando deliberadamente o empobrecimento da Europa Central”, provocaria a “vingança” alemã e a destruição “da civilização e do progresso”. Keynes pensava que as “Reparações” conduziriam a uma subida brutal da inflação que destruiria a democracia alemã e que espalharia um “tumulto sem fim” e um “perigo constante” por toda a Europa.

O facto de sucessivas crises inflacionistas e de desemprego terem tido lugar, de alguém como Hitler ter tomado o poder e, posteriormente, lançado a guerra sobre a Europa, parece confirmar a previsão de Keynes. No entanto, segundo o historiador britânico A. J. P. Taylor, no seu The Origins of The Second World War, a Alemanha recebeu bastante mais dinheiro emprestado (sem o pagar de volta) de investidores privados americanos do que pagou em reparações: “entre 1919 e 1932, a Alemanha pagou 19,1 mil milhões de marcos em reparações; no mesmo período recebeu 27 mil milhões de marcos em injecções de capital, maioritariamente de investidores estrangeiros, que nunca foram pagos em resultado dos repúdios da dívida em 1923 e 1932”. Para Taylor, estes factos pareciam sugerir que tinham sido as opções políticas alemães, e não as imposições externas, a conduzirem às crises que trouxeram Hitler para o poder.

Para Keynes, o elevado montante das “Reparações” que a Alemanha deveria pagar aos vencedores da guerra constituía “um instrumento de opressão e rapina”, que “procurando deliberadamente o empobrecimento da Europa Central”, provocaria a “vingança” alemã e a destruição “da civilização e do progresso”. 

Em primeiro lugar, os políticos alemães optaram deliberadamente por desequilibrar o orçamento, não fazendo qualquer reforma no sistema fiscal, para transmitirem a ideia de que seria impossível obterem os recursos necessários para o pagamento das reparações. Em segundo lugar, optarem pela inflação em detrimento da deflação, pois pensavam que a primeira seria mais vantajosa no sentido de evitar a revolução. No fim, ela acabou por trazer a descredibilização do sistema parlamentar: a inflação fez com que “todas as relações permanentes entre devedores e credores” ficassem “tão desordenadas ao ponto de serem insignificantes”, e com que se “virassem do avesso” as “bases existentes da sociedade”; “um tal falhanço da ordem legal” teria de conduzir “à quebra da confiança no Estado”, e todos aqueles que estivessem revoltados contra “a ladroagem da inflação” poderiam encontrar consolo no exaltado regaço dos nacionais-socialistas, que prometiam “preços estáveis” e, acima de tudo, “trazer os ladrões” à “justiça”. Com a crise da Grande Depressão e o brutal desemprego que esta trouxe, veio um não menos brutal crescimento do voto, não no partido nazi, mas nos comunistas, o que ao olhos de muita gente, fez com que Hitler parecesse a menos má das alternativas. Outros achavam-no mesmo a melhor: para um país derrotado na guerra e atingido por uma crise económica, um homem que dizia ser possível ultrapassar tudo apenas com a união do volk germânico numa única gemeinschaft, um “novo reino germânico de grandeza e poder e glória e justiça”, seria certamente mais sedutor que “bolcheviques” suficientemente “socialistas” mas pouco “nacionais” para os seus gostos, ou as velhas caras de Weimar.

O facto de Keynes, afinal, não ter estado tão certo como à primeira vista poderia parecer não nos deve fazer ilibar o Tratado de Versailles de forma apressada. Pois se as “consequências económicas da paz” talvez não possam ser alvos da atribuição da culpa pelo destino da economia alemã e a ascensão de Hitler, as suas “consequências políticas” talvez tenham sido mais perniciosas.

Enquanto Keynes fazia as suas previsões catastrofistas, outra Cassandra (muito mais próxima da mítica, pois tal como ela, estava correcta e ninguém a ouviu) afirmava que o Tratado de Versailles iria conduzir a uma nova guerra: em Março de 1919, Lloyd George escrevia a Woodrow Wilson, dizendo não conseguir “conceber uma maior causa de uma futura guerra que o povo alemão, que certamente provou ser uma dos mais vigorosas e poderosas raças do mundo, ser rodeado por uma variedade de pequenos estados, muitos deles consistindo de povos que nunca antes estabeleceram um governo estável por si próprios, mas cada um deles contendo largas massas de germânicos clamando por reunião com a sua terra nativa”.

David Lloyd George, Woodrow Wilson e Georges Clemenceau à saída da assinatura do Tratado de Versalhes

Getty Images

Até 1914, o Império Austro-Húngaro havia permitido a convivência dessas “largas massas de germânicos” com outros povos: eslavos, magiares, polacos, checos, eslovacos, romenos, croatas, ucranianos, para não falar dos vários judeus das várias nacionalidades, todos eles pertenciam a uma mesma unidade política sob a autoridade do “monarca dual” Habsburgo. Claro que essa convivência não era fácil: a própria existência da “monarquia dual” nascia da necessidade de equilibrar os interesses das várias entidades políticas que constituíam o Império, e a minoria germânica só conseguia assegurar a sua predominância ao jogar umas etnias contra as outras no edifício político do Império. Mas era de facto um estado de direito multiétnico, em que o hino podia ser cantado em qualquer uma das várias línguas oficiais do império, incluindo o yiddish. Algumas décadas mais tarde, os judeus da Europa da Central não estariam a cantar o hino austríaco, estariam a ser exterminados pelo nazismo alemão.

E isto porque o Império não sobreviveu à Grande Guerra de 1914-18, e sem ele, o conflito entre os vários povos da região passou do seu edifício político para as ruas das antigas cidades imperiais. De acordo com o princípio da “autodeterminação” estabelecido em Versailles, o Império dividiu-se numa série de países, quase tão multiétnicos como o Império, mas sem as mesmas garantias para as minorias. Entre estas, estavam as tais “largas massas de germânicos”, que passaram a ser alvo de violência, por exemplo, na Polónia e na Checoslováquia, ou que perderam o direito de voto (na Checoslováquia), ou que viram escolas serem fechadas, ou a possibilidade de aceder a empregos públicos recusada. Não era apenas Hitler quem queria unir o volk germânico, nem apenas os eleitores alemães que nele votaram, mas também os elementos de etnia germânica a viver nos novos estados da Europa Central. Numa era obcecada pela “raça”, um “Grande Reich” surgia como uma solução para o problema destes germânicos fora da Alemanha, como a forma que eles teriam de se libertarem do “jugo” das “raças inferiores” que os “dominavam”. A anexação da Áustria, ou a reivindicação da “autodeterminação” dos germânicos de Danzig ou dos Sudetas, eram a forma de “substituir” a protecção da minoria germânica na Europa Central que havia sido o Império Austro-Húngaro.

Ainda por cima, ao mesmo tempo que retirava aos germânicos essa protecção, a desintegração retirava também à Alemanha um contrapeso que pusesse limites ao seu ressurgimento: antes de 1914, não se podia expandir sem que encontrasse no seu caminho uma outra grande potência (França, Áustria ou Rússia); agora, os seus vizinhos eram países como a Checoslováquia ou a Polónia. Versailles criara uma ameaça aos germânicos fora da Alemanha, e abrira a esta uma estrada para ir em seu socorro.

O buraco negro

A estrada para a reafirmação alemã fora aberta com o vazio de poder na Europa Central criado pela desintegração do Império Austro-Húngaro, e pela ausência de uma outra potência que o ocupasse. Os EUA, os construtores da nova ordem, recusaram-se a dar-lhe os alicerces: em vez de assinarem o Convénio da Liga das Nações que os obrigaria a “preservar e defender” a integridade territorial dos restantes membros, os EUA preferiram manter a sua “liberdade de acção”. E aqueles que o assinaram, por sua vez, não demonstraram grande vontade em manter a palavra dada, como a invasão da Manchúria ou a da Etiópia mostrariam, antes mesmo de Hitler fazer o teste à fibra dos Aliados.

O Reino Unido, que surgia então como a única potência mundial europeia, sentia-se manietado precisamente por ser a única potência mundial na Europa: a política de appeasement centrava-se na ideia de que o Reino Unido nada tinha a perder no continente a não ser, em caso de intervenção, a capacidade de defender o Império. Quando o Japão começou a sua política de expansão na Ásia, a ameaça de guerra nas colónias fez com que Chamberlain preferisse aceder às reclamações de Hitler, em vez de, como lhe pediam alguns membros do gabinete, defender a integridade territorial da Checoslováquia.

Os EUA, os construtores da nova ordem, recusaram-se a dar-lhe os alicerces: em vez de assinarem o Convénio da Liga das Nações que os obrigaria a “preservar e defender” a integridade territorial dos restantes membros, os EUA preferiram manter a sua “liberdade de acção”.

A França, por sua vez, viveu vinte anos em pânico com a possibilidade do ressurgimento alemão. Como o Reino Unido não acedia a criar uma aliança militar contra a Alemanha, a França sentia-se demasiado fraca para a enfrentar, e nada mais lhe restou senão esperar que Hitler fosse “sincero” quando dizia não desejar nada para além da paz (não era). No meio do desespero, chegou a celebrar alianças de defesa mútua com a Checoslováquia, Polónia e Roménia, países que poderiam lucrar com a ajuda francesa, mas que eram demasiado fracos para poderem contribuir para defender a França de um eventual ataque alemão. Como demasiado fraca era também a própria França para ajudar a URSS caso esta fosse invadida pela Alemanha, fazendo com que a aliança (ainda por cima excluindo colaboração militar) assinada em 1935 pouco ou nada incomodasse os alemães.

A própria URSS parecia pouco interessada em entrar em conflito com a Alemanha. Stalin dizia não ver razão para “fazer sacrifícios na defesa das democracias ocidentais” quando não via qualquer “diferença” entre elas e a Alemanha. E se era verdade que o “espaço vital” desejado por Hitler se encontrava a Leste, ou seja, na Rússia e nos seus domínios, também era verdade que o facto de o alvo seguinte ser a Polónia abria uma oportunidade a Stalin: querendo expandir-se para a Polónia, Stalin não poderia aliar-se a Chamberlain na garantia da integridade territorial polaca; Hitler, querendo garantir Danzig, também não desejava ter de enfrentar a URSS; assim, ambos tinham um incentivo para partilhar a Polónia.

Quando as tropas alemãs entraram na Polónia, a relutância em intervir do Reino Unido e da França desapareceu (a da URSS e dos EUA só desapareceria quando foram atacados). Talvez tenha sido tarde demais: “em 1933 um primeiro-ministro francês deveria ter dito (…): o novo chanceller alemão é o homem que escreveu o Mein Kampf, que diz isto e aquilo. Este homem não pode ser tolerado na nossa vizinhança. Ou ele desaparece ou nós marchamos.” O autor deste conselho dizia também que os aliados haviam deixado os nazis “sozinhos” a “passar pela zona perigosa” e a “navegar em torno dos recifes”, e que só quando “haviam terminado”, e passaram a estar “bem armados”, “melhor” que França e Reino Unido, então sim, “eles atacaram”. Estas palavras não vinham do warmonger Winston Churchill, mas de alguém que conhecia bem a capacidade alemã e as ambições de Hitler, um tal de dr. Goebbels. Em 1938, os responsáveis alemães diziam não terem condições para conduzir uma guerra contra a França ou o Reino Unido. Se, em vez de ter cedido em Munique, Chamberlain tivesse feito frente a Hitler, os Aliados estariam em melhor posição para travar uma guerra com a Alemanha em 1938, do que acabariam por estar 1939. Chamberlain queria “ganhar tempo”; acabou por oferecê-lo à Alemanha.

Joseph Goebbels escreveu que os aliados haviam deixado os nazis “sozinhos” a “passar pela zona perigosa”

Getty Images

Quando uma estrela colapsa, cria um buraco negro, um corpo com uma tal força gravitacional que atrai tudo à sua volta. Foi isso que aconteceu na Europa após a Grande Guerra de 1914-18: o colapso de uma estrela (o Império Austro-Húngaro) criou um buraco negro (uma série de pequenos estados multiétnicos, sem que existisse uma entidade que garantisse o respeito pelos direitos das minorias, como havia sido o Império) na Europa Central, que exerceu uma força gravitacional tal que nada lhe pôde escapar: a Alemanha quis “salvar” os germânicos que estavam em minoria nos novos estados; a Inglaterra e a França (e bastante mais tarde, os EUA), a partir do momento em que a acção alemã implicou a aquisição de cada vez mais território, quiseram impedir que esta substituísse o desaparecido Império; e a URSS, querendo aproveitar o vazio deixado por ele, encorajou o expansionismo alemão antes do combater.

Na realidade física do nosso universo, nada se pode fazer para evitar um buraco negro. Mas o buraco negro metafórico de 1918-39, cuja força gravitacional atraiu todas as potências para a guerra de 1939-45, podia ter sido evitado: ou impedindo o colapso da estrela (assegurando a sobrevivência do Império Austro-Húngaro) ou substituindo-a (quer colocando os novos estados sob a tutela de uma ou várias potências que assegurassem o respeito por certas regras, quer enfrentando o projecto expansionista alemão desde o início). Ao não o fazerem, apenas foram obrigados a fazê-lo muito mais tarde, e com custos muito maiores.

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.