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"O grande disco do grande amor" de Aldina Duarte

"Tudo Recomeça" reúne 12 temas do repertório de Aldina Duarte, canções que cresceram com a fadista em palco e que, com a pandemia, ganharam novos sentidos. Aldina explica como e porquê, em entrevista.

As notas no caderno encontram-se lado a lado. Na noite de 18 de março, dia do funeral de Jorge Silva Melo, a jornalista que escreve este texto assistiu no Teatro São Luiz ao ensaio para a imprensa do último espectáculo encenado pelo fundador dos Artistas Unidos, com o título “Vida de Artistas”. A entrevista a Aldina Duarte a propósito do seu novo disco decorre no Largo do Intendente, onde no início de dezembro se organizou uma festa de despedida na Casa Independente a propósito da morte do músico Pedro Gonçalves. Foram duas pessoas muito importantes na vida da fadista, que acaba de editar Tudo Recomeça.

“Não é muito comum ter um disco a sair para a rua quando morre a pessoa responsável pelo nosso caminho, pela nossa carreira. Não é muito comum ter acabado de gravar o disco e morrer o único produtor musical discográfico que tive, que era se calhar a pessoa que melhor me conhecia, à minha alma, e que me ensinou a descobri-la de uma maneira que sem ele eu não teria descoberto”, refere Aldina Duarte a propósito do timing deste novo disco, cujo título remete para a ideia de pós-fim. “À parte disso, são amigos da minha vida, com quem tinha muita intimidade – sobretudo o Pedro, da mesma geração que eu. Acho que nem sequer comecei esses lutos.”

A entrevista é interrompida, chega à mesa um hambúrguer com um pratinho de batatas, tudo servido numa pedra preta. São três da tarde e Aldina ainda não almoçou. Diz adorar estes pequenos momentos de desvio gastronómico, feitos de comida gordurosa. Abre o pão e coloca um pouco de maionese, depois um pouco de ketchup. As batatas também as irá molhar nas pequenas tinas onde estão os molhos. Na mesa ao lado, um grupo de senhoras idosas do bairro aproveita para meter conversa e Aldina ouve-as e fala com elas com a maior naturalidade. Falam da gordura, mas também do açúcar, e a senhora de 57 anos diz: “Quando morrer, vou deitada, deixem-me curtir alguma coisinha”. Refere que a data para mais importante foi celebrar 50 anos, é garantia de que viveu.

[ouça o álbum “Tudo Recomeça” na íntegra através do Spotify:]

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Para Aldina, fazer 50 anos foi um dia igualmente importante, não só pela festa que aconteceu no Cinearte. “Foi o salto mais consciente que acho que dei para qualquer coisa que oiço e leio ser parecido com maturidade”, explica. “Tive uma adolescência muito retardada e, para mim, envelhecer está a aproximar-me de uma vibração infantil que me agrada profundamente.”

Retomando o foco da entrevista no novo álbum, a ideia de recomeço está ligada necessariamente aos anos de pandemia, quando o disco começou a ser desenhado na cabeça de Aldina. O facto de termos acabado de sair do peso da pandemia para logo mergulharmos no peso de uma guerra no leste da Europa não lhe redefiniu o conceito de recomeço. “Nós esquecemo-nos de que a vida é permanentemente um recomeço. É só olhar para a natureza”, explica. “Apesar do drama das alterações climáticas que estão a afetar tudo assustadora e perigosamente, se a primavera não vem em Março, vem em Janeiro. Mas vem. A folha nasce, a flor nasce e o fruto nasce.” Para a fadista, o recomeço é parte integrante da vida; na sua opinião, as pessoas não o aceitam porque receiam o desconhecido e a mudança.

“Percebi depois o que poderia ser: já não estou a cantar a mesma história destes fados, estou a cantar a história destes últimos tempos que vivemos. A vivência transformou a minha arte a todos os níveis. Já não estou a cantar o amor por alguém, estou a cantar o amor por nós todos.”

Este oitavo disco de Aldina Duarte, que fala muito no imperativo da intimidade nos fados – refere que são quase um segredo que está a cantar –, reúne doze temas. “Estes são os fados que nunca deixei de cantar ao longo dos meus concertos”, refere Aldina. “Este é o disco dos fados que cresceram em palco. O disco anterior, Roubados, são os fados que aprendi na casa de fados, antes de ter o meu reportório – cantava os fados de outros, que eram a cartilha dos novos fadistas.” Tudo Recomeça (ed. Sony) é composto de fados do seu reportório e alguns nunca os tinha gravado. Fala, por isso, em recriação: de como os fados crescem com o fadista, de como os fados são extensões plásticas do corpo do fadista.

“É incrível ouvir o mesmo tema quando foi gravado há 15 ou 10 anos e ouvir agora. É tudo a recomeçar.” No fim de 2020, os concertos tinham sido cancelados e sete foram-lhe reagendados. Quando regressou aos palcos, apercebeu-se de que os seus fados tinham um som diferente e, a princípio, não sabia muito bem porquê. “Pensava: se calhar sou eu, por ter estado tanto tempo parada… será que a minha voz…?” e lembra que cantou, durante mais de vinte anos, de terça a sábado, todas as semanas. “Foi um tormento, uma grande angústia. Mas a voz nunca foi problema, apareceu naturalmente”, conta. “Percebi depois o que poderia ser: já não estou a cantar a mesma história destes fados, estou a cantar a história destes últimos tempos que vivemos. A vivência transformou a minha arte a todos os níveis.” As palavras ganharam novo som, novo sentido, novo contexto. “Já não estou a cantar o amor por alguém, estou a cantar o amor por nós todos.”

Visto que não tinha onde nem como cantar, durante os confinamentos, Aldina descreve que fez do estúdio o espaço para poder exercer a sua vocação, carente que estava. “Fui buscar os temas que tinham mais a ver com a solidão, com o medo, com a esperança desmedida”, diz. “Era tão urgente sobreviver que não dava para andar a brincar às depressões nem deixar a tristeza avançar muito.” Ou seja, escolheu os fados – e emenda quando se fala em “canções”, admite o uso apenas para o tema composto por Manel Cruz, intitulado “Ela” –, que permitem o equilíbrio. “São fados onde a solidão e a esperança estão sempre em diálogo. Além do farol que é a coragem.”

“Fui buscar os temas que tinham mais a ver com solidão, com medo, com esperança desmedida. Era tão urgente sobreviver que não dava para andar a brincar às depressões nem deixar a tristeza avançar"

Com uma capa da autoria do artista plástico Pedro Cabrita Reis, Aldina Duarte considera que estes fados só ganharam em ter sido gravados. “É a primeira vez que oiço num disco aquilo que tinha na cabeça. Espero obviamente vir a fazer melhor, porque não estou cá para parar, mas não sei que melhor é esse”, assume, sem medo dos estigmas das falsas modéstias. “O melhor que sei fazer está ali exatamente. Não digo isso de nenhum outro disco meu.” O porquê de lhe acontecer agora, com este disco, diz não saber, mas sabe que não tem a ver com a possibilidade de a sua postura ter mudado com o passar dos anos, ela que já aqui falou de maturidade. “Ficou tudo mais consistente. Não tinha nada a provar a ninguém, nem a mim própria. Só tinha que cantar aquilo que sei, com o que tinha. Como se fosse o último disco de tudo o que tinha feito até ali, porque não sabia se iria voltar a fazer algum. Era este o espírito, por isso é que o disco é tão intenso.”

Aldina conta que toda a gente lhe diz algo comum em relação ao disco: apesar de ser muito denso, é muito sereno. Aldina Duarte teve condições de gravação únicas: o tempo à sua disposição. “Cheguei a refazer alguns versos à palavra. Como quem está a fazer uma filigrana. É lindo. A descoberta em estúdio foi essa”, diz, entusiasmada, como de resto durante toda a conversa. “Tornou-se na minha casa para cantar e no meu espaço de liberdade.” Fez-se acompanhar de dois “músicos extraordinários”, Paulo Parreira na guitarra portuguesa e Rogério Ferreira na viola.

Refere ainda que esteve pela primeira vez disposta a errar. E esse estado de espírito permitiu-lhe arriscar, experimentar. “Estes fados são uma rede que está preparada para determinados saltos e eu ainda arranjei uma corda para andar sobre essa rede.” E concretiza: “[os saltos] são o improviso rítmico, melódico e poético.” Conta ainda a história de quando um frade lhe perguntou se alguma vez tinha feito uma pateada e, ao responder que não, o comentário que se seguiu foi: “também já estava na altura”.

“O grande amor que nunca acaba, a grande paixão que ora vai ora vem, é sempre à volta da minha arte. Nunca quis ter filhos, não gosto de viver com ninguém. Não tenho uma vida muito convencional nesse aspeto. A minha paixão está toda canalizada para a minha arte. Como amante, sou mais de amar do que de me apaixonar.”

“Antes de Quê”, letra de Manuela de Freitas feita para Aldina, foi o único fado que neste disco não foi sujeito ao bisturi, foi o único fado em que não mexeu. “É o fado que canto desde o primeiro dia em que cantei. Nunca deixei de cantá-lo em noite alguma no Senhor Vinho ou em palco algum.” É o primeiro fado que canta desde o primeiro dia em que cantou, no teatro da Comuna, em 1994, quando organizava as Noites do Fado. “Costumo dizer que é o fado que sabe mais de mim do que eu dele. Não é frase feita”, explana. “Leva-me para sítios que nunca fui a cantar, leva-me para sítios que nunca fui a sentir.”

A entrevista não pode acabar sem se falar de amor. Aldina clarifica que a ideia que tem do amor tem mudado constantemente na sua vida, sobretudo nas relações amorosas. “Sempre encarei a amizade como uma forma de amor”, defende. “Acho a sexualidade muito complexa, está sempre a mudar – conforme o par, conforme o encontro, conforme a circunstância.” E considera que o que a ensinou a amar melhor foi precisamente a sua arte.

“O grande amor que nunca acaba, a grande paixão que ora vai ora vem, é sempre à volta da minha arte. Nunca quis ter filhos, não gosto de viver com ninguém. Não tenho uma vida muito convencional nesse aspeto.” Amar mais não lhe interessa, interessa-lhe amar melhor. A paixão já a cansou. “A minha paixão está toda canalizada para a minha arte. Como amante, sou mais de amar do que de me apaixonar.” Com o tempo, descobriu que o humor é peça fundamental na engrenagem do amor.

As pessoas da sua vida estão todas retratadas neste novo disco. “Eu canto o amor. Se fosse mal amada, cantava na mesma – mas cantava o desamor. Este é o grande disco do grande amor.”

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