O Ministério Público (MP) quer que Ricardo Salgado e os restantes arguidos singulares acusados no processo Universo Espírito percam os bens e valores que lhes foram arrestados preventivamente ou apreendidos — avaliados em várias centenas de milhões de euros — e que ainda paguem uma indemnização ao Estado que alcance o total da vantagem obtida pela alegada prática dos crimes de burla qualificada, corrupção no setor privado, infidelidade, branqueamento de capitais e manipulação de mercado e que foi contabilizada pela equipa do procurador José Ranito: 11,8 mil milhões de euros.
Quer o valor total máximo dos bens arrestados preventivos e apreendidos, quer o valor que os arguidos se arriscam a ter de pagar ao Estado, podem vir a financiar os pedidos de indemnização dos lesados do BES. Além dos cerca de 300 queixosos que apresentaram as respetivas queixas criminais por burla qualificada contra Ricardo Salgado e outros administradores e funcionários do banco, todos os lesados que tenham informado os autos do Universo Espírito Santo de que foram prejudicados (mesmo que não tenham apresentado queixa) poderão apresentar pedidos formais de indemnização. Ao que o Observador apurou, os autos do Universo Espírito Santo poderão receber cerca de mil pedidos de indemnização cível.
Essa porta é claramente aberta no despacho de encerramento de inquérito pela equipa liderada pelo procurador José Ranito. No final do despacho de acusação, o MP solicita formalmente ao eventual tribunal de julgamento — o caso só chegará a julgamento se o juiz de instrução a quem o processo for entregue na próxima fase pronunciar os arguidos ou se estes não contestarem a acusação — que decrete a perda das vantagens económicas obtidas pelos arguidos, os bens arrestados e apreendidos a favor do Estado, “sem prejuízo dos direitos de lesados.”
Queixosos vão avançar com pedidos de indemnização
Ao que o Observador apurou junto de vários advogados dos queixosos — muitos deles assistentes no processo Universo Espírito Santo —, o próximo passo passa por apresentar um pedido de indemnização cível no âmbito do processo criminal. O princípio de adesão permite que as responsabilidades contratuais sejam julgadas num processo penal se os alegados crimes praticados (burla qualificada, nomeadamente) tiverem uma relação direta com aquelas responsabilidades.
Assim, cada um dos cerca de 300 queixosos deverá avançar com um pedido individual de responsabilização de Ricardo Salgado e dos arguidos envolvidos nos alegados crimes de burla qualificada dos clientes do BES e do GES, aproveitando assim a porta aberta pelos sete procuradores do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP). Para tal, basta aderirem à acusação do MP e apresentarem um pedido formal de indemnização.
Mais: cerca de 600 outros clientes do BES poderão seguir o mesmo caminho. Apesar de não terem apresentado queixa formal, são cidadãos que fizeram chegar aos autos do Universo Espírito Santo informação que comprovará o prejuízo patrimonial causado pelos crimes de burla qualificada imputados a Ricardo Salgado e aos restantes arguidos. Por isso mesmo, o MP entende que podem deduzir pedido de indemnização cível.
Tal pedido tem duas caraterísticas: terá de ser pedido dentro do prazo imposto pela lei a partir da data da acusação e o pedido de indemnização só será decidido no final de um eventual julgamento por um tribunal coletivo.
Os queixosos que são assistentes no processo Universo Espírito Santo podem ainda solicitar ao juiz de instrução que alargue a acusação a outros gestores do BES. Ou até aos comerciais do BES que venderam produtos de dívida do GES.
A equipa do procurador José Ranito optou por concentrar a acusação apenas em Ricardo Salgado e nos administradores José Manuel Espírito Santo e Manuel Fernando Espírito Santo, sendo que os altos funcionários do BES acusados são essencialmente responsáveis do Departamento Financeiro, Mercados e Estudos — responsável pelo alegado esquema de financiamento fraudulento das holdings do GES.
Por exemplo, os gestores de conta do BES contra os quais foram apresentadas queixas criminais por alegada burla qualificada viram o MP arquivar as suspeitas. A equipa do procurador José Ranito entendeu que esses funcionários limitaram-se a obedecer a ordens superiores, executando um alegado esquema de burla qualificada delineado pela alegada associação criminosa liderada por Ricardo Salgado.
A acusação. Anatomia de uma associação criminosa que destruiu o Grupo Espírito Santo
Médicos, trabalhadores da construção civil, reformados. Todos aplicaram dinheiro no BES e perderam tudo
Entre as centenas de lesados do BES há três tipos de queixas:
- Há clientes que alegam que os gestores investiram o seu dinheiro em produtos contrariamente às indicações que tinham dado para depósitos a prazo ou em produtos de dívida com risco reduzido;
- Há também quem alegue que as subscrições de produtos GES que se encontravam nas suas carteiras foram realizadas pelos gestores à sua revelia;
- Ou há mesmo quem diga que entre maio e junho de 2014 ainda tentou o reembolso dos produtos, mas que nada foi feito.
Sejam quais foram as queixas, por detrás dos números de lesados há nomes de pessoas e histórias de poupanças de uma vida que foram perdidas. Centenas destes nomes vêm referidos nas mais de 4 mil páginas da acusação formal do MP contra Ricardo Salgado e mais 17 pessoas singulares pelos crimes de corrupção ativa e passiva no setor privado, de falsificação de documentos, de infidelidade, de manipulação de mercado, de branqueamento e de burla qualificada contra direitos patrimoniais de pessoas singulares e coletivas no processo conhecido pelo Universo BES que começou a ser investigado há já seis anos.
O MP lembra, por exemplo, as várias emissões de Papel Comercial Doméstico da ESI. A 23.ª emissão, por exemplo, foi vendida nos balcões do então BES entre 14 e 16 de outubro de 2013, atingindo a sua maturidade um ano depois. Esta emissão não foi, no entanto, reembolsada e gerou um prejuízo de 16,35 milhões de euros nos seus tomadores, clientes do BES.
Maria de Fátima D. e o marido, João Manuel D. um construtor civil que era à data visto pelo banco como um cliente “moderado” foram dois dos lesados. Com conta aberta em Almada decidiram subscrever esta emissão com 1,1 milhões de euros depois de terem sido contactados telefonicamente pelo gestor de conta. O gestor aconselhou o casal a resgatar a aplicação que tinha no Fundo ES Liquidez no valor de um milhão de euros e a aplicá-la naquele produto.
Já Carlos R., gerente de seguros, com o 9.º ano de escolaridade e sem qualquer perfil de investidor atribuído, optou por investir 100 mil euros neste produto, também resgatando o valor que tinha do Fundo ES Liquidez, a conselho do gerente da conta que lhe ligou. O episódio repetiu-se por todo o país.
Em Lisboa, por exemplo, uma empresa que prestava à data serviços médicos, liderada por um médico, investiu 100 mil euros no produto. Já Horácio B., um reformado de 81 anos, aplicou também o mesmo valor.
O casal A., ele comerciante de madeiras, era visto pelo banco como um cliente “conservador” no que toca a investimentos. Com conta em Vila Nova de Mil Fontes foram, ainda assim, contactados para aderir a este produto. Também eles investiram 100 mil euros, dos quais não viram qualquer reembolso.
Maria L., uma médica especialista em clínica geral e medicina familiar entretanto reformada conheceu o produto na agência do Private Banking de Évora, depois de receber um telefonema para se deslocar ali. Acabou por subscrever a emissão, no montante de 450.000 euros.
A 30.ª emissão de Papel Comercial Doméstico ESI, comercializada aos balcões do BES entre 21 e 23 de outubro de 2013, com data de emissão em 28 de outubro de 2013 e maturidade em 27 de outubro de 2014, não foi diferente: gerando um prejuízo de 25,35 milhões de euros nos seus tomadores, clientes do BES, identificados no quadro seguinte. No despacho de acusação são descritas várias emissões de papel comercial cujo investimento terá sido depositado em contas no estrangeiro e depois pago em forma de prémio aos agora arguidos no processo.
Ricardo Salgado terá atribuído prémios de 12,8 milhões a si próprio enquanto o BES se afundava
As histórias repetem-se noutros produtos disponibilizados pelo BES. Uma série destinada a residentes no estrangeiro, emitida em finais de setembro de 2012 e a vencer dois anos depois, foi subscrita por 417 investidores num total de 25.069,400 euros. O montante mínimo de subscrição desta série era de 10 mil euros. José N., emigrado na Suíça, um fiel de armazém e vendedor de peixe que ficou com o 6.º ano de escolaridade, tinha conta no BES de Oliveira de Azeméis quando a gestora lhe ligou a propor o produto. Subscreveu 35.000,00 euros.
Também Manuel A., um trabalhador da construção civil emigrado na Suíça, aplicou neste produto 50 mil euros. Neste caso Manuel chegou mesmo a telefonar à sua gerente, já em 2014, para se certificar que o valor que aplicara a 24 meses com taxa “anual líquida de 3,5%”, se era “fundo garantido”. À data já se começavam a ouvir as histórias do BES. “Tem a garantia do banco, sim senhora”, respondeu-lhe a gerente. Afinal não tinha.