O desporto usurpou a expressão “não se fazem omeletes sem ovos “, mas, porventura, há feitos igualmente difíceis de cozinhar sem matéria prima. Quando Patrice Lagisquet assumiu o cargo de selecionador nacional, em 2019, atiraram-lhe para as mãos um conjunto de médicos, advogados, designers e estudantes e pediram ao treinador que, com isso, fizesse uma equipa de râguebi bem sucedida. O desafio foi aceite, mas as garantias para o desempenho ser positivo eram poucas.
Os portugueses, por culpa da biologia, não têm as medidas mais adequadas ao jogo de râguebi. “Somos rápidos e bons tecnicamente, mas não temos aqueles jogadores de dois metros, pilares de 130 kg”, tinha contado o antigo internacional português, Pedro Leal, conhecido pela baixa estatura, ao Observador. Não conseguindo esticar os jogadores para se bater de frente com seleções mais poderosas fisicamente, Patrice Lagisquet teve que adaptar o estilo dos Lobos à ferramentas que tinha nas mãos.
“Os jogadores portugueses estão muito empenhados, adoram râguebi e são muito bons jogadores de râguebi”, disse Patrice Lagisquet ao World Rugby. “Eles gostam de criar espaço e de jogar com muita velocidade. Não estão acostumados a lutar nos avançados, não são especialistas na formação ordenada e no maul. É muito diferente do râguebi profissional em França”.
Patrice Lagisquet assumiu desde o início que a Seleção portuguesa era um projeto a quatro anos. O objetivo principal passava então pelo apuramento para o Mundial 2023 em França. A meta esteve perto de não ser alcançada. Graças a um castigo aplicado a Espanha, Portugal teve o direito de deslocar-se ao Dubai para jogar o torneio de repescagem. Depois dos Lobos terem vencido Hong Kong e Quénia, o adversário que se seguiu foram os EUA, adversário perante o qual bastava um empate para a equipa portuguesa seguir em frente. Uma penalidade marcada por Samuel Marques no último lance do jogo qualificou Portugal para o maior torneio da modalidade e valeu o cumprir de uma missão que chegou a ser dada como falhada.
“Desde o início que trabalhámos para isto. Disse-lhes que se trabalhássemos como verdadeiros profissionais poderíamos ter sucesso. Eles aceitaram as regras, treinámos ainda mais duro estas duas últimas semanas e isso foi decisivo para esta qualificação”, contou Lagisquet quando conseguiu o objetivo a que se tinha proposto quando, em 2019, rendeu Martim Aguiar no cargo de selecionador. Diante das Ilhas Fiji, no último jogo de Portugal no grupo C do Campeonato do Mundo, o treinador francês vai realizar o último jogo ao serviço dos Lobos. Segundo o presidente da Federação Portuguesa de Râguebi, Carlos Amado da Silva, esta era uma decisão que estava tomada antes da competição mesmo que só tenha sido anunciada em vésperas do encontro que encerra a segunda participação de sempre da seleção nacional no Mundial.
Antes de pisar o maior palco da modalidade com as cores nacionais, o desejo de Patrice Lagisquet era que Portugal fosse “uma equipa apaixonante, que as pessoas apoiam porque gostam da forma como eles jogam, se empenham e conseguem criar coisas incríveis durante o jogo”. A prestação da Seleção Nacional, sem grandes obrigações perante adversários totalmente profissionais, não podia ter correspondido mais às expectativas. Fica na retina a forma intensa como os jogadores cantaram o hino na estreia na prova, contra o País de Gales, o desempenho no empate diante da Geórgia e a maneira como venderam cara a derrota face à poderosa Austrália. Tudo isto perante estádios cheios de portugueses.
Numa atitude típica dos eternos insatisfeitos, Lagisquet não se coibiu de usar palavras duras para caracterizar alguns momentos negativos de Portugal ao longo da competição que, caso não tivessem acontecido, até podiam ter feito dos Lobos protagonistas fora do guião. O lado mais emotivo do treinador chegou a considerar que os jogadores foram “muito envergonhados” ou que a exibição foi “muito pobre”. Apesar de tudo, terminou sempre as intervenções após os jogos dizendo-se “orgulhoso” dos jogadores.
Ter o coração na boca esteve longe de ser uma característica negativa ao longo da campanha portuguesa em França. Portugal saiu a perder para o intervalo contra a Geórgia naquele que era um jogo assinalado no calendário para tentar a primeira vitória no Mundial. “O Patrice, para além do discurso mais tático e técnico, deu-nos um discurso motivacional que foi importante”, contou Raffaele Storti, jogador que joga em França atualmente devido à ajuda de Lagisquet, ao Observador em relação ao que se passou no balneário entre a primeira e a segunda parte. Não é de estranhar que ali o técnico tenha elevado o tom de voz. A consequência foi uma subida de rendimento e um resultado histórico para Portugal que empatou o encontro e pela primeira vez não perdeu um jogo do Mundial.
A onda de entusiasmo em torno dos Lobos tem uma justificação que se prende com a maneira como a equipa se apresenta em campo, muito influenciada pelo passado de Lagisquet. “O râguebi que gosto mais de ver é a atual França ou a Nova Zelândia. Daí Portugal ter apreciado um treinador francês que é um treinador extraordinário. Patrice Lagisquet mudou completamente o râguebi em Portugal”, disse Carlos Amado da Silva no programa “Nem Tudo o que Vai à Rede é Bola” da Rádio Observador. “É um jogo muito mais atrativo, muito mais espetacular e, se calhar, mais arriscado. Se calhar, não se pode jogar assim a um certo nível, admito que não. Mas, como espetáculo, de facto, aquilo que Portugal faz neste momento é um râguebi maravilhoso. Isso aí não há nada a dizer. Damos espetáculos fantásticos. Agora, claro, temos limitações. Não temos a capacidade de choque que têm as outras equipas. Em termos de jogo jogado, de beleza, de três quartos, de jogo à mão, de rapidez de execução, somos uma equipa exemplar, ao nível das melhores”.
É caso para dizer que o estilo de jogo de Portugal tem dedo de Patrice Lagisquet. Nascido em França, em 1962, motivo pelo qual não canta “A Portuguesa”, o agora treinador foi internacional pela seleção gaulesa, tendo marcado 20 ensaios nas 46 internacionalizações que realizou com os bleus. O ponta era conhecido pela sua velocidade e, por isso, começou a ser chamado de Expresso de Bayonne. No meio desportivo, diz-se que, ao longo da carreira como jogador, Lagisquet corria 100 metros em 10.2 segundos, recorde de mundial de atletismo nessa altura.
A alcunha de Express de Bayonne surgiu quando Lagisquet representava o Remo Bayonne, clube onde passou dez anos. Seguiu-se o Biarritz Olympique, onde, após terminar a carreira como atleta deu início ao percurso como treinador. A jogar ao serviço da França, Lagisquet esteve presente em dois Mundias, tendo sido finalista vencido em 1987. Antes de se tornar treinador principal de Portugal, o técnico de 61 anos foi também assistente da seleção francesa.