Projeto aprovado em 2018 por Penelope Curtis, diretora do Museu Gulbenkian até agosto de 2020, a exposição O calígrafo ocidental: Fernando Lemos e o Japão encontrou na abertura do novo Centro de Arte Moderna, sob projeto de arquitetura do nipónico Kenzo Kuma, a ocasião ideal — um autêntico ouro sobre azul mas todo a negro e branco ou prata, a condizer… — para mostrar uma faceta do artista português radicado no Brasil desde meados de 1953 que ainda faltava conhecer e valorizar, seis anos depois de o Museu da Moda e do Design ter exibido pela primeira vez a sua notável obra de designer, em Portugal praticamente desconhecida até então.
Com esta nova exposição, o catálogo co-editado com a Tinta da China, o magnífico “livro de artista” deixado inédito, com negativos fotográficos, Japão, ou a intervenção de Alexandra Curvelo no sábado dia 21 de setembro, e — mais ainda — a exposição que a Biblioteca de Arte inaugura a 11 de Outubro, mostrando uma escolha do espólio do artista à sua guarda, sai também destacado o papel histórico da Fundação Calouste Gulbenkian no apoio a viagens de estudo a artistas portugueses, em particular nas primeiras décadas da sua atividade.
No caso, com um adicional relevante: no verão de 1962, quando a bolsa para um semestre no Japão foi concedida a Fernando Lemos (1926 – 2019), ele era figura não grata ao regime salazarista vigente, porquanto colaborador gráfico do jornal oposicionista Portugal Democrático e capista habitual da editora política, também de São Paulo, de Victor Cunha Rego e Ivone Felman. É aliás dele o retrato de João Sarmento Pimentel posto na capa das Memórias do Capitão, lançadas em 1963 e um dos primeiros livros proibidos a ser impresso em Portugal depois de abril de 1974. No ano anterior, 1962, fundara naquela cidade uma editora infanto-juvenil com Sidónio Muralha, um dos nossos primeiros neo-realistas, e Fernando Correia da Silva, também escritor e oposicionista exilado.
Constrangimentos políticos não afetaram, portanto, a boa decisão do Serviço de Belas Artes da FCG, nem o seu diretor Artur Nobre de Gusmão (1920-2001), que reconheceu em Lemos um bom candidato para cumprir e aproveitar as facilidades a conceder, transbordando para o seu trabalho artístico o novo apogeu da arte caligráfica japonesa posta em evidência, havia pouco, por figuras de vanguarda como Yuichi Inoue (1916-85) e Yukei Teshima (1901-87). Proporcionar contactos diretos, e trabalho oficinal, a um artista português no país altamente sofisticado que, quatro séculos antes, descobridores lusos haviam expurgado dum isolacionismo radical, tem traços da mais deliberada contemporaneidade duma instituição cultural que, sem alaridos, discretamente levava muito a sério o seu papel estruturante e decisivo.
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Antes disso, do lado de lá do Atlântico, Lemos aproveitara muito bem o convívio com pintores japoneses — a alguns dos quais, note-se, como Tomie Ohtake (Kyoto, 1913 — São Paulo, 2015) dedicou poemas do seu primeiro livro brasileiro — e o magistério crítico de Mário Pedrosa (1900-81), à época presidente da Associação Brasileira de Críticos de Arte, que havia passado, ele também, uma temporada em Tóquio a investigar a arte contemporânea japonesa. Se já exibido, ou impresso, o documento de candidatura à bolsa de estudos, guardado nos Arquivos da Fundação, com as abonações do artista por figuras de destaque da vida paulista, teria permitido verificar quão considerado era Fernando Lemos no meio artístico em que em menos de uma década se integrara, como pé em sapato feito sob medida.
Alguns dos seus mais conseguidos “desenhos abstratos” a nanquim, datados de 1956-61, já evidenciavam uma aproximação, que a viagem irá sublimar. Ilustrações a nanquim para literatura no reputado suplemento cultural d’O Estado de São Paulo são feitas por esses anos, e a exposição mostra-nos algumas, porém sem o poderoso efeito do facsímile da página impressa em grande formato e sem a datação precisa que assim se fixaria (uma falha da investigação ou curadoria que não escapa, em particular, a quem um dia — quase noutra vida — teve oportunidade de folhear essa publicação).
O Japão mudou Lemos? É de acreditar que sim. Encheu-lhe “os olhos e a alma”, como escreve, à guiza de relatório informal, a Artur Nobre de Gusmão, a 21 de julho de 1963. Dois anos depois dessa viagem, o artista ganhou um “prémio da Bienal Internacional de São Paulo [de 1965] com pinturas em preto e branco resultantes de suas experiências obtidas na impactante visita ao Japão”, diz Nakagawa à p. 56 do catálogo, muito embora as obras em causa não sejam identificadas e dadas a conhecer, ainda que em fotografia. Imafuku, claramente surpreendido, afiança-nos, porém, que “alguns dos trabalhos caligráficos de Fernando Lemos com tinta da china e acrílico sobre papel Japão apresentam uma semelhança impressionante com os desenhos de Henri Michaux [1899-1984], especialmente aqueles realizados na década de 1950” (p. 64), e proclama-o como “cometa” (sic) duma grande “nebulosa da caligrafia”, ou “imaginação caligráfica”, que flui “pela fértil escuridão da imaginação humana, do passado ao futuro”.
A bolsa da Gulbenkian teve duas consequências imediatas, que O Calígrafo Ocidental não destaca suficientemente: a privilegiada presença de Fernando Lemos no Japão permite-lhe integrar a equipa da representação brasileira na V Tokyo Trade Fair em maio do mesmo ano, na excecional condição de autor do projeto visual do pavilhão concebido pelo arquiteto Manoel Kosciusko Correa, tarefa que desempenhará prodigiosamente, levando Chico Homem de Mello a escrever que “acabou criando um quase-logótipo para o país que adoptou” (Fernando Lemos Designer, 2019, p. 56; foto cat. p. 16).
A excelência dessa criação — e trabalhos do mesmo tipo então feitos para a VARIG e o Instituto Brasileiro do Café — foi reconhecida e no ano seguinte Lemos foi chamado pelo ministro das relações exteriores do Brasil a voltar ao Japão para participar no projeto dum centro cultural em Hakone, à vista do Monte Fuji, concebido por Kosciusko Correa e Wilson Reis Neto (1925-2001), um arquiteto do ateliê de Oscar Niemeyer, que lhe atribuem a conceção dum extenso vitral para uma “Capela Universal” (p. 16), que não viria a ser construída devido a mudança política no governo local.
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A caligrafia japonesa não terá sido esquecida, e embora Rosely Nakagawa registe na biografia de Lemos a sua comunicação “Estrutura plástica e gráfica da caligrafia” a um impactante colóquio Brasil-Japão, realizada pouco depois na Universidade de São Paulo, a verdade é que o texto não consta do espólio do artista conservado pela Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian, e Eurípides Simões de Paula, num minucioso “Relatório sobre o Colóquio Brasil-Japão (25-17 de julho de 1966)” (Revista de História, vol. 33, n.º 67, pp. 189-99), nada diz sobre uma intervenção de Fernando Lemos.
Além disso, como demonstram as “Cartas de São Paulo” que escreveu para a revista Colóquio / Artes a partir de 1971, o espectro da sua atenção de artista sobre a obra dos seus pares é — na virtude e nos logros ou embustes das suas múltiplas expressões artísticas, de que a época foi bem fértil — duma contemporaneidade em toda a linha, mas é impossível reconhecer um foco evidente ou contínuo na arte caligráfica japonesa ou uma atenção particular à obra de artistas, arquitetos ou cineastas nipónicos.
Só em dezembro de 1979 se referirá à pintora Tomie Ohtake e “à sua já sedimentada obra de serena urdidura pictórica, que lhe é natural como japonesa” (n.º 43, 2.ª série, p. 60). “O objecto / a árvore”, sobre o patrício Joaquim Tenreiro, marceneiro e designer de mobiliário (1906-92), no n.º 20, de dezembro de 1974, p. 72, é de tudo o que ali escreveu o que mais se aproximará dos velhos ofícios sublimados pela civilização japonesa. Mesmo quando, muitos anos depois, na sua incessante deriva criativa e experimental o desenho é já toda uma outra coisa, Lemos continuou a saber tirar partido dos excelentes papéis japoneses washi, como se vê nas sequências das pp. 213-25 e 228-30, ou da intensidade da tinta da china (v. p. 337).
Sob outras influências, comunicadas nas bienais da cosmopolita metrópole paulista, como a do abstracionismo norte-americano (a que as vanguardas nipónicas então se associavam), é também a sua pintura que muda de rumo, e de formatos — e a fotografia também muda, pois a sombra ganha então uma presença que não tinha no portefólio “surrealista” lisboeta ou nos retratos dos seus primeiros anos no país tropical. As curadoras Leonor Nazaré e Rosely Nakagawa confrontam a japonesa Dois repousos livres (um banco de madeira e uma pedra) de Lemos (cat. pp. 288-89) com a série Nuit de Lisbonne de Heiichi Tahara (1951-2017), da coleção CAM/FCG, mas é na inteira galeria de 200 fotografias do Japão em 1963 que hoje pertencem ao Instituto Moreira Salles — e de que se expõe em Lisboa apenas um quinto — que importa descortinar esse deslocamento.
Fernando Lemos, aliás, que tudo imprimiu em provas de contacto ainda no Japão, só muito depois transferiu todo esse portefólio, à época inédito em fotógrafos portugueses (estamos, afinal, a mais de meio século de Uma Viagem pela Memória e pela Paisagem do Japão dos arquitetos Eliana Sousa Santos e Tiago Silva Nunes, ed. Dafne, Porto, 2021…), para a idealização — radicalmente experimental — dum “livro de artista” em que os seus registos japoneses dessa primeira viagem permanecem nesse invertido cromático, à maneira de reminiscências oníricas que o tempo esbateu. Esse livro (35 € na loja do CAM) pode ser considerado, do meu ponto de vista, a melhor herança desta nova campanha de reconhecimento da originalidade plástica de Fernando Lemos e da sua curiosidade artística pelo Japão, ao qual voltou em “missão cultural” proporcionada por Mário Soares em 1977 a pretexto dos biombos nanbam num grande museu em Nagasaki — algo que, todavia, não lhe proporcionaria convite para criar um para a exposição itinerante Biombos dos Portugueses, uma iniciativa da Comissão dos Descobrimentos em 2000, que teve participação de José de Guimarães, Pedro Proença, João Vieira, António Palolo, Carlos Carneiro, Graça Morais e António Viana.
A exposição e o catálogo exibem e estimulam eventuais “conversas” entre fotografias, pinturas, aguarelas e desenhos de Fernando Lemos com muitas estampas japonesas da coleção de Calouste Sarkis Gulbenkian (retomando uma mostra de 2023 na Fundação), que viveu em plena moda de japonismos, e trabalhos de artistas portugueses, como as caligrafias de Ana Hatherly, ou, por exemplo, do chinês-francês Zao Wou-Ki (1984; cat. p. 139), pertencentes ao Centro de Arte Moderna. Exercício arriscado sem dúvida, porém indubitavelmente apelativo e estimulante, como julgo que agradaria a Lemos, e que cada visitante aproveitará e ajuizará a seu modo — sem obedecer a tutelas críticas de qualquer espécie, sentido e propósito (escondido mas com rabo de fora).