Marcelo Rebelo de Sousa considera que está “certamente” em condições de se manter em funções como Presidente da República por não ter promovido “nenhum privilégio” e por ter sido o “mais neutral” possível no caso das gémeas lusobrasileiras que receberam um dos medicamentos mais caros do mundo num processo relâmpago no Hospital Santa Maria. Ao final de tarde, numa conferência de imprensa inesperada e numa sala pouco usada para o efeito, no Palácio de Belém, o Presidente da República reviu cronologicamente tudo o que passou pelas mãos de elementos da Presidência e da Casa Civil, começando por um e-mail que tinha como remetente o próprio filho, Nuno Rebelo de Sousa, e que levantou suspeitas sobre um alegado envolvimento do chefe de Estado no processo.
O Presidente da República assegurou que fez com o caso das gémeas lusobrasileiras exatamente o mesmo que faz com todos os pedidos de cidadãos que lhe chegam pelas mais diversas vias, que não priorizou o caso que o filho de lhe deu a conhecer (“não há uma intervenção do Presidente da República pelo facto de ser filho ou não ser filho”) e espera “bem” que Nuno Rebelo de Sousa “não tenha falado” com o Ministério da Saúde — e faz questão de sublinhar que não dá autorização a ninguém que invoque o seu nome para qualquer tipo de favorecimento.
Pelo caminho, Marcelo Rebelo de Sousa revelou ainda que o Governo tomou conhecimento do caso através de um e-mail da Casa Civil enviado para a Presidência do Conselho de Ministros e que, após esse contacto, não faz ideia do que se passou — “O que se passou a seguir? Não sei. Para isso é que há a investigação da Procuradoria-Geral da República. Espero que seja cabal para se perceber o que se passou desde o momento em que saiu de Belém.”
Os dez dias em que o caso passou por Belém — segundo Marcelo
21 de outubro
Foram dez dias entre o primeiro e-mail que chegou à caixa de correio do Presidente da República e o dia em que Marcelo Rebelo de Sousa diz que o processo “saiu de Belém“. O apuramento dos factos foi feito pela Presidência da República a pedido do próprio chefe de Estado para que se percebesse “até que ponto tinha algum tipo de intervenção ou não”, até porque Marcelo Rebelo de Sousa tinha sido confrontado com os factos e alegou que não se lembrava de ter falado com o filho sobre o caso. Na declaração que fez aos jornalistas — ao final da tarde, de forma inesperada e com um aviso em cima da hora —, o Presidente da República lembrou ainda que tudo se passou entre “o dia 21 de outubro de 2019 e o dia 31 de outubro de 2019“, período que coincidiu com a formação de um Governo e com a sua operação a vasos sanguíneos.
Ora, o e-mail do “doutor Nuno Rebelo de Sousa” (“meu filho“, sublinhou Marcelo) chegou a Marcelo Rebelo de Sousa nesse dia 21 de outubro e dava conta de um “grupo de amigos da família das duas crianças gémeas se tinha reunido e estava a tentar, a todo o transe, que elas fossem tratadas em Portugal”. Tratava-se, segundo disse, de uma “corrida contra o tempo“. E Marcelo prosseguiu para explicar que, nessa altura, já tinha sido contactado o Hospital Dona Estefânia, que assumira que o “hospital adequado” seria o Santa Maria. A documentação tinha, então, seguido para o maior hospital do país. E, sem resposta até à data, Nuno Rebelo de Sousa queria perceber exatamente se era possível perceber obtê-la.
Nesse mesmo dia, Marcelo despachou o caso para o chefe da Casa Civil, “nos seguintes termos: “Será que Maria João Ruela, que era, na altura, assessora para Assuntos Sociais, pode perceber do que se trata? Ponto de interrogação.” O e-mail seguiu para a assessora, que contactou o Hospital de Santa Maria e que, dois dias depois respondeu ao filho de Marcelo.
23 de outubro
Na resposta que vinha do Hospital Santa Maria e tinha passado por Belém, Nuno Rebelo de Sousa ficou a saber que “o processo foi recebido” e que estavam a ser “analisados vários casos do mesmo tipo”. Porém, nesse mesmo e-mail seguia mais informação: além do caso das gémeas estão a ser “analisados doentes internados e seguidos em hospitais portugueses, sendo que a capacidade de resposta é naturalmente muito limitada, e depende inteiramente de decisões médicas do hospital e do Infarmed”.
“Na sequência disso” e sem especificar a data, Marcelo revelou que o filho voltou a contactar Maria João Ruela, que “confirmou, nos mesmos e exatos termos, aquilo que tinha dito por escrito”, e depois o chefe da Casa Civil, que “confirmou a informação recebida da consultora” e esclareceu que “a prioridade é dada aos casos que estejam a ser tratados nos hospitais portugueses”, o que explicaria que, na altura, os pais das gémeas ainda “não tivessem “sido contactados”. “Nem é previsível que o sejam rapidamente“, acrescentava a informação, seguido da informação de que o SNS “cobre, em primeiro lugar, as situações de pessoas que residam ou se encontrem em Portugal”.
31 de outubro
É o dia que Marcelo considera como o fim da sua intervenção no processo. “O chefe da Casa Civil enviou, como enviava sempre, e foram centenas, se não milhares, de casos que chegavam, para o chefe de gabinete do primeiro-ministro, uma vez que era aí concentrada toda a comunicação, a correspondência da Presidência com o Governo”, explicou, acrescentando que foi também enviado para o chefe do gabinete do secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, “atendendo a que se tratava de residentes no estrangeiro”. Na carta seguia toda a informação relativa ao caso, aquela que tinha chegado a Belém, nomeadamente “matéria de identificação e os exames respetivos”.
Depois da comunicação ao Governo, o chefe da Casa Civil enviou uma carta aos pais das crianças, dando conta de que tinha enviado essa mesma informação. “Ponto“, concluiu o Presidente da República. “Termina aqui a intervenção da Presidência da República. Começa no dia 21, termina no dia 31, a partir daí, não há qualquer intervenção sobre a sequência do processo, como aliás acontecia sempre com a sequência dos processos que eram remetidos, para o chefe de gabinete do primeiro-ministro”, acrescentou.
Marcelo sublinhou ainda que os dados foram difíceis de apurar porque houve “complexidade” em encontrá-los no serviço, já que tudo “foi apurado a partir do servidor da Presidência da República Portuguesa” e porque “passaram anos e há milhares e milhares de e-mails”.
A falta de memória, a posição “neutral” e a consciência tranquila
A chamada da comunicação social a Belém serviu para dizer que a investigação interna da Presidência da República tinha chegado ao fim e que tinha sido enviada toda a documentação à PGR. Mas Marcelo queria dizer bem mais, desde logo que, há um mês, quando questionado sobre a reportagem da TVI, não tinha mentido: “Não me recordava minimamente tivesse começado assim, dessa forma, com uma carta do doutor Nuno Rebelo de Sousa, meu filho, e não me recordava do despacho que tinha dado.”
Apesar de ter a noção de que “não tinha tido intervenção nenhuma mais sobre matéria” resolveu dar ordens para investigar e encontro “o contacto inicial”, o despacho e tudo o que se passou na Presidência da República “até à saída para a Presidência do Conselho de Ministros”.
Marcelo Rebelo de Sousa está certo de que não fez nada de errado no processo das gémeas. Questionado sobre se tem condições para se manter no cargo, respondeu com um rápido “ai, certamente” e sacudiu os ombros de responsabilidade, dizendo que “fica claro que o Presidente da República, perante uma pretensão de um cidadão como qualquer outro, dá o despacho mais neutral e igual a que deu em n casos, respeita os contactos feitos pela consultora e a posição do chefe da Casa Civil e não há uma intervenção do Presidente da República pelo facto de ser filho ou não ser filho”.
O que ficou por explicar?
O e-mail desaparecido
No dia em que a TVI transmitiu a reportagem do caso das gémeas foi revelado um e-mail que Marcelo Rebelo de Sousa enviou a António Levy Gomes, coordenador da unidade de Neuropediatria do Hospital de Santa Maria: “No meio de milhentos pedidos e solicitações, falou-me o meu filho Nuno num caso específico de luso-brasileiras no Brasil. Disse-lhe logo de imediato que não havia privilégio nenhum para ninguém e por maioria de razão para filho de Presidente.”
O chefe de Estado falou desse e-mail, recordou que era claro que “não havia privilégio nenhum para ninguém” e garantiu que não se lembrava. Porém, ao contrário de todas as trocas de comunicação que foram enviadas para a PGR, quando questionado sobre esse e-mail em específico, não só reiterou que “não tem memória dele”, como referiu que são “milhares de e-mails” e que “não guarda todos“. Ou seja, ao contrário de toda a troca de e-mails que foi resgatada do arquivo, aquele que foi enviado a Levy Gomes desapareceu — mas Marcelo cita-o para provar que não interveio.
Do filho ao Governo: Marcelo não defende ninguém
Da longa declaração do Presidente da República podem ser retiradas duas grandes conclusões: Marcelo considera-se totalmente inocente, mas não põe as mãos no fogo por ninguém, nem pelo próprio filho. Questionado sobre se falou diretamente com Nuno Rebelo de Sousa relativamente ao caso das gémeas, à exceção dos e-mails que revelou, Marcelo assegurou que não e que o tratou como “qualquer cidadão, neste caso residente no estrangeiro”.
Aos olhos do Presidente, o filho “quis ser solidário” e resolveu apresentar o caso daquela forma. “Recebi como receberia de qualquer outro e mandei para quem devia mandar e foi-lhe dito ‘olhe, não tem sorte nenhuma’”, recordou o chefe de Estado que, questionado sobre se o filho teria falado com o Ministério da Saúde, deu um passo atrás: “Isso eu não sei. Não sei e espero bem que não tenha falado. Mas isso já não é comigo.”
Aliás, no mesmo seguimento não só disse ser “muito estrito”, como tem esperança de que Nuno Rebelo de Sousa ou “outro familiar, conhecido ou amigo não tenha, de algum modo, invocado” o seu nome. “Se isso viesse a comprovar, seria totalmente inaceitável”, acrescentou, enquanto fez questão de deixar claro que existe “toda a liberdade para investigar, seja amigo, filho, irmão, neto, primo, seja quem for”.
Por outro lado, o Governo. Já depois de Marta Temido, então ministra da Saúde, ter negado qualquer envolvimento no caso das gémeas, Marcelo Rebelo sublinhou várias vezes que só tem responsabilidade pelo que aconteceu sob a sua alçada e que não tem conhecimento relativamente a nada do que se seguiu. “O que se passou a seguir [a Belém]? Não sei. Para isso é que há a investigação da Procuradoria-Geral da República. Espero, como disse há dias, que seja cabal para se perceber o que se passou desde o momento em que saiu de Belém, foi para o sítio para onde normalmente ia sempre [Presidência do Conselho de Ministros], e depois saiu o seu processo”, esclareceu.
E, já antes, tinha deixado exatamente o mesmo sublinhado: “Perguntarão, e depois ter ido para a Presidência do Conselho de Ministros? Isso não sei. Não sei, francamente. Como é que foi? O que se passou a seguir, por que tramitação se seguiu, não tenho a mínima das ideias.”
O caso das gémeas que chegaram a Lisboa com uma consulta marcada no Hospital Santa Maria, que obtiveram a nacionalidade em 14 dias e que receberam um dos medicamentos mais caros do mundo (que não é administrado a todas as crianças com a mesma doença) está a ser investigado pelo Ministério Público e, agora, Marcelo Rebelo de Sousa enviou à PGR toda a documentação que juntou sobre o caso.