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O dinheiro “muito circulou”. Disso o tribunal está certo. Está certo de que havia um “circuito financeiro” que permitiu que Armando Vara reunisse cerca de dois milhões de euros numa conta bancária aberta na Suíça em nome de uma sociedade offshore Vama Holdings. E está também certo de que, através desse circuito, Vara fez chegar a Portugal 535 mil euros, branqueados através de negócios imobiliários, após passarem por três sociedades — uma parte, cerca de 390 mil, através da compra, em 2009, do apartamento da filha, Bárbara Vara, localizado em Lisboa. “O dinheiro muito circulou, mas acabou por alcançar o seu destino final para ser utilizado pelo arguido, a mesma pessoa responsável pela sua introdução, a montante, na sociedade Vama Holdings”, considerou o tribunal.
As testemunhas ouvidas, em apenas três sessões de julgamento, levaram o tribunal a concluir que este circuito permitiu, através de “movimentos sucessivos”, “passar o dinheiro desde a sua introdução, em numerário, até à sua saída — no caso, na compra de uma propriedade”, entenderam os juízes. Isto, porque Vara entregou mais de 1,6 milhões em notas ao gestor de fortunas suíço Michel Canals, que depois dava início ao branqueamento e fazia com que esse dinheiro aparecesse em contas na Suíça. A documentação recolhida, além de comprovar que este circuito existia mesmo, permitiu fazer uma “comparação de valores movimentados”, saber as “datas desses movimentos” e relacioná-los, “demonstrando o percurso determinado para fazer chegar o dinheiro de A a B“.
Certo disto, o tribunal tinha uma pergunta por responder: “Qual o interesse neste percurso?”. Por que razão Armando Vara fez “circular o seu dinheiro por contas, num banco suíço, tituladas por entidades offshore” para depois “fazer chegar o dinheiro a Portugal” e ser “aplicado sob a capa de sociedades geridas por manifestos testas-de-ferro”?
Operação Marquês. Como Armando Vara mandou 1,6 milhões de euros em dinheiro vivo para a Suíça
Só o antigo ministro socialista poderia dar essa resposta, numa eventual confissão, que não existiu: o arguido ficou calado ao longo do julgamento — só esteve, aliás, presente na primeira de três sessões já que se encontra preso a cumprir cinco anos de prisão no âmbito do processo Face Oculta e cada ida a tribunal iria implicar 14 dias em isolamento na sua cela. No entanto, “por muito incomum que seja esta situação para a maioria dos cidadãos”, para o tribunal “não é difícil” perceber qual seria a motivação do arguido.
A resposta a esta pergunta foi até considerada pelos juízes como “óbvia”: a motivação do antigo ministro era “ocultar a origem do dinheiro“, de forma a dificultar, numa eventual investigação criminal e fiscal”, o “exame conhecido como o follow the money“. Que é como quem diz: seguir o rasto ao dinheiro. Os juízes não têm dúvidas de que Vara não faria circular o seu dinheiro desta forma se não tivesse “o intuito de ocultar o capital e o seu curso”.
Até porque todas estas operações que permitiam que o dinheiro circulasse envolviam “custos que não são de desprezar” e que revelam “uma ação deliberada, consciente e ponderada” de Vara. “Ou seja, quem opta por suportar tais custos e justificar estes trabalhos, pretende esconder o dinheiro e a sua origem. Como tal, aqui sim, de acordo com as regras da experiência comum, algo terá que estar errado nesse dinheiro“, considerou o tribunal.
E, por isso, o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa condenou esta terça-feira Armando Vara a dois anos de prisão efetiva por um crime de branqueamento de capitais, “com referência ao crime de fraude fiscal”. Esta condenação é a primeira a resultar da separação de processos da Operação Marquês, decretada pelo juiz de instrução Ivo Rosa: Vara foi assim o primeiro arguido da Operação Marquês a começar a ser julgado e é agora o primeiro a ser condenado.
Tribunal não conseguiu concluir que dinheiro escondido teve origem ilegal, mas não poupou nas críticas a Vara
Se algo estava “errado” no dinheiro escondido, o que era? Qual era, afinal, a origem do dinheiro que levou Vara a querer ocultá-lo? Para o tribunal, “nada permite concluir que aquelas verbas, na sua origem, estão feridas de ilegalidade” — isto é, que são “produto de um crime”, como “tráfico de droga, corrução ou burla”.
Ainda assim, mesmo na hipótese de a origem deste dinheiro ser legítima, não deixaria de haver um problema: Vara tinha residência fiscal em Portugal e a “obrigação fiscal é uma certeza da qual todo o cidadão tem conhecimento”. Assim, os juízes explicaram que a ocultação asseguraria “que o dinheiro não era detetado pela Autoridade Tributária” e “que [Vara] não era obrigado a pagar os respetivos impostos sobre o rendimento”.
Os juízes não têm dúvidas de que Vara “sabia que estava a movimentar dinheiro ocultado da Autoridade Tributária, pretendendo dissipar as vantagens obtidas com tal conduta”.
Operação Marquês. Armando Vara condenado a dois anos de prisão por branqueamento de capitais
Como a pena aplicada a Armando Vara é inferior a cinco anos, o Tribunal podia ter optado por suspendê-la. Mas não o fez: são dois anos que o antigo ministro terá de cumprir na prisão — uma decisão que poderá, no entanto, ser alterada por tribunais superiores na sequência de eventuais recursos.
Os juízes argumentaram que “Vara exerceu das mais altas funções públicas e políticas”, “contribuiu para a condução dos destinos do país” e “esteve na linha da frente de duas relevantes instituições bancárias”. E, por isso, “era seu dever moral agir de forma diferente daquela como o fez”.
Lembrando que Vara “tinha rendimentos declarados acima da média, ganhando num ano apenas quantias que o comum dos cidadãos só alcançaria trabalhando mais de uma década”, os juízes entenderam que as “necessidades de prevenção” são “elevadas” e que Vara deve interiorizar “a censura da sua conduta” — “algo que ainda não demonstrou perante o tribunal”. “A comunidade tem que compreender a severidade da reação penal e que a mesma atinge todos e não há regimes de exceção”, lê-se no acórdão.
Defesa de Vara está a ponderar recurso: “Crime de branqueamento? Por amor de Deus!”
À saída do tribunal, o advogado de Armando Vara definiu como “injusta” a decisão do tribunal e adiantou que está a ponderar um recurso. “O recurso tem de ser uma decisão a ponderar. Há outros fatores também em jogo: terei de conferenciar com o meu constituinte. Do meu ponto de vista, há fundamento para recurso”, disse aos jornalistas.
Tiago Rodrigues Bastos defendeu que “o direito não permite esta condenação”, uma vez que, entende, “o crime de branqueamento não é um crime de ocultação de dinheiro”, mas sim “um crime que pune a ocultação de vantagens de um crime”. “É isso que estamos a tratar e é isso que eu acho que o tribunal não aplicou”, disse, acrescentando: “Não há o crime de branqueamento pelo qual foi condenado. Se tivesse sido condenado por fraude fiscal, com toda a honestidade, compreenderia. Crime de branqueamento? Por amor de Deus! O que se branqueia é vantagens de um crime. O tribunal foi claro a dizer que não haveria ilicitude nos montantes que o doutor Armando Vara dispunha no estrangeiro”.
No entanto, o entendimento do tribunal é diferente. Os juízes entenderam que a imputação do crime de branqueamento de capitais a Vara assenta no pressuposto de que “o dinheiro em causa, circulado pelas contas e aplicado em imobiliário, estava a ser ocultado” com o objetivo de “permitir a evasão fiscal”. Assim, apesar de o crime de fraude fiscal ter sido considerado prescrito pelo juiz Ivo Rosa, este tribunal considerou que está “demonstrada a prática do imputado crime de branqueamento, com referência à fraude fiscal, enquanto crime precedente”.
A cumprir cinco anos de prisão no processo Face Oculta, ex-ministro não foi a tribunal
Armando Vara está desde 16 de janeiro de 2019 a cumprir uma pena de prisão no âmbito do processo Face Oculta e, por isso, não esteve presente na leitura do acórdão — para evitar ter de ficar em isolamento durante 14 dias. Nesse processo, os juízes deram como provado que o antigo ministro recebeu 25 mil euros do sucateiro Manuel Godinho, como contrapartida por beneficiar as suas empresas. A condenação viria a ser confirmada pelo Tribunal da Relação do Porto — o Supremo não aceitou o recurso e o Constitucional decidiu “não conhecer do objeto” do recurso interposto.
Em março de 2019, o Tribunal de Aveiro aceitou descontar os três meses e sete dias na pena, correspondente ao período em que esteve sujeito a prisão domiciliária, no âmbito da Operação Marquês. Assim, os cinco anos anos a que foi condenado, por três crimes de tráfico de influências, passaram a quatro anos e nove meses. Isto significa que a pena de prisão a que foi condenado pelo processo Face Oculta termina a 9 de outubro de 2023. No entanto, o ex-administrador da CGD poderia ser colocado em liberdade condicional quando completar os dois terços da pena, em 9 de fevereiro de 2022. Só que esta condenação faz com que esse cenário se torne mais difícil.