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“Tu não eras nascido. Eu era pequeno. Tinha 14, tinha 16, 17, tinha 20 anos. Havia pela rua os ceguinhos. Sabes como é que pediam esmola? Cantavam em dueto. Um tocava, era cego, o outro não, andavam a cantar pela rua. Sem mais nem mais, punham-se a cantar numa rua. Porque a rua que vocês hoje têm não é como a de antigamente. Vocês hoje têm automóveis, são atropelados. Vem uma camioneta, vem um automóvel. Dantes, não havia automóveis, havia só carroças e charretes e trens. E o ceguinho cantava: «Ó filha, tu que fizeste, que andas tão desconsolada? Eras alegre e bonita e, hoje, triste, descorada. Não comes, não vais para a mesa, e cada vez estás mais inchada.» E, depois, respondia a filha: «Papá, eu amo um doente, é essa a minha tristeza. A doença tira a cor e a vontade de ir para a mesa. Eu não sei o que sinto em mim, para lhe falar com franqueza.» Era um dueto. E daí é que vem o número das cegadas, cegadas para cantarmos pela rua. Mas, para cantarmos pela rua, ensaiávamos, levava dois meses, e depois, para sairmos para a rua, tínhamos de tirar uma licença no governador civil, que custava 1200 [réis]. Era uso, não havia ninguém que não saísse à rua. Chegou a haver, pelo Carnaval, 500 e tal cegadas.”
Alfredo Marceneiro era um exímio contador de histórias. Até porque a sua voz não era especial – era única, mas não era especial. E as histórias que contava não tinham de ser necessariamente cantadas em verso, podiam ser um bocado de prosa, como demonstra esta historieta que contou no documentário que o neto, Vítor Duarte, produziu para a RTP em 1979. Chama-se “Alfredo Marceneiro – 3 Gerações do Fado”. No filme, podemos ver o patriarca do fado a cantar e a contar histórias sobre o fado tanto ao filho, Alfredo Duarte Júnior, como ao neto. O locutor, Henrique Mendes, diz a dada altura que Marceneiro está, aquando das filmagens, com 86 anos. Viria a morrer cinco anos depois.
“Ouvimos meia dúzia de notas na voz de Alfredo Marceneiro e ficamos presos à história que ele nos quer contar”, defende o musicólogo Rui Vieira Nery. “Foi um intérprete extraordinário. Era um homem que tinha uma voz muito limitada, mas o que era realmente importante era a capacidade de comunicação que essa voz tinha.” E esclarece: “Quando digo limitada é no sentido em que não era uma voz muito potente, não era uma voz com um timbre particularmente bonito. Isso pode dizer-se da Maria Callas, também.”
Quanto mais velho Alfredo Marceneiro ficava, mais inconfundível a sua voz se tornou. Tinha, considera Vieira Nery, uma compreensão muito especial dos poemas que cantava e uma capacidade de expressar esses poemas que continua a ser uma referência fundamental para o fado.
Além disso, diz Rui Vieira Nery, Alfredo Marceneiro foi um dos maiores compositores da história do fado. São da sua autoria as músicas de “Fado Cravo”, “A Casa da Mariquinhas”, “Marcha do Alfredo Marceneiro”, “Lembro-me de Ti”, “Fado Balada”, “Bêbado Pintor”, “Fado Laranjeira”, “Menina do Mirante”, “Fado Bailado”.
“Juntamente com o Armandinho e o Joaquim Campos, da geração dele, escreveu uma quantidade de fados dos quais pelo menos uma dúzia estão no núcleo duro do repertório de fado”, explica Vieira Nery. “Todos os fadistas das novas gerações têm que voltar a esses fados, têm que os cantar, têm que mostrar que são capazes de dar uma versão pessoal. Só por aí já seria uma figura incontornável do fado.”
A fadista Carminho começou por ter, em criança, uma relação de estranheza e, ao mesmo tempo, de atração por Alfredo Marceneiro. “Estranheza porque ele tem uma voz particular. Talvez não seja o atributo que o distingue, não tem um instrumento vocal como o Sinatra”, conta Carminho. “Mas, ao mesmo tempo, é uma voz que atrai, uma voz que define melodias, uma voz que expressa um sentimento.”
“Fado Cravo” foi composto décadas antes de Carminho nascer, ela que tem 37 anos. “Este homem cantava os seus próprios fados e construía a linguagem. Ele vivia a linguagem. E isso ensinou-me muito sobre a minha atitude, a minha forma de estar na linguagem”, diz. “O ‘Fado Cravo’ faz parte da escola, para se poder continuar a cantar”, alertando também para os perigos daquilo a que chama de “fantasias das reinterpretações”. “Os fados que Marceneiro compôs são pontos marcantes na construção da linguagem. Mas ensinam-nos também a dar o pontapé para a frente. Ele, que era tão tradicional, era muito corajoso, era vanguardista.”
[“Fado Cravo”:]
Rui Vieira Nery considera “Fado Cravo” genial. “Era um homem quase analfabeto. Tem obras musicais absolutamente extraordinárias. O Fado Cravo é uma das obras primas absolutas da música portuguesa do século XX”, refere. “Não há fadista que se respeite que em algum momento não tenha cantado ou gravado o ‘Fado Cravo’. É um bocadinho como aquelas canções de Cole Porter ou Gershwin ou Irving Berlin.”
Quanto à sua vertente de intérprete, Rui Vieira Nery explica que Marceneiro era mestre nas três características mais importantes para um fadista ter: estilar, dizer e dividir. “O dizer é articular o texto de forma a que as palavras nos cheguem claras, profundas, com sentido”, explica. “Dividir é saber onde respirar. No fundo, está ligado ao dizer: como é que se divide uma frase, cantada, de maneira a que a melodia se adapte à lógica da sintaxe do próprio texto. E depois, e acima de tudo, vem o estilo.”
Marceneiro dizia muitas vezes que não era um compositor, era um estilista. “Estilar significa uma capacidade de improvisar a partir de uma melodia pré-existente”, tece Vieira Nery. Pegando nos fados mais tradicionais como o Mouraria ou o Menor, diz, Marceneiro era capaz de os transformar livremente e, a partir deles, construir novos fados. “Mesmo quando não construía novos fados, quando a melodia era repetida de estrofe em estrofe, ela nunca era repetida da mesma maneira.” Em “Fado Cravo”, Marceneiro começou por cantar uma letra da autoria de Filipe Teles e, mais tarde, passou a cantar o poema “A Viela”, de Guilherme Pereira da Rosa.
“Eu tenho uma coisa que é a pontuação”, explica Marceneiro no documentário do neto para a RTP, onde diz também que foi o primeiro homem que cantou “Há Festa na Mouraria” em Lisboa, cuja música é da sua autoria e o poema é de Gabriel de Oliveira. “Hoje não fazem caso da pontuação e dantes faziam. Já se sabe que os versos têm vírgulas, têm pontos finais, têm pontos de admiração [sic].”
As cegadas
As biografias contam que Alfredo Marceneiro começou por tomar contacto com o fado através das cegadas de rua. Foi numa dessas cegadas que conheceu Júlio Janota, marceneiro, que lhe arranjou um lugar de aprendiz numa oficina em Campo de Ourique. Entre os 14 e os 17 anos, já cantava nos bailaricos. Em 1908, dois anos antes da implantação da República, faz a sua estreia na cegada do poeta Henrique Lageosa. Alfredo Rodrigues Duarte, o seu nome de batismo, nasceu em 1888, mas foi apenas registado três anos mais tarde (aquando do registo, era comum os progenitores mentirem acerca das datas de nascimento dos filhos para não pagarem multas), pelo que a data oficial de nascimento de Alfredo Marceneiro é 25 de fevereiro de 1891. Marceneiro nasceu era Portugal uma monarquia, viveu a república, viveu a ditadura e ainda conheceu a democracia.
Foi nas cegadas – a que gostava de chamar “ensaios poéticos” – que aprendeu a arte de bem dividir as orações. Começou a cantar em retiros como o Caliça, o Bacalhau, o José dos Pacatos, o Cachamorra ou o 14 do Largo do Rato. Mas foi no Ritz que, à falta de saberem o seu apelido de batismo, alguém lhes disse que tinha o ofício de marceneiro e assim colocaram no cartaz Alfredo Marceneiro (já havia um Alfredo Correeiro, correeiro no Arsenal do Exército).
No documentário de 1979 da RTP, Marceneiro explica que trabalhou primeiro numa empresa de construção civil, a Diamantino Tojal, na Graça, e depois na Sociedade Porto de Lisboa. Aos 86 anos, dizia viver da reforma e das gratificações quando cantava. “Nunca me governei verdadeiramente com o fado”, afiançou, sem nunca olhar para a câmara. Não gostava de ir à televisão, assim como não gostava de gravar em estúdio. Tem poucos discos gravados. No seu site oficial, pode mesmo ler-se uma citação sua a dizer: “O meu maior desgosto é um desgosto em relação ao fado, foi gravar discos, os discos vieram industrializar o fado, o fado não se deve vender.”
Alfredo Marceneiro não gostava de viajar, raramente saía de Lisboa. “Ele gravou meia dúzia de discos por volta de 1930 e, em 1960, quando saiu o grande disco dele, The Fabulous Marceneiro. Foi preciso convencê-lo e foi assim que, excecionalmente, ele gravou este álbum extraordinário”, conta Vieira Very. “Ele já tinha 69 anos. E depois, mais para o fim da vida, gravou uns duetos, gravou dois ou três discos.”
[ouça “The Fabulous Marceneiro” na íntegra através do Youtube:]
Antes de ser Alfredo Marceneiro, tinha a alcunha de Alfredo Lulu. “Sem eu saber, puseram-me a alcunha de Lulu. Eu andava de gravatinha, «eh lá, está todo pinoca»”, conta, no documentário da RTP. “Havia o Alfredo Correeiro, havia o Alfredo da Parteira, havia o Alfredo daqui e dali. «— Qual? — O Lulu, aquele que anda de polainas.» Eu trazia polainas, lacinho. Era para fazer ver às raparigas e tal.”
Marceneiro admitiu também no documentário que, se não fosse pelas mulheres, o fado não o satisfaria. E que a principal mulher da sua vida foi a sua mãe.
O lugar da mulher no fado – que canta e é cantada – é tema para ter direito a reportagem própria, considera Carminho. Em relação às letras de certos fados, antigos, lembra que é necessário não descortinar o tempo e a cultura da época. “’A Casa da Mariquinhas’ é uma ode à mulher, à mulher do povo. Ele também lhe está a dar força. É uma personagem cheia de atitude, muito independente. É uma mulher dos tempos modernos.”
O pioneiro
“Não sabe nada de música? Pergunta-lhe Henrique Mendes no documentário, “Alfredo Marceneiro – Três Gerações de Fado”. Ao que Marceneiro responde: “Não, senhor. Sei ouvir.” No site oficial do fadista, pode ler-se que foi com a ajuda de Armandinho, considerado um dos grandes guitarristas da época e com quem atuou inúmeras vezes, que Alfredo Marceneiro registou as suas composições na Sociedade de Escritores e Autores Teatrais Portugueses. Foi Armandinho quem escreveu as suas criações numa pauta musical.
“Em 1927, surgiu uma lei que obrigava os fadistas a terem uma carteira profissional. E, ao mesmo tempo, começaram a aparecer as casas de fado. Passou a haver uma profissionalização dos fadistas. Deixaram de ser fadistas mais ou menos amadores, para terem um mercado de trabalho que lhes permitia viver exclusivamente do fado. E o Marceneiro é um dos protagonistas dessa mudança”, contextualiza Rui Vieira Nery. “Por outro lado, quando aparece essa rede das casas de fado, o Marceneiro é um pilar desses novos elencos, que vão também estimular muito a conversão de novos fados e o aparecimento de novos poetas, que escrevem letras para os fados. O Marceneiro foi, nesse momento, diria quase, um revolucionário. Fez o fado passar para uma nova etapa que foi, no fundo, aquilo que fez as bases daquilo que hoje em dia consideramos a tradição do fado.”
É da autoria de Alfredo Marceneiro a implementação das rotinas do silêncio e da luz baixa para se poder cantar o fado. No documentário da RTP, Marceneiro diz que teve a ideia de baixar as luzes para cantar o fado num restaurante no Parque Mayer. Quando lhe disseram que a luz elétrica ou estava acesa ou se apagava, sugeriu que se pusessem então velas nas mesas.
“Só em 1946 se dedica exclusivamente ao fado como profissional, conservando no entanto em casa o banco de marceneiro e as ferramentas com que se entretinha a fazer pequenos trabalhos, um dos quais A Casa da Mariquinhas”, pode ler-se na página do site do Museu do Fado dedicada a Alfredo Marceneiro. “Trata-se de uma construção em madeira, na escala de 1 por 10, em que, inspirado na letra de Silva Tavares, construiu/reconstruiu a casa evocada na descrição do poeta.” A peça faz parte do espólio da exposição permanente do museu.
O ícone
Quando se sobe ou desce a Rua Camilo Castelo Branco, perto do Marquês de Pombal, em Lisboa, deparamo-nos com o logótipo de um restaurante que se chama Malandro do Marquês. Não há qualquer referência específica a Alfredo Marceneiro ou ao fado, apenas que no local há música ao vivo (o site apresenta uma programação ligada às músicas do mundo). O logótipo é uma estilização da fotografia icónica de Alfredo Marceneiro de perfil, quando usava boina na cabeça e tinha um cigarro no canto da boca – tantas vezes utilizada em cartazes a anunciar espectáculos seus e tantas vezes usada como representação-tipo de uma noite de fados. A importância de Marceneiro vê-se aqui, quando a sua imagem transcende o seu nome e passa a significar um estilo de vida, uma tendência, um costume – para lá de qualquer época.
“Quando apareceram os novos veículos de difusão do fado, as tournées nacionais, as tournées internacionais, em que naturalmente ele teria sido uma cabeça de cartaz, ele nunca quis aproveitar essas oportunidades”, refere Rui Vieira Nery. “No circuito do fado, tenho a impressão de que não havia ninguém mais respeitado, mais admirado, mais imitado. E até mais temido, porque ele tinha uma personalidade muito forte. Não se coibia de dizer quando não gostava, tal como não se coibia de dizer quando gostava.”
Carminho comunga da mesma ideia. “Pelo que contam muitas pessoas que o conheceram, ele sabia muito bem o que queria e o que não queria. Essa atitude define muito o que é um artista”, advoga a fadista. Durante as atuações, Marceneiro era pessoa para dar instruções aos músicos para emendarem alguma coisa que não estivessem a fazer bem, inclusive mandá-los parar de tocar. “Tinha uma urgência de comunicar. Sabia bem o que queria dizer, estava dentro dele o que queria dizer.”
Se nos anos 60 e 70, a sua imagem de marca era a boina, mais para o final da vida passou a usar óculos – cuja armação era de massa preta grossa, muitas vezes de lentes verdes. Usava sempre fato e gravata, mas o colarinho estava desabotoado. A écharpe manteve-a dos tempos da boina, passando a usá-la de forma mais solta, para poder ver-se a gravata.
A imagem foi sempre algo que Alfredo Marceneiro soube cultivar. Não necessariamente com o intuito de alimentar a aura de estrela do fado, até porque Marceneiro só foi estrela do fado porque todo ele era fado, todo ele respirava marialvismo. Como o próprio o comprova quando diz, no documentário de 1979: “Não tenho temperamento para nada, não tenho tempo para me andar a exibir. Eu não sei exibir-me. Eu posso exibir-me ao acaso.” Alfredo Marceneiro não forjava, Alfredo Marceneiro era.
As fotografias reproduzidas neste artigo foram gentilmente cedidas pelo Museu do Fado