Duas gémeas luso-brasileiras vieram a Portugal receber o tratamento Zolgensma, no Hospital Santa Maria, depois de terem sido diagnosticadas com Atrofia Muscular Espinhal. Trata-se do medicamento mais caro do mundo e em causa está uma alegada interferência de Marcelo Rebelo de Sousa que terá permitido que as bebés tivessem acesso ao tratamento de quatro milhões de euros para as duas. O Presidente da República nega e não se lembra de falar sobre o caso com o filho, que vive no Brasil, e que é referido pela mãe das crianças — mas há um e-mail que o confirma.

É “clarinho, clarinho” que houve uma cunha, garante no programa Exclusivo, da TVI, António Levy Gomes, coordenador da unidade de Neuropediatria do Hospital de Santa Maria. O médico foi um dos profissionais de saúde que assinaram uma carta dirigida ao presidente do Conselho de Administração da altura, Daniel Ferro, onde era contestada a situação, desde logo pelo facto de as crianças já estarem a receber outro tratamento no Brasil (não de uma só toma e que obriga a continuidade ao longo da vida), mas também porque outras pessoas na mesma circunstância não têm acesso ao mesmo medicamento devido ao preço.

As gémeas nasceram no Brasil em 2019, foram diagnosticadas com Atrofia Muscular Espinhal e a família rapidamente iniciou uma campanha de donativos que permitisse o tratamento. O objetivo nunca foi atingido (eram precisos dois milhões de euros para cada criança) e a boa notícia acabou por chegar em junho de 2020, quando surgiu uma resposta positiva de Portugal.

A mãe das crianças, Daniela Martins, é lusodescendente e, depois de contactar um advogado, percebeu que as gémeas teriam todos os direitos no Serviço Nacional de Saúde. Chegaram ao Santa Maria com uma consulta marcada e quando ainda não tinham número de utente — até porque o consulado de São Paulo só recebeu o pedido de nacionalidade uma semana depois do tratamento. E receberam mesmo o medicamento de toma única, ainda que vários médicos se tenham oposto.

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Nas imagens reveladas pelo programa da TVI, Daniela Martins reconhece que nem tudo foi fácil no Hospital de Santa Maria, mas resume os passos seguintes: “Usámos os nossos contactos. Conheci a esposa do… a nora do Presidente, que conhecia o ministro da Saúde [ndr: na altura era a ministra Marta Temido], que mandou um e-mail para o hospital. Começaram a receber ordens superiores.”

Marta Temido, questionada pela TVI, reconhece que tinha ouvido falar do caso das gémeas lusodescendentes, mas pensou que “não tinham chegado a fazer o tratamento”. E o ex-presidente do hospital, Daniel Ferro, que foi nomeado pelo ex-secretário de Estado Francisco Ramos, assegura que nunca recebeu qualquer indicação.

Marcelo Rebelo de Sousa, em declarações à TVI, assegura que não houve interferência e explica que “chegou o pedido” e que depois de se apurar que se tratava de uma “questão relevante mas complexa” foi decidido “mandar duas cartas, uma para o chefe de gabinete do primeiro-ministro e outra para o gabinete do Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas”. Nega a ideia de que houve cunhas e garante que se as houve não aconteceram por uma via que conheça: “Então alguém com muita influência passou por cima do Presidente da República, do primeiro-ministro, porque para chegar à ministra tinha de chegar ao primeiro-ministro… portanto a cunha deve ter surgido noutro plano… ou então não surgiu.”

Porém, e apesar de assegurar que não tem memória de ter falado com o filho que vive no Brasil, Nuno Rebelo de Sousa, sobre o caso (“Francamente não me lembro“), Marcelo Rebelo de Sousa enviou um e-mail a António Levy Gomes que o desmente: “No meio de milhentos pedidos e solicitações, falou-me o meu filho Nuno num caso específico de luso-brasileiras no Brasil. Disse-lhe logo de imediato que não havia privilégio nenhum para ninguém e por maioria de razão para filho de Presidente.”

Daniela Martins garante que nunca entrou em contacto com Marcelo Rebelo de Sousa e que não conhece Nuno Rebelo de Sousa pessoalmente, mas realça que conheceu a esposa (nora do Presidente da República) que também vive no Brasil.

O caso é de 2020 e, além de ter gerado um conflito entre os médicos do serviço de Neuropediatria e o Conselho de Administração, deixou questões por responder: Ana Paula Martins, agora presidente do Centro Hospitalar Lisboa-Norte, assegura que não há nos registos a carta que foi enviada pelos médicos na altura e o dossiê com registo de inscrição das gémeas desapareceu. Já o hospital vai abrir uma auditoria para perceber os contornos do assunto.