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O ano era 2009 e o Irão vivia dias atribulados. A eleição do Presidente Mahmoud Ahmadinejad levou milhares às ruas, em protesto contra o que denunciavam ser uma fraude eleitoral. Entre as várias palavras de ordem gritadas, uma frase ouvia-se por vezes no meio da multidão: “Mojtaba, que morras e não te venhas a tornar Líder Supremo!”
Treze anos mais tarde, o país atravessava nova convulsão. A morte de Mahsa Amini às mãos da polícia da moralidade, depois de ter sido detida por não estar a usar o véu islâmico, incendiou novamente o Irão e levou a uma vaga de protestos de meses, que acabaram esmagados pela repressão policial. Mas, no meio da multidão, um grito foi reavivado: “Mojtaba, que morras e não te venhas a tornar Líder Supremo!”
O homem a quem os manifestantes desejaram a morte é um dos filhos do atual Líder Supremo, o ayatollah Khamenei. A raiva era-lhe dirigida pelo papel que terá tido na promoção de Ahmadinejad a Presidente, primeiro, e pelo incentivo à repressão violenta dos protestos, de seguida. Desde então, o clérigo Mojtaba Khamenei tornou-se persona non grata entre os iranianos reformistas.
Pouco se sabe sobre este homem, cujo primeiro nome significa “O Escolhido” em persa. Não há muitas fotografias disponíveis de Mojtaba. A voz dele não é imediatamente reconhecível. E, no entanto, “na corte do Líder Supremo, ele é um vulto poderoso por trás do pano”, resumia ao Wall Street Journal o especialista nos serviços de segurança iranianos Saeid Golkar, em 2022.
Agora, dois anos depois, Mojtaba talvez abandone de vez a sombra. A morte do Presidente Ebrahim Raisi neste domingo, num acidente de helicóptero onde também seguia a bordo o ministro dos Negócios Estrangeiros Hossein Amir-Abdollahian, abalou toda a estrutura do regime teocrático do Irão.
O ayatollah Khamenei garante que “não haverá interrupção das funções do país”: já nomeou um líder interino e pôs em marcha o processo para se realizarem novas eleições. Mas as próximas presidenciais revestem-se de particular importância, por uma razão: podem bem ditar quem será o sucessor do Líder Supremo, atualmente com 85 anos. É que Raisi era o claro favorito na corrida, apontado por todos os especialistas na política iraniana como provável sucessor de Khamenei. E qual era o outro nome frequentemente invocado — e que agora, à partida, tem o caminho livre? O “Escolhido” Mojtaba.
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O “Escolhido” que pode suceder ao pai
Raisi estava a ser preparado para suceder a Khamenei por se ter tornado um homem de plena confiança do ayatollah. “Não era alguém que exalasse carisma. Os seus discursos não levavam pessoas às ruas. Limitava-se a executar as políticas”, resumiu ao New York Times Sanal Vakil, diretora do programa de Médio Oriente da Chatham House.
O papel que teve como jurista na execução de milhares de pessoas na década de 1980 valeu-lhe a alcunha de “Carniceiro de Teerão” e, perante os recentes protestos sobre a morte de Mahsa Amini, ordenou que fosse aplicada a repressão necessária. Não era um líder popular — a sua eleição em 2021 (depois de o Conselho dos Guardiães ter afastado quaisquer possíveis concorrentes mais moderados) contou com uma abstenção acima dos 50%, um valor raro em eleições iranianas.
Mas, para Khamenei e para a elite, isso pouco importava, já que Raisi dava sinais de estar disposto a seguir a atual linha conservadora do regime: “Acima de tudo, ele era um produto do regime. Era um ideólogo que trabalhou dentro do sistema e através do sistema”, resumiu Vakil.
Essa lealdade à corrente atual, mais conservadora, num regime nascido da Revolução Islâmica de 1979, deu vantagem a Raisi na corrida para Líder Supremo. A maioria dos pesos-pesados apontados ao longo dos últimos anos ou morreram (como o ex-Presidente Ali Akbar Hashemi Rafsanjani e Mahmoud Shahroudi), ou caíram em desgraça (como o ayatollah Sadeq Larijani), como notava em 2022 um ator da cena política iraniana que mantinha o anonimato. Os moderados (como o ex-Presidente Hassan Rohani) deixaram de ter lugar no contexto atual do regime, cada vez mais radicalizado.
Sobrava assim Raisi e uma outra carta fora do baralho, que agora surge como a escolha mais provável: Mojtaba Khamenei. Mas na política iraniana nada é assim tão simples. E o filho do atual Líder Supremo também enfrenta dificuldades.
Com 55 anos, o segundo filho de quatro do ayatollah Khamenei tem os pergaminhos certos para encaixar no perfil pretendido atualmente pelo regime. Aos 17 anos, entrou no Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica e combateu na guerra Irão-Iraque, inserido no batalhão Habib — conhecido como uma das fações do Exército iraniano defensoras de um islamismo mais radical, como notaram os académicos Saeid Golkar e Kasra Aarabi num artigo publicado no Atlantic Council. Durante os anos 2000, Mojtaba fez os seus estudos como clérigo, orientado pelo ayatollah Mohammad Taqui Mesbah-Yazdi, um teólogo tão radical que, notam os mesmos autores, emitiu uma fatwa contra os jovens iranianos que promovessem “a imoralidade ocidental” — leia-se, pena de morte para quem fosse infiel.
Nos últimos anos, Mojtaba tem ocupado um papel central dentro do Beit-e Rahbari, o gabinete da Autoridade da Liderança Suprema. Na prática, isso significa que trabalha diretamente para o pai, num cargo de enorme autoridade que supervisiona todos os ramos políticos e judiciais do país. A sua nomeação como Líder Supremo seria, por isso, uma aposta na continuidade.
Dias antes da morte de Raisi, quando ainda não era possível prever o que iria acontecer, um jornalista iraniano comentava com o Financial Times como Mojtaba era o favorito de muitos dentro do regime: “Do ponto de vista deles, a liderança de Mojtaba representa a opção mais segura, a melhor opção. Temem que alguém como Raisi queira desenvolver a sua própria rede, à semelhança do que fez o próprio Khamenei.” Por outra palavras, mantendo a liderança na família, diminui-se a possibilidade de purgas, como aconteceu aquando da transição do ayatollah Khomeini para Khamenei, em 1989.
Fosse há umas semanas, seja agora, um primeiro problema coloca-se ao filho do atual Líder Supremo: “O Escolhido” não tem as credenciais teológicas exigidas ao ocupante do cargo. Como explica o Die Welt, para isso é necessário ter atingido o nível espiritual de Marja-e-Taghlid, com o qual se considera que o clérigo em questão é infalível nas suas interpretações da lei islâmica.
Mas o caminho já estava a ser feito. Em agosto de 2022, uma agência de notícias iraniana garantiu que, apesar de não ser reconhecido como um teólogo brilhante, Mojtaba tinha sido agraciado com o título de ayatollah — sem ele, seria impossível algum dia ser Líder Supremo. E a falta de estatuto religioso é contornável: isso mesmo aconteceu em 1989, quando Khamenei se tornou Líder Supremo aos 50 anos, sem tarimba suficiente como clérigo. Para isso, procedeu-se à alteração constitucional necessária, nota o especialista no Irão Afshon Ostovar.
Ainda Raisi era vivo e já havia quem apostasse todas as fichas em Khamenei filho. “Ninguém é mais próximo do atual líder e ninguém é mais de confiança para o aparelho de segurança do que Mojtaba Khamenei”, notava em março à edição persa da BBC Hasan Yousefi Eshkevari, clérigo e antigo apoiante destacado da Revolução de 1979, que acabou perseguido politicamente pelo regime. “Embora ele não tenha experiência executiva, tem gerido a casa do seu pai, que na prática funciona como um governo, há 35 anos. E entende as relações de poder”, decretou.
Há, contudo, outro entrave muito maior do que a falta de experiência ou de conhecimento religioso no caminho de Mojtaba: o facto de ser filho do atual ayatollah supremo. A Revolução Islâmica de 1979 deitou abaixo precisamente o regime monárquico do Xá e assentou a identidade do novo Irão em lideranças religiosas. Se o próximo Líder Supremo for herdeiro de sangue de Khamenei, o próprio regime poderá estar a transformar-se de uma teocracia para uma espécie de monarquia.
Muitos não veem isso com bons olhos. É o caso do antigo primeiro-ministro reformista Mir Hossein Mousavi, que, apesar de estar em prisão domiciliária, tem publicado críticas a essa possibilidade: “Os rumores de uma conspiração para que um filho suceda ao pai circulam há treze anos. Se não são verdade, porque ninguém os vem negar?”, questionou ainda em 2022 — a mesma altura em que manifestantes pediam nas ruas a morte de Mojtaba.
A influência da Guarda Revolucionária, “o verdadeiro poder por trás da cortina”
Mas o filho do ayatollah Khamenei conta com aliados poderosos dentro do regime, como sublinham os investigadores Saeid Golkar e Kasra Aarabi: é próximo de alguns dos clérigos mais extremistas da elite, muitos deles membros da Guarda Revolucionária Islâmica. A milícia criada após a Revolução de 1979 ganhou o estatuto de ramo das Forças Armadas do país e tem ganho cada vez mais influência dentro do regime, radicalizando-o.
Os laços de Mojtaba à Guarda Revolucionária são evidentes e ganharam particular relevo durante a supressão dos protestos de 2009, altura em que o clérigo terá supervisionado a atuação da Guarda e da sua milícia Basij. O mesmo terá acontecido agora em 2022, durante a repressão dos protestos pela morte de Mahsa Amini. O site independente iraniano Daraj destaca como Mojtaba era próximo de Qassem Soleimani, antigo líder da Guarda assassinado pelos Estados Unidos em 2020. “Ele é próximo do aparelho de segurança”, reforçava aquando dos últimos protestos a investigadora Sanam Vakil ao Wall Street Journal. Se chegar ao poder, dizia, “não devemos esperar um liberal”. “De todo.”
E a Guarda Revolucionária deseja precisamente que o próximo Líder Supremo seja da sua linha dura — e que, de preferência, seja uma figura que consiga senão controlar, pelo menos influenciar. O ayatollah Khamenei em tempos também se aliou à Guarda para consolidar a sua posição, de tal maneira que os militares começaram a ultrapassar os clérigos. Dados da Chatham House citados pela Economist notam que em 1980 apenas 6% dos membros do Parlamento iraniano pertenciam à Guarda; em 2023, eram 26%.
Mas o organismo e o atual Líder Supremo nem sempre estão de acordo, sobretudo no que diz respeito a política externa, nota Afshon Ostovar. “Khamenei tem preferido uma estratégia gradualista, tentando equilibrar a assertividade do Irão com um desejo de limitar a escalada”, escreve o especialista. Já a liderança da Guarda Revolucionária “é menos paciente e gostaria de adotar uma postura mais agressiva — e aplicar mais facilmente a força militar — se o líder permitisse.”
Com Mojtaba, a Guarda Revolucionária pode ver uma abertura para aplicar a sua política de radicalização a nível internacional — o que, num cenário de tensão extrema no Médio Oriente em plena guerra de Gaza, poderia ter consequências imprevisíveis. E pode também tentar usar o candidato para reforçar o seu poder dentro da estrutura interna do Estado. O futuro, diz o académico, pode ser o de um “sistema pretoriano ou uma ditadura militar velada”.
E Ostovar não é o único a alertar para essa possibilidade. Ali Vaez, diretor do programa sobre o Irão do Crisis Group, dizia em fevereiro que o próximo Líder Supremo pode já não vir a ser verdadeiramente supremo, “porque o mais provável é que seja subserviente à Guarda Revolucionária”. “Assim sendo”, acrescentava, “o Irão assemelhar-se-ia ao Paquistão ou ao Egipto, onde o Exército é o verdadeiro poder por trás da cortina.”
A tensão das ruas e o possível caos entre as elites
Em tempos conturbados, o apoio das Forças Armadas revela-se ainda mais essencial a um novo líder. E o próximo Líder Supremo, seja ele Mojtaba ou qualquer outro, pode bem enfrentar tempos difíceis.
O Irão vive uma crise económica profunda, com uma inflação acima dos 40% e uma moeda a desvalorizar continuamente. O descontentamento popular pode estar agora abafado, não se revelando em protestos nas ruas, mas é notório na cada vez mais baixa participação eleitoral — as eleições parlamentares de março passado tiveram uma abstenção recorde de mais de 60%. O que saiu dessas eleições foi um Parlamento de linha ainda mais dura, onde os moderados têm cada vez menos lugar.
Agora, a propósito da morte de Raisi, alguns iranianos ousaram festejar em público, como testemunhou o Telegraph em Teerão: “Ouvi pessoas a cantar ‘Morte ao ditador!’”, disse um residente. “Fui a uma loja e foi incrível, o dono ofereceu-me um cigarro e disse ‘Esperemos que haja mais acidentes destes’”, contou outro.
A possibilidade de os protestos regressarem à rua é sempre real. E, para o analista do Carnegie Endowment Karim Sadjadpour, torna-se ainda mais provável se Mojtaba Khamenei se vier a tornar Líder Supremo. “A falta de legitimidade e popularidade dele significa que ele é completamente dependente da Guarda Revolucionária para manter a ordem. Isto pode apressar a transição para um regime militar ou o seu potencial colapso”, vaticina.
Outros, como Ali Alfoneh, acham mais provável o total esmagamento de qualquer dissidência pública, por a teocracia temer que o poder caia na rua: “Se surgirem protestos desses, não há razão para achar que o regime será menos eficaz a suprimi-los do que foi em esmagar protestos por todo o país no passado recente”, sentenciou o cientista político.
De qualquer forma, não há dúvidas que, com a morte de Raisi e a transição na Liderança Suprema a aproximar-se, a República Islâmica enfrenta um dos seus momentos mais instáveis de sempre. E, apesar de Mojtaba seguir com vantagem, nada está garantido.
Há cerca de um ano, o analista Ali Reza Eshraghi relembrava num artigo da Foreign Affairs como o processo de transição de Khomeini para Khamenei foi “ad hoc, transacional e amargo”. E previa que o mesmo volte a acontecer no futuro, mais de 30 anos depois: “As elites podem usar a competição para ajustar contas, dar facadas nas costas e lavar roupa suja. As regras, se é que existem, serão manipuladas. O vencedor final pode ser uma surpresa até para os observadores mais bem informados. A única certeza é que a morte de Khamenei irá trazer grande incerteza — e caos.”