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No universo da moda a história de Christian Dior e do seu New Look é épica. Não conta com heróis nem efeitos especiais, mas tem princesas e fadas que fazem vestidos de encantar. Passa-se entre uma dura realidade e um mundo de fantasia, exigiu muito trabalho, mas também um pouco de magia. Certo dia em Paris, cruzaram-se numa esquina o talento e a oportunidade e, assim nasceu o fenómeno Dior. Christian Dior estava a desenhar para a casa de moda de Lucian Lelong e com o apoio do magnata dos têxteis Marcel Boussac criou a sua própria marca com uma visão para mudar a moda feminina e recuperar a exuberância e o ideal de beleza de outras épocas, mas em contraste com um país ainda a recompor-se da II grande guerra.
A história é um pouco mais elaborada e conta com mais personagens pelo meio. Mas em resumo, em 1946, Paris vivia um difícil pós-guerra, com muitas greves e pessoas sem abrigo e ainda com racionamento de comida e de roupa. Como quase tudo, a moda teve de lutar pela sobrevivência, e embora Paris fosse a sua capital, a cidade tinha necessidades mais urgentes do que novas tendências. Mas Dior achou que era a altura ideal para começar um movimento de mudança e arriscou. Hoje podemos olhar para trás e ver que embora as criações que apresentou em fevereiro de 1947 não fossem novas, foram transformadoras na época, e o estilo que apresentou viria a manter-se durante anos e a marcar a moda de toda a década seguinte.
A guerra impôs às mulheres uma espécie de uniforme, ditado pela necessidade da roupa ser prática e pela limitação de tecidos e materiais. Em 1946 as regras ainda se mantinham e Christian Dior tinha o objetivo de promover a sua mudança. Ele queria desenhar roupas para que as “mulheres parecerem flores, com ombros redondos, bustos femininos, cinturas justas e saias enormes.” Porém o seu projeto incluía criar silhuetas com base no corpo feminino, com conhecimentos de arquitetura e a recuperação de técnicas de costura antigas. Para tal precisava de uma mão de obra muito habilidosa, a quem o criador passou os seus conhecimentos. Dior acreditava que a moda na década de 1930, antes da guerra, estava demasiado ligada à arte e outro dos seus objetivos era fazer com que se voltasse a focar na sua “verdadeira função, a de vestir as mulheres e enaltecer a sua beleza”.
Com o apoio de Boussac, Dior começou então a construção de uma marca. Era preciso uma morada, um quartel-general para a verdadeira investida que Dior preparava à moda francesa. O criador conta nas suas memórias que a procura não estava a resultar em opções satisfatórias, até que alguém lhe disse que a loja de roupa no nº 30 da Avenue Montaigne estava a fechar e quando ele descobriu que estava disponível, não pensou duas vezes.Havia agora que torná-lo numa casa de moda e reunir uma equipa, processos que ficaram resolvidos em julho de 1946.
Dior tinha decidido abrir a sua maison a 15 de dezembro e apresentar a primeira coleção na primavera de 1947, por isso era preciso começar a trabalhar a todo o gás. Christian Dior conta que, quando a casa abriu, ele empregava 60 pessoas e o espaço tinha “três salas de trabalho no sótão , um estúdio minúsculo, um salão para mostrar os vestidos, uma cabine ou vestiário para as manequins, um escritório, e seis pequenas salas de provas”. Acrescenta que para seu grande alívio não tinha de se preocupar com a parte administrativa, isso cabia a Jacques Rouet. “O papel dele era proporcionar os meus castelos no ar com bases sólidas”.
“O” desfile
A 12 de fevereiro de 1947 o dia arrancou cedo no nº 30 da Avenue Montaigne, ainda antes de nascer o sol já o espaço estava mergulhado numa azáfama. Transformar uma casa num espaço de desfile não era tarefa fácil e só ficou tudo pronto quando os convidados começaram a chegar. Nos bastidores as modelos estavam preparadas com a coleção vestida. O espetáculo podia começar.
Às 10h30 arrancou o desfile. Paris estava gelada, mas dentro da maison Dior, as salas e corredores repletos de cadeiras muito encostadinhas para acomodar o público proporcionavam aconchego. Entre os convidados havia, sobretudo, imprensa (nacional e internacional) e compradores. Também lá estava Marlene Dietrich, mas na qualidade de vizinha e amiga, como Jérôme Hanover conta no livro Stars in Dior — a atriz vivia na Avenue Montaigne e, tal como Dior, era amiga íntima de Jean Cocteau.
Pelas memórias de Dior ficamos a saber que a primeira modelo a desfilar chamava-se Marie-Thérèse, mas estava tão cheia de medo que tropeçou, desatou a chorar e já não continuou. Mas, calma. Tudo se recompôs. Seguiram-se todas as outras modelos e o desfile fluiu ao som de aplausos. A plateia estava feliz com as 90 criações que Dior preparara. Nos bastidores, conta que tinha os ouvidos tapados “aterrorizado de se sentir confiante cedo demais”. Mas acrescenta que “uma série de boletins vindos do campo de batalha confirmavam que as minhas tropas — conduzidas pela minha manequim estrela , a inimitável Tania — tinham triunfado”.
Quando o desfile acabou o entusiasmo era muito, mas nos bastidores Dior e as suas fiéis ajudantes, Madame Marguerite e Madame Bricard, ficaram em silêncio até que alguém os foi buscar para irem até junto dos convidados e receberem mais um aplauso. Mr. Dior escreveu: “Viva eu quanto tempo viver, quaisquer que sejam os triunfos que eu tiver, nada alguma vez excederá os meus sentimentos daquele momento supremo”.
O “New Look” e o Bar Suit
A primeira coleção de Alta Costura de Christian Dior contava com duas silhuetas: a “Carolle”, que consistia numa saia ampla com cintura justa e tronco modelado, e a “Oito” (ou “Ampulheta”), que aposta em acentuar as formas curvilíneas do corpo feminino destacando a cintura apertada e as ancas proeminentes, criando a forma que o nome indica. A exuberância das criações trazia à memória não só os tempos e a vida social pré-guerra, como também momentos históricos passados em que a roupa gozava de tamanho impacto.
Carmel Snow, a diretora da revista Harper’s Bazaar norte americana assistiu ao desfile na primeira fila, acompanhada pelo fotógrafo Richard Avedon, e, reza a lenda, é a autora da expressão que ficou na história da moda: New Look. Segundo a própria maison Dior conta, Snow disse ao criador no final do desfile: “É uma grande revolução, querido Christian! Os seus vestidos têm tanto um New Look!”. Um correspondente da Reuters terá apontado a expressão num papel que atirou da varanda a um mensageiro que estava no passeio. “As notícias chegaram aos Estados Unidos ainda antes do resto de França, onde a imprensa tinha estado em greve durante um mês”.
O look mais famoso de toda a coleção foi o Bar suit e o segredo está no casaco, um verdadeiro exemplo de mestria de modelagem. Branco, com cintura justa, ombros redondos e anca pronunciada, fazia conjunto com uma saia de pregas preta, que também foi inovadora na época, cobria quase toda a perna e a sua amplitude (largura da bainha) era de quase 19 metros, enquanto uma bainha normal teria menos de três metros.
Um verdadeiro legado
O casaco foi de tal forma impactante que Christian Dior continuou a criar variações ao longo das suas coleções. Segundo a Vogue, o nome casaco “Bar” terá vindo do bar do Plaza Athénée, famoso hotel parisiense que também tem morada na Avenue Montaigne, e que Dior costumava frequentar. Os designers que se seguiram Dior na liderança criativa da marca, continuaram a reinventar o Bar Suit, em forma de homenagem. Mas o casaco Bar tornou-se mesmo um elemento do ADN Dior que é estudado, trabalhado e sempre presente, à maneira de cada autor.
Depois da morte de Christian Dior, em 1957, seguiu-se-lhe Yves Saint Laurent, uma jovem promessa com 21 anos, mas que apenas esteve à frente da marca durante três anos. Para o substituir foi chamado Marc Bohan, que estava na Christian Dior em Londres e manteve-se em Paris entre 1960 e 1989. Depois foi a vez de Gianfranco Ferré assumir o legado Dior, entre 1989 e 1996. Entre 1997 e 2011, o inglês excêntrico e criativo John Galliano baralhou e voltou a dar todas as cartas do arquivo Dior. O belga Raf Simons mudou a estética entre 2012 e 2016; e desde então que quem segura as rédeas do império é a italiana Maria Grazia Chiuri, a primeira mulher nesta função.
E depois? Entre o sucesso e a controvérsia
Na sua autobiografia, Christian Dior chamou à publicidade “a deusa da nossa época”. Achava que o choque do novo era a arma secreta e, por isso explica: “O relativo secretismo no qual escolhi trabalhar despertou uma positiva campanha de sussurros, o que foi excelente (gratuita) propaganda. O mexerico, os rumores maliciosos até, valem muito mais do que as mais caras campanhas publicitárias do mundo”. A verdade é que a sua primeira coleção teve reações tão boas, quanto más.
A imprensa adorou. Na Harper’s Bazaar de maio, logo a seguir ao desfile, saiu apenas uma ilustração do Bar Suit. Contudo, na edição de outubro de 1947 foram publicadas fotografias captadas especialmente por Richard Avedon de uma modelo com as roupas Dior a passear pelas ruas de Paris e na Place de Concorde. No artigo podia ler-se “Saias rodopiantes. Pregas e pregas. Modelos a rodopiarem em saias com uma amplitude com 22 metros [aproximadamente]. Dior faz uma saia com 41 metros de amplitude [aproximadamente]”, como mostra o livro “Harper’s Bazzar. 150 Years. The greatest Moments”.
Segundo o próprio fundador, como era um recém chegado tinha de trabalhar muito para se manter a par deste mundo onde escolheu entrar. E encomendas não faltavam. Os ateliers estavam até a trabalhar à noite. Dior escreveu que as clientes inglesas seguiram as americanas, que fizeram encomendas aos milhares; depois foi a vez das italianas, das belgas, das suíças e das escandinavas; também se renderam a Dior as sul americanas e as australianas. As clientes alemãs e japonesas precisaram de muitas coleções para ficarem fãs do criador e começarem a comprar. Vale a pena acrescentar que as clientes inglesas também seguiram a princesa Margarida. Porque o Reino Unido também passava dificuldades no pós-guerra, mas, quando a irmã mais nova rainha (que tinha subido ao trono também em fevereiro de 1947) se mostrou fã das criações de Dior, deu a sua aprovação e tudo mudou.
A verdade é que dez dias depois do desfile a casa já tinha atingido os objetivos financeiros para todo o ano de 1947. E a segunda coleção desse ano, a de inverno, ainda foi um sucesso maior do que a primeira, conta Farid Chenoune no livro “Dior 60th Anniversary”, explicando ainda que o New Look foi um insulto para milhões de mulheres que ainda estavam a viver em países destruídos pela guerra na Europa. O fascínio estava todo do lado das mulheres da elite rica. Importa lembrar que, na altura, ainda se vivia o rescaldo do conflito e havia racionamento de tecidos — esta nova moda que parecia estar a instalar-se trazendo consigo metros e metros de pano revelou-se um tanto controversa. O autor conta até um episódio em que durante uma produção fotográfica no bairro de Montmartre, em Paris, uma modelo que usava um vestido Dior foi atacada por donas de casa que arrancaram o vestido das suas costas.
Um herói improvável
À data do seu primeiro desfile, Christian Dior tinha 42 anos (nasceu a 21 de janeiro de 1905, em Granville) não era um jovem irreverente, mas sim um homem maduro com um percurso profissional. Foi coproprietário de uma galeria de arte, desenhou figurinos para filmes e trabalhou com designers de moda como Piguet ou Lucien Lelong, com este durante 10 anos. Pelo meio houve a II Guerra Mundial, França esteve ocupada pelo regime Nazi, a família de Dior passou por muitas dificuldades e o criador foi chamado para o serviço militar. A irmã Catherine, a inspiração para o perfume Miss Dior, chegou a ser prisioneira da Gestapo. Na ressaca da guerra, o caminho de Dior começou a desenhar-se na moda e com uma receita bem conseguida de talento e oportunidade montou a sua própria marca. O sucesso foi imediato, tornou-se um fenómeno e enquanto pode o criador fê-la crescer. Contudo só desfrutou dela durante uma década, em 1957 morreu com um ataque cardíaco. Jean Cocteau observou com graça: “Este delicado génio do nosso tempo, cujo nome encantado é uma combinação de Deus e Ouro [Dieu and Or]”. E a realidade é que 75 anos o legado de Mr. Dior continua a prosperar.