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Para começar, terra batida e óleo queimado
Um burro a passear com alforges cheios de tacos de golfe é uma imagem surrealista. Ganha verosimilhança se se acrescentar contexto: final dos anos 1960, Algarve. À frente do animal vai Henry Cotton, o inglês jogador de golfe, vencedor por três vezes do British Open, que percebeu que, uma vez na região rural de Portimão, o melhor seria integrar-se no ambiente: escolheu um burro para caddie.
Há 50 anos no Algarve não só não eram frequentes burros com estas funções, como a região estava longe de ser a capital portuguesa do golfe e um dos mais competitivos destinos internacionais para a prática da modalidade. Em novembro de 1966, John Stillwell abria o hotel de cinco estrelas Penina e o primeiro campo de golfe relvado do Algarve. Meio século depois há cerca de 35 campos de golfe na região e só se sente falta de um burro amistoso para companhia durante as longas horas de tacadas.
“A Praia da Rocha era, na altura, o local de férias de eleição de muitos portugueses. Apenas alguns turistas britânicos, que ficavam alojados no antigo Grande Hotel da Praia da Rocha, visitavam o Algarve e percebiam a riqueza da sua costa e das suas praias”, contextualiza Sandra Matos, da atual direção do hotel, numa entrevista por e-mail. A relação dos ingleses com o Algarve é antiga e pelos anos 1960 procuravam sobretudo o lado selvagem da zona: um destino de praia que não estava ainda massificado como outros em Espanha ou França e que oferecia um saudável contacto com a natureza. Faltavam, porém, as distrações da elite britânica.
Esse ligeiro tédio já se fazia sentir em 1890, quando o golfe é introduzido no país pelos ingleses comerciantes de vinho do Porto: “O Porto Golfe Clube é o campo mais antigo da Península Ibérica e o segundo mais antigo da Europa continental”, conta ao Observador Miguel Franco de Sousa, presidente da Federação Portuguesa de Golfe (FPG). Fizeram-se campos em Lisboa, na Madeira e nos Açores. Enquanto vai lentamente conquistando praticantes portugueses que se querem associar a este desporto elitista e masculino, em 1937 o golfe chega ao Algarve.
“É uma história curiosa, não se sabe muito sobre o assunto, mas houve na Praia da Rocha um campo de golfe de nove buracos, de terra batida e óleo queimado. Não existe muita coisa relativamente a isso, fechou rapidamente”, continua Franco de Sousa. O terreno na Foz do rio Arade fazia de Portimão “a cidade mais moderna do Algarve”, escrevia a Revista Internacional em 1940. Dentro da edição, vinha um guia – ou, diríamos hoje, um suplemento – dedicado à região com um sir inglês a fumar cachimbo e um jovem a carregar sacos e tacos atrás. Os burros caddies chegam 28 anos depois.
Arre Pacífico, vamos jogar golfe
No início dos anos 60, Henry Cotton foi convidado por Stillwell a desenhar um campo de golfe num arrozal da Tapada da Penina – a sua ligação ao lugar vai manter-se até aos últimos dias: é no Penina que morre, em 1987. Foi obrigado a secar o terreno e aí planta cerca de 300 mil árvores, numa região marcadamente rural. “Foi um marco importante na economia local, uma vez que a deslocação de turistas para esta região permitiu que outros negócios paralelos, associados ao turismo, se desenvolvessem, como é o caso da restauração, das lojas de souvenirs e dos bares de praia”, diz Sandra Matos.
“É um campo muito competitivo, já se jogaram lá vários Opens de Portugal. Tem um bom enquadramento paisagístico, tem buracos desafiantes, mas ao mesmo tempo é um campo que permite ser jogado por um jogador de nível mais baixo, que tenha menos aptidões técnicas”, explica Franco de Sousa. “É um desenho que, não obstante ter 50 anos, ainda está bastante atualizado e sofreu muito poucas alterações ao longo do tempo. E tem a proximidade a Lagos, à Prainha e portanto uma localização fantástica”, afirma o presidente da FPG, acrescentando que nos dias de hoje é muito habitual que jogadores de golfe sejam os arquitetos dos campos – têm o conhecimento técnico, a experiência de jogo e, igualmente importante, são essenciais na comunicação e promoção de um campo.
A modernidade da obra conjugava-se com a envolvência da natureza em bruto e da população ainda pobre. Numa tarde de passeio pela Serra de Monchique Cotton parou um agricultor que puxava um burro e propôs-lhe negócio: comprou o bicho por 75 cêntimos, conta Sandra Matos. “O burro foi batizado de Pacífico e tornou-se assim o seu caddie privado. Durante os seus anos no Penina, Sir Henry Cotton e o seu caddie Pacifico partilharam inúmeros jogos com alguns famosos como Bing Crosby, Bob Hope, Arnold Palmer, Jack Nicklaus, Tony Jacklin, Sean Connery, Lee Trevino e muitos outros.”
Como os caddies que incentivam e dão apoio moral, para além de carregarem tacos de golfe, o Pacífico era um companheiro insubstituível de jogadas e viajava com Cotton. Foi morrer a Espanha, em 1972, quando Cotton desenhava aí novos projetos. Sandra Matos desenha a cronologia desta família: “Aquando do seu regresso ao Penina em 1975, um outro burro mais jovem, Pacífico II, filho do seu primeiro caddie, aguardava a sua chegada. Acompanhou o golfista no campo até 1987. Três anos mais tarde, nasce o Pacífico III, com a responsabilidade de manter a tradição. Não tendo sido caddie, o Pacífico III participou no troféu Sir Henry Cotton acompanhado pelo mesmo senhor que tomou conta do seu ‘avô’ e do seu ‘pai’, o Sr. Délio Varela, que permaneceu no Penina até há bastante pouco tempo.”
Allgarve já nos anos sessenta
O campo da Penina estreia-se um pouco antes do hotel, em junho, com a divulgação feita por Stillwell a jornalistas internacionais, na tentativa de associar o sol e a praia algarvia ao luxo e ao golfe – uma ação que faz lembrar o programa Allgarve de Manuel Pinho, em 2007. O campo abre primeiro, mas um percurso de golfe sem um hotel não é nada. A qualidade de um campo passa por três traços fundamentais, explica Miguel Franco de Sousa: “a sua localização — tem de ser próximo do sítio onde as pessoas vão ficar alojadas, não vale a pena ter um campo a 200 quilómetros do hotel mais próximo; o desenho do campo de golfe — a forma como é jogado, como está integrado na paisagem natural, de que forma tem as ondulações do campo de golfe, o posicionamento de obstáculos, seja de água, seja de areia; e por último a manutenção da qualidade da relva — quanto mais consistente for a relva, maior a sua qualidade. Tem-se investido bastante na manutenção e na qualidade.”
Para o presidente da FPG, a primeira tacada dada pelo Penina para a fundação de uma capital do golfe no Algarve era relativamente intuitiva: o bom tempo da região sul durante todo o ano não se compara ao inverno de Lisboa ou do Porto. Além disto, a natureza por desbravar era uma tábua rasa. “Havia terra disponível para a construção de campos de golfe, desde o Sotavento ao Barlavento, centrando-se muito também, mais tarde, no final dos anos 60/início dos 70, na zona da Penina, Vilamoura, Vale do Lobo; e nos anos 80 na Quinta do Lago.” Este turismo só ganha escala nos anos 80 e 90, com infraestruturas associadas à restauração, hotelaria e às acessibilidades, e os campos a conquistarem uma qualidade média superior à da concorrência, afirma Franco de Sousa. “Além disso, somos uma indústria altamente profissionalizada — profissionais que olham para a gestão do golfe de uma forma muitíssimo profissional, com estratégias bem definidas, com campos de golfe que podem funcionar como core business ou como negócio complementar. E nós temos também uma gastronomia inigualável e um clima único, temperado e ideal para a prática da modalidade sobretudo nos meses de inverno, quando é impossível ser praticado em zonas como o norte da Europa — Reino Unido, Alemanha, Suécia.”
Se como indústria coesa o turismo de golfe no Algarve acontece em especial nos anos 80, no Penina há clientes habituais há mais de 30 anos que são tratados como amigos e conhecem os cantos à casa, garante Sandra Matos. Alguns, importantes na construção da imagem elitista do hotel, são estrelas das artes, de Montserat Cabelle a Jamiroquai, Dean Martin, James Morrison e David Hasselhoff, ou do desporto – não só golfistas como Neil Amstrong, o hotel é popular entre boxeurs como Henry Cooper e Martin Herdman ou condutores de Fórmula 1 como Lewis Hamilton e Nigel Mansell.
Deixem o Beatle tocar
Só os verdadeiros fãs saberão que Carlos Mendes, que cantou “Verão” no Festival da Canção de 1968, e “Festa da Vida” no de 1972, já cantou num disco dos Beatles, precisamente entre estas duas datas. Em bom rigor não era um álbum dos Beatles — só Lennon e McCartney participam e Ringo entoa a primeira música. Mas “bitele” era o que muitos pais e avós do final da década de 1960 chamavam a Carlos Mendes e aos colegas de quarteto, os Sheikes. Assim seja: há um álbum de três Beatles, The Songs Lennon and McCartney Gave Away, em que um deles — o português –, canta “Penina”, a música composta num momento de euforia por McCartney enquanto passava férias no hotel algarvio, em 1968.
A história tem contornos de mito urbano ou de enredo bíblico que, não tendo as 30 moedas de prata, envolve cinco libras. Paul MacCartney passava férias no Penina com Linda, a namorada com quem viria a casar, e por volta da uma da manhã pararam no hotel. A ideia era trocar cinco libras por escudos para seguirem com a noite no Sobe e Desce, a discoteca do Carvoeiro, mas a banda que tocava à noite no hotel, os Jotta Herre, reconheceram-no. Ficou a tocar com eles até às quatro.
Nessa época nenhum membro dos Beatles compunha para outros artistas. Escreviam canções que não resultava, mas não as davam a ninguém — as que estão neste álbum foram oferecidas excecionalmente a artistas amigos. A força das horas tardias e de umas quantas bebidas — quem sabe, o medronho do Algarve — puseram McCartney a improvisar a composição de uma música que não seria para o grupo de Liverpool, mas antes para oferecer aos Jotta Herre, dedicada ao hotel. Não parece um tema da lavra do letrista de “Yesterday”, mas funciona bem como descrição de uma noite no Penina de 1968: “Drinking liquids, drinking music/ the time has come, fill my heart” (bebendo líquidos, bebendo música/ o momento chegou, preencham-me o coração). O exercício descritivo continua: “The time has come, time has gone/ time to bed, forgive me, friends (…) Penina, Penina,/ Penina, one night” (O momento chegou, o momento já acabou/ hora da cama, desculpem-me, amigos (…) Penina, Penina, Penina, uma noite).
Os Jotta Herre souberam agarrar a oportunidade e não se perdeu a noite em que McCartney tocou bateria no Algarve: gravaram a música no ano seguinte e pouco tempo depois, foi a vez de Carlos Mendes. No Penina, perto do piano, estão expostos os discos originais. É perguntar o que são e porque estão ali, como quem não sabe de nada, e pode ser que alguém tenha ainda memórias dessa noite, com mais cinco libras, ou menos cinco libras.