Chegou à hora marcada, mas teve que esperar mais de meia hora para entrar na sala do quinto piso do edifício A do Campus da Justiça, em Lisboa, para testemunhar. O inspetor tributário Paulo Silva, que tem sido o braço direito do Ministério Público desde 2005 para investigar processos como o Monte Branco e a Operação Marquês, sentou-se em frente ao coletivo de juízes e começou a debitar datas e movimentos bancários das contas de Armando Vara, na Suíça, quase de memória. Esta manhã de quarta-feira foi ele a testemunha do caso nascido da Operação Marquês e que tem como único arguido o ex-ministro socialista e antigo líder da Caixa Geral de Depósitos. Em julho, Paulo Silva regressa a tribunal, perante o mesmo coletivo de juízes, para dar explicações idênticas relativamente a Ricardo Salgado, também a ser julgado num processo autónomo.

Segundo o Ministério Público, Armando Vara abriu uma conta na Suíça em nome da sociedade offshore Vama, onde terá depositado mais de dois milhões de euros que não terão sido declarados ao Fisco. E uma parte desse dinheiro, mais concretamente 1,613.661 milhões de euros, foi entregue em notas em Portugal.

“Mas como é que o dinheiro chegava à Suíça. Não podia ser numa mala e atravessar os países todos até lá”, começou por interrogar-se Paulo Silva, para depois responder. O juiz Rui Coelho teve o cuidado de perguntar como podia ele saber essa resposta. E o inspetor explicou que o percebeu através das notas registadas pelo próprio gestor de contas de clientes portugueses da UBS, Michel Canals — que foram enviadas pela UBS por carta rogatória.

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Feitas as contas, o gestor encontrou-se com Vara pelo menos 11 vezes para este lhe entregar dinheiro. A primeira foi no Hotel Campo Grande, em Lisboa, em dezembro de 2005, meses depois de ter sido criada uma conta na Suíça em nome da offshore Vama Holdings, cujo beneficiário era a filha de Armando Vara, Bárbara, enquanto ele seria o seu procurador. No despacho de pronúncia, Ivo Rosa considerou que o ex-governante optou por colocar o nome da filha naquela conta porque ela vivia no estrangeiro e não tinha obrigações fiscais em Portugal.

Nesse primeiro encontro, que terá ocorrido pelas 20h00, Vara terá entregado mais de 50 mil euros em dinheiro,  a que Michel Canals descontaria uma comissão de 1%, o que significava que na conta entrariam apenas 49.896,00. Agora era preciso que esse dinheiro entrasse na conta na Suíça sem ser por via de contas bancárias em território português.

Francisco Canas tinha uma loja de câmbios na baixa de Lisboa e transferiu quatro vezes dinheiro para Vara, por intermédio de Michel Canals, o gestor da UBS

Para tal, explicou Paulo Silva, todos os funcionários da UBS obedeciam a uma regra: o dinheiro entregue não saía de Portugal e ia sendo gerido consoante os outros clientes em movimentos recíprocos. Ou seja, se algum cliente português com conta na Suíça precisasse de levantar aquele valor, eram aquelas notas que lhe seriam entregues.“Estamos a falar em numerário, mas nos serviços da UBS estamos a falar em meras transferências”, explicou.

Por isso, apesar de Vara se ter encontrado com Canals apenas 11 vezes para lhe entregar dinheiro, nos registos da conta este dinheiro entrou disperso em 20 movimentos de depósito, entre 2005 e 2008. Além desta forma de compensações entre clientes, algumas das quais por exemplo, vieram de Horta e Costa, Canals encontrou outro sistema para fazer chegar dinheiro à UBS:  Francisco Canas, que entretanto já morreu, e que era dono da “Monte Negro e Chaves”, na Rua do Ouro, em Lisboa.

O primeiro valor entregue por Vara para depositar na conta da Vama foi entregue a Canas, que deu ordem para sair da sua conta da Suíça o valor correspondente. “Francisco Canas recebia cá o dinheiro. As duas últimas transferências de 2006 já faz a partir do BPN IFI, em Cabo Verde, porque teve problemas na Suíça e fecharam-lhe a conta na UBS” explicou Paulo Silva. No total, Canas fez quatro transferências para Vara.

Além do dinheiro vivo que acabou por chegar à conta da Vama, entrou também um milhão de euros vindo de uma conta de Joaquim Barroca, administrador do Grupo Lena, que por seu turno teriam resultado de dois milhões transferidos pelo cidadão holandês Van Doreen. Na acusação do Marquês, o MP diz que esse dinheiro são luvas pagas a Vara, a troco de um crédito para um financiamento em Vale do Lobo. Mas o coletivo de juízes fez questão de sublinhar nesta sessão que não é isso que está ser julgado neste processo, mas apenas o crime de branqueamento de capitais.

O silêncio de Vara, o dinheiro contaminado e o pedido para não deixar “descair a máscara”. O primeiro dia do julgamento da Operação Marquês

Vama encerra conta e abrem-se outras

O inspetor Paulo Silva não conseguiu perceber as razões, mas disse que de repente a conta da Vama encerrou no último trimestre de 2008 e que os seus valores foram transferidos para uma outra conta em nome da Walker Holdings. “Esta era na Seycheles e não no Panamá, era a única diferença”, diz. O dinheiro foi depois passando por outras offshores como a Orsatti Corp., Zelo Holdings e Desrel Holdings. E uma parte do dinheiro chegou a Portugal para financiar a aquisição de um apartamento em Lisboa, levando agora Vara a responder pelo crime de branqueamento.

É normal o dinheiro circular assim entre contas offshores, perguntou o juiz Rui Coelho

Foi extremamente elaborado, não é tradicional passar assim tanto, respondeu Paulo Silva

À tarde foi a vez da inspetora tributária, Vanda Godinho, explicar como é que o dinheiro chegou a Portugal para pagar o apartamento. Segundo ela, foi criada uma empresa, a Desrel, no Reino Unido que teria uma conta no Barclays e onde chegaram vários milhares de euros com origem na Vama. Esta empresa tornou-se sócia de uma empresa criada em Portugal, a Citywide, com sede no escritório de advogados Ana Bruno e Associados.

A Desrel começou por transferir 25 mil euros para o capital da empresa, em 2008, e depois transferiu mais três verbas em 2009 a título de empréstimos de suprimentos, como atestam os extratos bancários que perfizeram os 585 mil euros, o valor que pagou um imóvel na Infante Santo, em Lisboa.

Como Vara salvou a filha confessando entregas em numerário de quase 1 milhão de euros a uma rede de branqueamento de capitais

Esta segunda sessão de julgamento decorreu sem o arguido, Armando Vara, que está a cumprir pena de prisão em Évora pelo caso Face Oculta, por tráfico de influência, e que beneficiou de uma saída de três dias para estar presencialmente no Campus de Justiça, em Lisboa, na primeira sessão.

O ex-líder da Caixa Geral de Depósitos tinha sido acusado de cinco crimes, entre corrupção, branqueamento e fraude fiscal qualificada pelo Ministério Público, mas já na instrução o juiz Ivo Rosa, decidiu levá-lo a julgamento apenas por um crime de branqueamento de capitais.

Na próxima sessão, que poderá ser já a última, serão ouvidas as testemunhas de defesa: Edite Estrela, ex-presidente da Câmara de Sintra e grande amiga de José Sócrates, Mota Andrade, ex-deputado e ex-presidente da distrital do PS em Bragança e Carlos Santos Ferreira, ex-líder da Caixa Geral de Depósitos e do Banco Comercial Português que levou Vara para as administrações daqueles dois bancos.

As alegações finais poderão vir a acontecer na parte da tarde.