Na fábula da lebre e da tartaruga, a favoritíssima lebre deixa-se levar pela ilusão da vitória fácil, apouca o adversário direto e acaba por perder, sem apelo nem agravo, uma corrida que era cantada. A tartaruga, resiliente e focada, corta a meta em primeiro por nunca ter deixado de acreditar que era possível derrotar um concorrente mais rápido e mais forte.
No primeiro dia oficial de campanha em Lisboa, os papéis inverteram-se: Fernando Medina, o teórico favorito, meteu a carne toda no assador e lançou-se com tudo para os braços dos eleitores, com flores e panfletos, com varandas e startups, com mini-autocarro e comício.
Já Carlos Moedas, que tem doze dias para enganar o destino — por regra, o presidente em funções consegue a reeleição –, fugiu da rua, fechou-se num espaço controlado com os seus apoiantes e organizou um comício para cerca de 300 pessoas, a única ação de campanha do dia.
Na quarta-feira, a fórmula repete-se e o dia será todo reservado à preparação do grande debate televisivo, na RTP. A estratégia é simples e deliberada: depois de semanas a percorrer as ruas de Lisboa, muito antes dos seus adversários, Moedas quer agora começar devagar para terminar em crescendo. Resta saber como será o desfecho desta história particular.
Medina com o povo, Moedas com (o seu) povo. O filme cruzado do dia
8h45 O grande trunfo da campanha de Carlos Moedas estava guardado para bem cedo. Isabel Ayuso, presidente da Comunidade de Madrid e estrela em ascensão da direita espanhola, junta-se à campanha do social-democrata e apela em vídeo ao voto em Moedas. “Socialismo ou liberdade”, exorta Ayuso. O vídeo acabaria por provocar reações dos alvos que o candidato queria: da direita que se pôs fora da coligação (Iniciativa Liberal) e do principal adversário — Fernando Medina.
10h05 À porta do Mercado de Sapadores, Fernando Medina chega de mini-autocarro descapotável com o seu séquito de apoiantes, incluindo Rui Tavares, do Livre, que se coliga ao PS em Lisboa. Segue pela Graça, desce a Alfama — subtrai ao dia a passagem pela Feira da Ladra porque o contacto com a população já levava duas horas — e só pára no Largo do Chafariz de Dentro, mesmo ali ao lado do prédio azul que ficou famoso por fazer cair o homem com quem negociou um acordo há quatro anos: Ricardo Robles.
Medina vem enérgico. Chama pelos autarcas, entra pelas lojas, pede cafés, e na peixaria da Dona Emília grita “eh carapau”. Distribui flores e panfletos, explica detalhadamente a forma como uma mulher com quem se cruza tem de se candidatar ao programa renda acessível — chega mesmo a escrever tudo nas costas de um envelope –, ouve o centro histórico muito queixoso com a especulação imobiliária e a incapacidade económica de acompanhar aquelas rendas.
Sobe às costas dos jotinhas para entregar flores às varandas, visita startups, incubadoras de empresas. Se no dia anterior a previsão de chuva era um problema, a realidade revela-se solarenga e até o comício de final do dia passaria do interior do Mercado do Forno do Tijolo para o exterior. Há ali contas a acertar com Moedas. Dessas, políticas, mas também das outras: quem mobiliza mais na cidade.
14h30 Por esta altura, Medina e Moedas enfrentavam-se num debate organizado pela TSF e pelo Diário de Notícias, com a presença de Beatriz Gomes Dias, do Bloco de Esquerda, e João Ferreira, do PCP. O duelo a quatro foi gravado na véspera mas o tom entre os dois principais concorrentes não deixou de ser menos crispado.
Medina acabou namorado pela esquerda, com o socialista a prometer pensar numa grande coligação à esquerda depois das eleições. Moedas acabou a insistir no ponto de honra em que transformou a sua campanha: só um voto na coligação de direita Novos Tempos pode libertar a cidade de quase duas décadas de governação socialista. É agora ou nunca, vai dizendo Moedas. Um canto de sereia, vai contrapondo Medina. Os dois voltariam ao duelo (desta vez à distância) pela tarde fora.
19h06 Já vai com uma hora de atraso a última ação de campanha do dia (de cinco). Fernando Medina chega ao Largo do Intendente, em Arroios, para um comício de rua, ou apresentação de candidatura, como a comitiva prefere chamar-lhe. Certo é que há um palco, púlpito, sistema de som e 80 cadeiras distribuídas (e ocupadas) e mais uns quantos apoiantes em pé com bandeiras. Se se parece com um comício, se calhar é mesmo um comício. E às tantas até era conveniente que assim fosse, sempre dava para medir forças diretamente com o adversário que, à mesma hora e a pouco mais de 2 km dali, arrancava o primeiro dia de campanha oficial, num comício.
Aliás, meia hora antes, ao lado de outra apresentação (mini-comício, vá) de Medina na Avenida da República, passava o líder da Juventude Popular, Francisco Camacho. Já ia atrasado para o seu comício, o que era do outro lado da barricada (e da cidade), e para lá chegar agarrou numa das meninas dos olhos de Medina ali estacionada na dock mesmo junto ao ajuntamento socialista, ou seja, apanhou uma bicicleta partilhada da rede Gira e seguiu caminho.
No Intendente, fala Rui Tavares, fundador do Livre que integra, pelo partido, a coligação Mais Lisboa. Não vem do PS, mas é o primeiro do dia a lembrar Jorge Sampaio, o antigo Presidente da República que morreu na sexta-feira passada. Diz que foi ele que acabou por juntar dois dos políticos que ali estão: ele e Medina concluíram recentemente que se cruzaram na campanha presidencial de Sampaio em 1996 que tinha por lema “Um por todos”.
19h18 Está tudo montado para a grande coreografia. O comício de Carlos Moedas estava agendado para as 18h30, o candidato já está no interior do Teatro da Trindade, algures num camarim, mas os convidados resistem em entrar: conversa puxa conversa, abraço puxa abraço, cigarro puxa cigarro e nada do comício arrancar.
Até que os jotas — de branco, sem as cores tradicionais do PSD ou CDS, porque esta, há que não esquecer, é uma grande coligação de direita com independentes — começam a ficar agitados. Moedas está pronto para avançar e o staff do social-democrata dá o sinal. O diligente líder da pequena falange de apoio organiza a sua equipa — quem fica para trás e quem vai desbravar caminho — e eis que surge Moedas a contornar o teatro, como se tivesse acabado de chegar.
Embalado por gritos de apoio, Moedas entra no teatro ao som de “Busy Earnin’”, dos Jungle. A letra e a música deixavam pouca margem para segundas interpretações: Moedas aparecia em jogo para provar que ainda estava em jogo.
19h28 Sem um palco na Trindade, a candidatura de Fernando Medina coloca um Trindade no palco: Bernardo Trindade, antigo secretário de Estado do Turismo, ex-vice-presidente do Turismo de Portugal e, agora, candidato à Assembleia de Freguesia de Arroios. Fala do par que faz com Medina no ténis e das várias vezes que foi barrado, “um jovenzinho da Madeira”, à porta do Frágil pela segurança Margarida Martins, agora presidente daquela Junta. As gargalhadas sonoras da candidata, sentada na primeira fila ao lado de Medina, ouviam-se na última fila. Também elogia o trabalho da JS que responde fazendo barulho lá atrás. Medina vai rindo na primeira fila.
Ouve-se a voz do comício anunciar o “speaker Fernando Medina” que sobe ao palco divertido: “Só mesmo aqui no multiculturalismo de Arroios é que me chamam de ‘próximo speaker”. Arranca a intervenção saudando “as centenas que aqui estão”, mas no largo, a participar naquele comício estavam cerca de 160 pessoas, na contagem do Observador.
19h37 Se Medina ia a jogo com um antigo secretário de Estado do Turismo, Moedas respondia com… um antigo secretário de Estado do Turismo. Adolfo Mesquita Nunes, ex-vice-presidente do CDS, surgia na grande tela do Teatro Trindade para apelar ao voto útil em Carlos Moedas e assim acabar com o jugo socialista em Lisboa. “Votem naqueles que podem ganhar eleições”, repetia Adolfo.
Depois dele, desfilaram uma virtual Isabel Ayuso, presidente da Comunidade de Madrid, o virologista e candidato a vereador Pedro Simas e a democrata-cristã Isabel Galriça Neto, cabeça de lista à Assembleia Municipal de Lisboa, ambos em carne e osso. A mensagem, essa, era transversal: Lisboa precisa de uma mudança.
Moedas aproxima-se do palanque e faz os agradecimentos da praxe. “Apetecia-me abraçar cada um de vocês”, desabafa. Por esta altura, a assessoria do social-democrata fazia contas a cerca de 300 convidados ali presentes.
19h38 Medina continua, no Intendente, com palco montado à frente de um estabelecimento comercial fechado a recordar os tempos difíceis da pandemia. E é aqui que desenrola uma passadeira de elogios carregados a Margarida Martins, desde os apoios que pôs a mexer para acudir aos mais necessitados na quarentena, até à recordação de como ela, há uns anos, até mobilizou um general de quatro estrelas para ir à CML convencê-la a reabilitar uma piscina. Havia ali um objetivo no meio de tantos elogios… antes de subir ao palco Medina tinha estado, afinal, entretido a fazer contas.
Ora bem, as contas de Medina? Entre os tais elogios a Margarida Martins e à sua capacidade de mobilização, o candidato socialista atira uma farpa direita ao Teatro da Trindade. “Quantos políticos há na cidade de Lisboa com capacidade para juntar tantas pessoas, e de tantas nacionalidades diferentes? Não há muitos!” Sorria para bom entendedor.
19h41 Por esta altura já Moedas tinha deixado as falinhas mansas e estava agarrado (ainda que em sentido figurado) ao colarinho de Fernando Medina, o rosto maior da “arrogância, prepotência, falta de transparência e impunidade” que governa Lisboa há quase duas décadas.
Depois de um frente a frente particularmente duro com Medina — o socialista surpreendeu pela estratégia assertiva que levou para o debate e foi considerado de forma quase unânime como o vencedor do duelo — Moedas aparecia disposto a não deixar pedra sobre pedra.
Em quatro minutos, despacha as suas principais bandeiras — mais transparência, menos impostos, transportes gratuitos para mais velhos e mais jovens, acesso à saúde para quem precisa, condições de habitação para os mais jovens — enquanto fala aos lisboetas que foram deixados para trás, desvalorizados, “descrentes” e “enganados” pelo socialismo de Costa e Medina. “Esperança” e “mudança”, vai prometendo o social-democrata.
Enquanto pinta o discurso com histórias de campanha que o comoveram — a mãe que se comoveu quando o encontrou na baixa pombalina agradecendo-lhe a denúncia das situações indignas em que vivem muitos lisboetas; ou o casal socialista que o encontrou nas compras e disse que era incapaz de continuar a votar neste PS –, Moedas repete os ataques a Medina, presidente de “fação”, “de compadrio”, que “só se ocupa dos amigos” e que “não serve Lisboa”.
Daí até ao final, o social-democrata esforça-se por deixar os seus três principais argumentos. Primeiro, só um voto em Moedas é voto útil à direita; só um voto em Moedas pode derrotar Medina. “Se querem mudar só podem votar ‘Novos Tempos’. Somos os únicos que podem fazer essa mudança”. Segundo: só um voto em Moedas traz a diferença, porque Moedas não é da mesma massa de que é feito Medina. “Sou um político diferente, que vem de uma vida diferente.”
Finalmente, só um voto em Moedas pode provocar uma viragem no país e precipitar o início do fim de António Costa. “Podemos abrir aqui uma esperança para os nossos filhos. São tantos anos dos mesmo, na Câmara e no Governo, a culpabilizar o passado do passado, sem nunca terem culpa. Esta mudança começa hoje e começa em Lisboa.”
19h49 No Intendente começa o aquecimento para a sucessão de ataques a Carlos Moedas, com Medina a dizer que não votar em si é “interromper”: políticas de mobilidade, políticas arrojadas, políticas de apoio às famílias e à terceira idade e também às classe média e cidadãos mais jovens.
“Sobre a candidatura de direita”. Aqui Medina já vai lançado e refere Moedas nesta fórmula que foi a que usou sempre para se referir ao lado de lá para começar a dizer que “já tudo se percebeu” e que “a diferença de projetos é clara”. Por isso, “quem quer aquele programa político ali votará, quem não quer, tem de votar na coligação Mais Lisboa”. Ele é a única alternativa, pelo menos para o eleitorado de centro que possa estar indeciso entre os dois.
19h54 “Estamos prontos ou não estamos prontos?”, pergunta por três vezes Carlos Moedas, antes de se despedir com a promessa de lutar em “cada porta, em cada bairro e em cada freguesia” até ao fim da campanha.
19h55 Avisado o centro, Medina volta-se para a esquerda, o lado que tem de contar sempre, já que a maioria absoluta (que perdeu em 2017) é difícil de reconquistar. Durante o dia, o socialista já tinha mostrado desagrado com a reclamação que o PCP tinha feito da ideia de um programa de rendas acessíveis. “Ouvir os partidos à nossa esquerda falar faz-me ficar com a impressão que tudo o que aconteceu na cidade foi por eles e que tudo o que aconteceu de mal é responsabilidade do PS”.
Lá solta uma irritação que tinha presa desde manhã: “Não tinha havido uma única casa de renda acessível se o PS não tivesse ganho as eleições” há quatro anos. E de seguida rematou, nomeando os parceiros/rivais, nessa relação agridoce, que “não, não foi pela vontade nem pela força do Bloco de Esquerda nem do PCP que temos o passe único”. E ainda deixa avisos para o futuro, perante a incerteza deste lado, prometendo “continuar a liderar a agenda”, numa espécie de ‘quem manda sou eu’: promete estar “aberto para convergências” e até “amplas convergências” nas “matérias importantes para a cidade”, mas — e há sempre um mas: “Mas o nosso projeto político está aqui e há anos que serve Lisboa”. Aquele lembrete de que é o PS que liderará qualquer futuro entendimento.
Antes de encerrar, Medina ainda fez o típico apelo ao voto de quem vai à frente e teme que isso desmobilize potenciais eleitores das urnas. “As sondagens são uma coisa e os votos outra”. Uns três vivas no fim e o arranque de campanha está feito. Sobram as selfies e fotografias de grupo que se multiplicam no palco com a presidente da Junta a gritar “Arroios”, ao lado de Fernando Medina, como quem diz “banana” para libertar uns sorrisos.
20h09 Moedas deixa o Teatro da Trindade, depois de ter sido engolido por abraços dos mais próximos apoiantes. O primeiro dia oficial de campanha tinha ficado para trás.