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Mais do que um perfume centenário, o Chanel Nº5 esconde um enredo digno de filme ou, ajustando a expectativa aos tempos que correm, de uma minissérie histórica produzida por uma popular plataforma de streaming. A começar pela própria fórmula, momento eureka de Gabrielle e do perfumista Ernest Beaux (ou então feliz percalço de um assistente laboratorial), proporcionado por uma ligação romântica entre a mademoiselle e um Romanov.
O frasco, bem como o seu conteúdo, revolucionaram a perfumaria e ergueram uma ponte entre as casas de alta-costura e um segmento de mercado mais acessível e comercial. Mas antes de qualquer anúncio megalómano ou produção milionária, foram as palavras de Marilyn Monroe, nos anos 50, a contribuir para que a obra-prima se espalhasse pelos quatros cantos do mundo. A verdade é que a atriz dispensava pijamas e camisas de noite, mas não algumas gotas do seu perfume favorito.
Mas recordar a história do Chanel Nº5 é também pôr a descoberto a face mais ardilosa da sua criadora. Na tentativa de ter o controlo total de uma sociedade entretanto criada para albergar os lançamentos de perfumaria da maison parisiense, Coco Chanel quis tirar partido das expropriações antissemitas durante a ocupação nazi. O plano saiu furado, mas não desistiu enquanto não assumiu o controlo da sua criação.
Gabrielle quis criar “um perfume de mulher, com aroma de mulher” e acabou por fazer nascer um ícone do século XX. Não foi por acaso que Andy Warhol se apropriou da silhueta em meados da década de 80, por altura das suas “Ads Series”. Foi o primeiro grande símbolo do luxo europeu a disseminar-se na cultura americana, basta recordar as dezenas de soldados que fizeram fila à porta da boutique, em Paris, para levarem um frasco no regresso a casa. Em 100 anos de história, o perfume permaneceu praticamente intocado, como se o tempo não tivesse passado por ele. Sobreviveu aos que o viram nascer e a várias das estrelas que seduziu ao longo das décadas. É uma referência é universal. Afinal, quem é que nunca ouviu falar do Chanel Nº5.
Flores, erros laboratoriais e um Romanov: a fórmula do Chanel Nº5
Coco Chanel tinha começado a vender as suas criações de moda há cerca de uma década quando se aventurou no mundo da perfumaria. O negócio do vestuário e dos acessórios prosperara durante a Primeira Guerra Mundial, não em Paris, mas em Deauville e mais tarde em Biarritz. Com os frenéticos anos 20 à porta, Chanel recompunha-se do mais rude dos golpes: a morte de Boy Capel, amante e principal investidor. Mas os romances permanecem até hoje como um dos capítulos mais profícuos da vida da couturière e, em 1920, o seu destino cruzou-se com o do grão-duque Dmitri Pavlovich, primo de Nicolau II, o último czar, mas também do príncipe Philip, atual marido da rainha de Inglaterra.
O desejo de criar uma fragrância que rompesse com os pressupostos da época — damas de bem usavam essências florais delicadas e sem grande formulação, enquanto notas mais marcadas como o jasmim ou o almíscar eram associadas a mulheres de moral questionável — levou o nobre a apresentar-lhe Ernest Beaux, outrora químico e perfumista da A. Rallet & Co, a casa responsável por criar perfumes para a família imperial russa.
Além dos bouquets florais que dominavam as criações para os Romanov, o mestre ansiava por juntar a uma nova fórmula a inspiração da paisagem gelada do Ártico, onde passara dois anos ao serviço do Exército Branco. Entre o verão e o outono de 1920, Beaux formulou um perfume para responder ao desafio lançado por Chanel. A rosa e o jasmim compuseram a base, embora tenha sido a utilização de aldeídos, compostos orgânicos manipulados em laboratório para realçar determinados aromas, a garantir a singularidade do resultado final.
“Quis fazer um perfume artificial. Isso mesmo, artificial como um vestido. No sentido de algo fabricado. Sou designer de alta-costura, quero um perfume que seja uma composição”, chegou a afirmar a própria Gabrielle. Outros ingredientes foram adicionados à receita, nomeadamente o vetiver haitiano, ylang-ylang, madeira de sândalo, néroli e fava-tonca do Brasil. Em simultâneo, o mestre perfumista aumentou a quantidade de elementos clássicos da perfumaria como a raiz de lírio florentino e os almíscares naturais.
O resultado final foi apresentado a Coco Chanel em dez frascos — cada um deles com uma variação da fórmula — numerados de um a cinco e de 20 a 24. Ela escolheu o número cinco. O rumor nunca foi confirmado, mas terá sido um erro laboratorial, cometido por um assistente de Ernest Beaux, a conquistar o olfato de Chanel, logo à primeira. Como? A fórmula reunia níveis de concentração de aldeídos nunca antes vistos em perfumaria. “O interessante nos aldeídos é o facto de um deles cheirar a sabão. Por isso é que a mente dela equilibrou tudo tão bem: a infância no convento e a vida de luxo como amante”, explicou Tilar J. Mazzeo, autora do livro The Secret of Chanel No. 5, citada pela BBC.
Um sucesso imediato
Perfumista e amigos foram convidados para um jantar de celebração em Grasse, na Riviera Francesa, e Coco decidiu pulverizar o perfume à volta da mesa. À passagem pelo local, várias mulheres interpelaram o grupo sobre a fragrância que estava no ar. “Para Chanel, o momento confirmou que aquele seria um perfume revolucionário. Foi a primeira vez que pessoas cheiraram Chanel Nº5 em público e isso fê-las parar, literalmente. Aquele momento em que cheiraram algo que nunca tinham cheirado antes marcou na história da perfumaria”, afirmou a mesma autora.
Mas a disrupção foi além da fragrância. O frasco, que algumas teorias associam à garrafa de whiskey usada por Capel, era o oposto de tudo o que era feito na época — objetos luxuosos e profusos, pensados para ostentar. Em vez disso, Chanel desenhou um frasco retangular num vidro totalmente transparente, como se de um recipiente de laboratório se tratasse, onde apenas a tampa surge esculpida à imagem da Place Vendôme.
Paris só viria a conhecer o distinto aroma meses depois, no dia 5 de maio de 1921 (mais uma prova de que cinco era, de facto, o número da sorte de Gabrielle Chanel). Para o lançamento oficial, perfumou os provadores da loja da Rue Cambon e, no final, distribuiu alguns frascos por amigos da alta sociedade. O perfume foi um sucesso imediato, mesmo sem grande publicidade. Esta surgiria anos mais tarde e com a própria criadora a associar o seu rosto ao produto. Em 1937, Coco deixou-se fotografar no Ritz de Paris para as páginas da Harper’s Bazaar naquela que foi a primeira campanha do Chanel Nº5.
Um perfume em tempos de guerra
Três anos após o lançamento, Chanel autonomiza a perfumaria das suas criações de moda através de uma sociedade com os irmãos Wertheimer, à data proprietários da Bourjois, e Théophile Bader, fundador das Galerias Lafayette. A couturière entregou produção, marketing e distribuições nas mãos de três homens de negócios, cedeu o seu nome e retirou-se de todas as operações, ficando apenas com uma fatia de 10% na sociedade.
Mais tarde, viria a arrepender-se, chegando mesmo a descrever Pierre Wertheimer como o “bandido que a tramou”, como recordou Mazzeo no livro publicado em 2010. Em 1940, Coco viu na ocupação nazi a tão desejada oportunidade para assumir o controlo da Les Parfums Chanel. Pierre e Paul Wertheimer eram judeus e com a política de expropriações antissemitas em vigor também em França, tentou que a participação dos dois irmãos (70%) passasse para o seu nome.
Extraordinária mademoiselle ou mulher perversa? A vida de Coco Chanel, 50 anos depois da sua morte
“O meu direito de preferência é indiscutível”, escreveu às autoridades alemãs. Os lucros que recebo sobre as minhas criações desde que este negócio existe não é proporcional […] podem ajudar-me a reparar, em parte, o preconceito que tenho vindo a sofrer durante estes 17 anos”, alegou ainda na época. O que escapara a Chanel é que os seus sócios judeus se tinham antecipado e passado a sua parte na empresa para o nome de um amigo, o empresário e industrial cristão Felix Amiot, que lhes devolveu a empresa no final do conflito.
A guerra pelo perfume
Gabrielle não se conformou, até porque pela altura em que acaba a Segunda Guerra Mundial o Chanel Nº5 rendia nove milhões de dólares por ano. As vendas tinham crescido de forma impressionante durante o conflito, sobretudo nos Estados Unidos, onde a empresa os distribuía pelas luxuosas department stores, mas também onde a nova estratégia comercial tinha aproximado o produto da classe média, sobretudo depois do lançamento do “frasco de bolso”, mais barato.
O pós-guerra foi um período especialmente conturbado para a designer, que foi detida pela resistência, sob suspeitas de ter colaborado com as forças nazis durante a ocupação, mas libertada no dia seguinte, alegadamente por influência de Winston Churchill, amigo chegado que conheceu através de um dos seus mais célebres amantes, o duque de Westminster. Na tentativa de atenuar as suspeitas, chegou a distribuir gratuitamente frascos de Chanel Nº5 a soldados americanos, na boutique da Rue Cambon.
Mas a jogada não a poupou do exílio. Mas mesmo na Suíça, onde esteve quase 15 anos, não descansou até conseguir o controlo da Les Parfums Chanel, chegando mesmo a ameaçar criar novas fragrâncias, entre elas umas chamada Mademoiselle Chanel Nº5. Chegou também a processar a companhia, acusando-a de estar a comercializar um produto inferior à fórmula original e pedindo que os direitos sobre o nome voltassem para ela. O resultado foi um acordo proposto pelos milionários: Coco passaria a receber 2% das vendas globais do perfume, em vez de 10% das vendas em França, e poderia voltar a criar as suas próprias fragrâncias, embora sem usar o número cinco. Ela aceitou-o, mas nunca chegou a criar novos perfumes.
Chanel regressou a Paris em 1953 para reabrir a maison. No ano seguinte, realizou o seu primeiro desfile, mas a coleção foi descrita pela imprensa como um fiasco. É então que volta a sentar-se à mesa com Pierre Wertheimer, que via as vendas do perfume a decrescer. Este propôs o derradeiro acordo a uma mademoiselle já nos 70: a família compraria o edifício sede, na Rue Cambon e pagaria todas as despesas e impostos pessoais de Gabrielle até ao fim da sua vida, em troca de controlo total do nome Chanel, quer na perfumaria, quer na moda. Sem herdeiros, a couturière assinou o contrato.
Poucos anos mais tarde, depois de comprarem a participação de 20% da família Bader, os Wertheimer tornaram-se nos únicos detentores do império Chanel. Jacques, herdeiro de Pierre não era o mais hábil dos empresários. Em 1974, três anos após a morte de Gabrielle, a marca resumia-se ao perfume e à loja original, em Paris. Com apenas 25 anos, foi Alain Wertheimer, filho de Jacques, que pediu para assumir o controlo da empresa. Foi ele o responsável pelo reposicionamento do famoso perfume no mercado, pelo lançamento da primeira linha de cosmética e pela primeira coleção de pronto-a-vestir produzida em massa, em 1978. Em 1983, contrataria Karl Lagerfeld.
Monroe, Deneuve e o anúncio de televisão mais caro de sempre
A 7 de abril de 1952, Marilyn Monroe aparece pela primeira vez na capa da revista Life. Não é por acaso que a atriz será eternamente associada ao perfume. Na entrevista, questionada sobre o que usa para dormir, Monroe limitou-se a responder: “Chanel Nº5”. No ano seguinte, uma nova sessão fotográfica, desta vez para a Modern Screen, mostra a atriz nua na cama e com um frasco do perfume francês na mesa-de-cabeceira.
Em 1960, durante uma viagem a Paris, Monroe é entrevistada para a edição francesa da Marie Claire. As palavras sobre o exótico hábito noturno não chegaram a ser publicadas na época, mas em 2012, a própria Chanel recuperou o áudio da conversa e usou-o num anúncio televisivo que foi para o ar meses depois, 51 anos após a morte da atriz. “Perguntam-me: ‘O que usa para dormir? Uma camisa de pijama. Uma parte de baixo? Uma camisa de noite?’. Eu respondi ‘Chanel Nº5’ porque é verdade. Além disso, não quero dizer que durmo nua. Mas é verdade”, comentou na época.
A relação entre mítico frasco e as atrizes é longa. A norte-americana Suzy Parker foi a primeira a dar a cara pelo perfume numa campanha publicitária com o slogan: “Todas as mulheres vivas adoram o Chanel Nº5”. Catherine Deneuve surge no final dos anos 60 e protagoniza um extenso rol de anúncios na televisão. Ainda na década de 70, Ridley Scott assume a realização de muitos dos vídeos publicitários do perfume.
A colaboração de uma casa de alta-costura com um mestre da cinematografia abriu caminho para outras. Em 2004, Baz Luhrmann realiza aquele que é até hoje o anúncio de televisão mais caro da história. Nicole Kidman e Rodrigo Santoro contracenaram e Lagerfeld desenhou o guarda-roupa. Tudo somando, deu qualquer coisa como 33 milhões de dólares. O realizador australiano repetiu a dose (mas não o orçamento) dez anos depois, com Gisele Bündchen no papel de musa surfista.