Foi um discurso interrompido a meio, mas divulgado na íntegra pelo Vaticano. O Papa Francisco visitou esta sexta-feira o centro paroquial da Serafina, numa das zonas mais empobrecidas da cidade de Lisboa, e proferiu parte do seu discurso focado na luta quotidiana contra a pobreza e na necessidade de “sujar as mãos”. A meio do discurso, porém, justificando-se com dificuldades na leitura por causa dos óculos — num palco com muitos holofotes apontados para Francisco — o Papa interrompeu o discurso e prometeu que o Vaticano o divulgaria na íntegra depois. Antes de terminar, porém, ainda falou de improviso perante utentes e responsáveis de associações sociocaritativas da Igreja Católica. Aqui fica a intervenção completa do Papa Francisco, segundo o texto divulgado pelo Vaticano, incluindo a parte que foi lida, a parte improvisada e a parte que não foi lida.
José Ornelas: “Toda a Igreja tem de mudar, toda a sociedade tem de mudar”
“Queridos irmãos e irmãs, bom dia!
Agradeço ao pároco as suas palavras, e saúdo a todos vós, em particular aos amigos do Centro Paroquial da Serafina, da Casa Família Ajuda de Berço e da Associação Acreditar. E agradeço as vossas palavras, que mostraram o trabalho que se faz. Obrigado. É lindo estarmos aqui juntos, enquanto, no contexto da Jornada Mundial da Juventude, olhamos para a Virgem Maria que Se levanta e vai ajudar Isabel, sua parente idosa. De facto, a caridade é a origem e a meta do caminho cristão, e a vossa presença, realidade concreta de ‘amor em ação’, ajuda-nos a não esquecer a rota, o sentido daquilo que fazemos. Obrigado pelos vossos testemunhos, dos quais quero destacar três aspetos: fazer juntos o bem, agir no concreto — não só com ideias, mas concretamente — e estar próximo dos mais frágeis.
Primeiro, fazer juntos o bem. ‘Juntos’ é a palavra-chave, que ouvi repetir muitas vezes nas vossas intervenções. Viver, ajudar e amar juntos: jovens e adultos, sãos e doentes… juntos. O João disse-nos uma coisa importante: é preciso não se deixar ‘definir’ pela doença, mas fazer dela parte viva do contributo que prestamos ao conjunto, à comunidade. É verdade! Não devemos deixar-nos ‘definir’ pela doença ou pelos problemas, porque não somos uma doença nem um problema. Cada um de nós é um dom, um dom único com os seus limites, um dom precioso e sagrado para Deus, para a comunidade cristã e para a comunidade humana. E, assim como somos, enriquecemos o conjunto e deixamo-nos enriquecer pelo conjunto!
Segundo, agir no concreto. Também isto é importante. A Igreja não é um museu de arqueologia, mas – como nos recordava o padre Francisco, inspirando-se em São João XXIII – é ‘o antigo fontanário da aldeia que dá água às gerações de hoje, como a deu às do passado’. O fontanário serve para matar a sede dos caminhantes que chegam, carregando o peso real e as canseiras concretas do seu caminho! Por conseguinte é necessária concretização, atenção ao ‘aqui e agora’, como aliás já fazeis com o cuidado dos pormenores e sentido prático, belas virtudes típicas do povo português.
Neste momento o Papa Francisco interrompeu o discurso, explicando que, devido a dificuldades com os óculos, não conseguia continuar a ler o texto que tinha escrito. Prometeu, por isso, divulgar publicamente o texto que tinha preparado (que o Observador reproduz de seguida). Antes disso, o Papa Francisco ainda quis, de improviso, deixar uma mensagem final aos presentes:
Apenas gostaria de dizer algo que não está aqui escrito, mas está no espírito. O concreto. Não existe amor abstrato, só amor concreto. O amor platónico está em órbita, não na realidade. O amor concreto, é aquele que suja as mãos. E podes perguntar-nos: e o amor que eu sinto por todos? É concreto ou abstrato? Quando dou a mão a um necessitado, a um doente, a um marginal, eu depois posso dar a mão a outras pessoas e, sem medo de contágio, tenho nojo da pobreza? Estou sempre a procurar uma vida limpa, destilada, essa que existe na minha fantasia, mas que não é real? Quantas vidas destiladas e inúteis que vivem sem deixar marca porque a vida destilada não tem peso?
E aqui temos uma realidade que deixa marca, uma realidade de muitos anos que está a deixar uma marca que inspira os outros. Não poderia existir uma JMJ se não tivéssemos em conta esta realidade, porque isto também é juventude. Vós gerais vida continuamente e isso é feito com o vosso compromisso, com o facto de sujarem as mãos e de gerar vida. Agradeço-vos de todo coração por isso. Continuem, não desanimem. E, se desanimarem, bebam um copo de água e continuem.
“Os meus óculos não estão a funcionar.” Papa larga o papel e improvisa
Segue-se a continuação do texto previamente preparado pelo Papa, segundo a tradução oficial do Vaticano:
Quando não se perde tempo a lamentar-se da realidade, mas se tem a preocupação de ir ao encontro das carências concretas, com alegria e confiança na Providência, acontecem coisas maravilhosas. Assim o testemunha a vossa história: do encontro com o olhar de um idoso na rua, nasce um centro de caridade ‘de todo o respeito’, como este em que nos encontramos; de um desafio moral e social qual é a ‘campanha pela vida’, nasce uma associação que ajuda grávidas e sua família, crianças, adolescentes e jovens em dificuldade, para encontrarem um projeto de vida seguro, como nos contou Sandra; da experiência da doença nasce uma comunidade de apoio a quem luta contra o cancro, especialmente crianças, de modo que ‘os progressos no tratamento e a melhor qualidade de vida se tornem realidade para eles’, como nos disse o João.
Obrigado pelo que fazeis! Continuai com mansidão e gentileza a deixar-vos interpelar pela realidade, com as suas pobrezas antigas e novas, e a responder de forma concreta, com criatividade e coragem. O terceiro aspeto: estar próximo dos mais frágeis. Todos somos frágeis e necessitados, mas o olhar feito de compaixão, próprio do Evangelho, leva-nos a ver as necessidades de quem mais precisa. Leva-nos a servir os pobres, os prediletos de Deus que Se fez pobre por nós (cf. 2 Cor 8, 9): os excluídos, os marginalizados, os descartados, os humildes, os indefesos. São eles o tesouro da Igreja, são os preferidos de Deus!
E recordemo-nos sempre de não estabelecer diferenças entre eles; de facto, para um cristão, não há preferências face a quem, necessitado, bate à nossa porta: compatriotas ou estrangeiros, pertencentes a este ou àquele grupo, jovens ou idosos, simpáticos ou antipáticos… A propósito de caridade, quero agora contar-vos uma história, especialmente a vós, crianças, que talvez não conheçais. É a história real dum jovem português que viveu há muito tempo. Chamava-se João Cidade e habitava em Montemor-o-Novo. Sonhava com uma vida aventureira; por isso, adolescente ainda, partiu de casa à procura da felicidade.
Achou-a depois de vários anos e muitas aventuras, quando encontrou Jesus. E ficou tão contente com a descoberta que até decidiu mudar o nome, chamando-se a partir de então, não João Cidade, mas João de Deus. E fez uma coisa ousada: foi pela cidade e começou a pedir esmola pelas ruas, dizendo às pessoas: ‘Fazei bem, irmãos, a vós mesmos!’ Compreendeis? Pedia a esmola, mas dizia a quantos lha davam que, ajudando-o a ele, na realidade estavam a ajudar antes de mais nada a si próprios!
Ou seja, explicava que os gestos de amor são um dom primariamente para quem os cumpre, antes mesmo de o serem para quem os recebe; porque tudo o que se acumula para si mesmo perder-se-á, enquanto aquilo que se dá por amor nunca se desperdiça, mas será o nosso tesouro no céu. Por isso dizia: ‘Fazei bem, irmãos, a vós mesmos!’ Porém o amor não torna felizes só no céu, mas já aqui na terra, porque dilata o coração e permite abraçar o sentido da vida. Se queremos ser verdadeiramente felizes, aprendamos a transformar tudo em amor, oferecendo aos outros o nosso trabalho e o nosso tempo, dizendo palavras edificantes e realizando boas ações, mesmo com um sorriso, com um abraço, com a escuta, com o olhar.
Queridos adolescentes, irmãos e irmãs, vivamos assim! Todos podemos fazê-lo e disto mesmo todos precisamos, aqui e em qualquer lugar do mundo. Sabeis o que aconteceu depois a João? Não o entenderam! Pensavam que estava maluco e fecharam-no num manicómio. Mas ele não se desmoralizou, porque o amor não se arrende e quem segue Jesus não perde a paz nem se põe a lamentar a sua sorte. E foi precisamente lá, no manicómio, carregando a cruz, que chegou a inspiração de Deus. João deu-se conta de quanto aqueles doentes precisavam de ajuda e, quando finalmente o deixaram sair, depois de alguns meses, começou a cuidar deles com outros companheiros, fundando uma Ordem Religiosa: os Irmãos Hospitaleiros
Alguns, porém, começaram a designá-los doutro modo, ou seja, com as palavras ‘fazei bem, irmãos…’ que aquele jovem ia repetindo a todos. Assim são chamados em Roma: Fatebenefratelli. É um belo nome, e um ensinamento importante! Ajudar os outros é um dom para si próprio e faz bem a todos. É verdade! Amar é um dom para todos! Recordemo-nos: ‘O amor é um presente para todos!’ Vamos repetir juntos: o amor é um presente para todos! Amemo-nos assim! Continuai a fazer da vida um presente de amor e de alegria. Fico-vos grato e recomendo a todos, mas especialmente às crianças: continuai a rezar por mim.
Obrigado!”