No passado dia 18 de Janeiro decorreram 85 anos sobre os acontecimentos revolucionários que, entre nós, culminaram a efervescência comunista, especialmente vigorosa durante a segunda metade do ano de 1933. Não me apercebi de qualquer referência mediática significativa à efeméride pelo que resolvi discorrer um pouco sobre o que realmente aconteceu… e a mitificação que ficou para a história. Na manipulação do relato “ajustado” à tendência hegemónica do PCP, a narrativa dos acontecimentos relacionados com a tentativa da greve geral de então ficou circunscrita quase por inteiro à Marinha Grande. E embora reconhecendo que o processo revolucionário não atingira os objectivos inicialmente ambicionados, os escribas comunistas não hesitaram em afirmar, para memória futura, que o 18 de Janeiro não fora uma derrota da “classe operária”, mas uma clara vitória do PCP.
O ano de 1933 fora um marco importante na cena política nacional e, igualmente, na internacional. Em Portugal, fora votada e aprovada uma nova Constituição e inaugurado um novo enquadramento político – o Estado Novo. Pela primeira vez, mulheres iam poder votar e ser eleitas. Quer católicos quer nacionais-sindicalistas agitavam-se e ajeitavam-se, cindidos pelo vórtice centrípeto do regime. As forças oposicionistas à Situação, congregadas naquilo a que se usava chamar o Reviralho, continuavam a conspirar, indecisas entre a insistência nas fracassadas tentativas do modelo do pronunciamento militar e a sublevação civil, eventualmente catalisada pela erupção de movimentos grevistas generalizados.
No Reviralho, marcavam a agenda figuras de proa como Norton de Matos, António Ribeiro de Carvalho, Cunha Leal e mesmo alguns “despeitados” da Situação como José Vicente de Freitas. Na extrema-esquerda, as várias facções comunistas, articuladas com as suas centrais internacionais, lutavam pela sobrevivência, não hesitando em se denunciar mutuamente. Alheia a essa agitação, paulatinamente, “a ditadura – instituição anónima de responsabilidade limitada – desapareceu lentamente, para dar lugar ao Estado Novo corporativo”, como afirmou António Seabra.
Em Espanha, estupefactos e melindrados pela perda de influência decorrente da derrota eleitoral de Novembro daquele ano, os socialistas, nomeadamente as suas alas maçónicas e “maximalistas”, preparavam a retoma do poder por via revolucionária. Mais predispostos à “acção directa”, os anarquistas tinham produzido dois levantamentos (em Janeiro e em Dezembro de 1933) que haviam provocado quase duas centenas de mortos. Mas, alicerçada na legitimação pelo voto popular, a Espanha regressava inquestionavelmente à direita. A mesma viragem política se verificara na Holanda, instigada por um longínquo motim, aparentemente comunista, no navio de guerra De Zeven Provinciën, em águas da sua colónia indonésia. Na Alemanha, Adolf Hitler fora nomeado chanceler do Reich alemão e, pouco depois, ganhara as eleições com uma votação avassaladora. Ao lado, o social-cristão Engelbert Dollfuss, o chanceler austríaco, sob a pressão insurreccional dos comunistas e das milícias socialistas do Schutzbund, assumira poderes ditatoriais até vir a ser assassinado, no ano seguinte, pelos nacionais-socialistas, cujo partido ilegalizara no país. Em França, a instabilidade política originara a formação e queda sucessiva de cinco governos de coligação.
Nos Estados Unidos, Roosevelt tomara posse como presidente, iniciando o pacote legislativo do New Deal com o intuito de fazer sair o país da Grande Depressão que o crash bolsista de 1929 provocara. Enquanto na América do Sul prosseguia a guerra do Chaco, com a Bolívia e o Paraguai em pé-de-guerra, na China, o Kuomintang, o partido nacionalista chinês de Chiang Kaichek, fundado por Sun Yatsen, tentava subjugar os insurrectos comunistas de Máo Zédōng, lançando sucessivas ofensivas militares, com centenas de milhares de homens sobre os santuários comunistas no Sul. Entretanto, tirando partido da guerra civil chinesa, o Japão ia ocupando algumas zonas costeiras como, por exemplo, a província de Hebei.
Um pouco mais próximo de nós, no norte do reino do Iraque, milhares de cristãos caldeus tinham sido massacrados por tropas árabes, secundadas por turbamultas curdas e yazidis, perante a total indiferença da presença militar inglesa e francesa que, para cúmulo, até os haviam previamente desarmado. No Leste da Europa, o primeiro-ministro da Roménia, Ion Duca, resolvera ilegalizar o movimento fascizante Garda de Fier, também conhecido como Legião de São Miguel Arcanjo, acaudilhado por Corneliu Codreanu. A repressão fora violenta e levara à morte de muitos militantes da Guarda de Ferro. Ao cair do ano, em desespero e vingança, alguns dos seus elementos assassinaram Duca. Mesmo ao lado, na Ucrânia, abrandara finalmente o Holodomor, o genocídio do povo ucraniano, ordenado por Estaline em 1932 para erradicar o sentimento nacionalista, presente sobretudo entre os camponeses. Para o seu extermínio, por fome provocada, Estaline tinha montado um elaborado esquema burocrático de terror generalizado que levou à morte de cerca de seis milhões de seres humanos, mormente ucranianos e cazaques.
Em 29 de Agosto de 1933, o governo português decidira fundir a PDPS (Polícia de Defesa Política e Social) e a Polícia Internacional, criando a PVDE – Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, mantendo-a sob a tutela orgânica do Ministério do Interior, embora na dependência funcional da Presidência do Conselho de Ministros. Na decorrência, foi redefinido o regime conceptual e processual dos crimes políticos a julgar nos Tribunais Militares Especiais, bem como o papel instrutório a desempenhar pela nova organização policial. Mas ainda antes da sua extinção formal, na prossecução das suas actividades preventivas e repressivas sobre os meios revolucionários, no início desse Verão, a PDPS detivera Fernando Quirino, membro do comité executivo da Federação das Juventudes Comunistas, a par de Pável (Francisco de Paula Oliveira).
Quirino, serralheiro mecânico de profissão, fora o primeiro militante comunista português a frequentar a Escola Internacional Lénine, em Moscovo. Estivera na Rússia cerca de 17 meses, muito além dos normais quatro a seis meses da frequência daquela academia de apparatchiks da Komintern. Pela informação que a polícia lhe arrancou, a investigação posterior levou a outras apreensões e prisões, entre as quais a de Manuel Guedes, um jovem grumete que veio a descobrir-se ser um dos responsáveis pela Organização Revolucionária da Armada – ORA, uma excrescência do partido comunista de que a polícia só tinha tido conhecimento indirecto através do seu órgão escrito O Marinheiro Vermelho. Ainda nesse ano de 33, por via de uma denúncia, seriam capturados mais dois funcionários do PCP, Pedro Baptista da Rocha e o ex-arsenalista Rodrigo Ollero das Neves. Da vultuosa documentação apreendida, a polícia depreendeu que tinham acabado de fazer um périplo pela região Oeste, onde haviam constituído o respectivo comité regional, sediado na Marinha Grande, com os principais responsáveis da organização clandestina do partido ali residentes, António Guerra, José Gregório e Manuel Domingues.
O novo regime procurava criar raízes que segurassem solidamente o regime implantado pelo 28 de Maio. A Constituição aprovada apresentava já um modelo pró-corporativo, até com alguns conceitos e estruturas esteticamente decalcados do fascismo de Mussolini, na emulação dos corpos intermédios das doutrinas organicistas que procuravam romper com a perspectiva e praxis jacobinas, que apenas admitiam uma relação directa entre o indivíduo e o Parlamento, considerado o centro do aparelho do poder. A República corporativa reclamava assentar os seus alicerces nos elementos estruturais da nação: a família, as autarquias e os organismos intermediários, vocacionados para conciliar dialecticamente interesses sociais e económicos potencialmente opostos e mitigar assim a agitação social e política característica do regime da primeira República. Mas o corporativismo à portuguesa, se por um lado recolhia influências do pensamento social da Igreja, não desenvolveu a ordem corporativa das bases sociais, antes se inspirando nos lamirés intervencionistas do “socialismo de cátedra” bismarckiano, ou de Oliveira Martins, o seu discípulo local, com a ênfase no “estatismo” e o seu Estado-Providência. Rolão Preto, por exemplo, negou o seu apoio ao projecto da nova Constituição porque via nela um compromisso com os princípios liberais e a recusa do corporativismo integral.
A 21 de Abril de 1929 tinha-se realizado na Amadora uma reunião plenária, um “Pleno” como então se dizia, juntando, à revelia da maioria da comissão executiva saída do II Congresso do PCP, o grupo arsenalista de Bento Gonçalves e um ou outro membro daquela, como Manuel Pilar, com a pequena rede dos aliciados pelo brasileiro Júlio César Leitão. Contestavam veementemente a orientação do partido, dominado por Augusto Machado, e pugnavam pela instauração de um governo operário. Naquela reunião tinham ficado estabelecidas as primeiras regras conspirativas, como o uso de pseudónimos e o sistema de encontros, na construção do novo aparelho clandestino do partido, circunscrito inicialmente à região de Lisboa. A base seria a célula de rua (com três a sete elementos), sob o controlo directo de um membro que faria parte de um comité de zona. O conjunto destes seria hierarquicamente controlado por um comité regional. Com a nomeação do secretário-geral arsenalista Bento António Gonçalves, de Júlio César Leitão, de Manuel Pilar, de Francisco Martins e de Daniel Neto Batalha para o comité central executivo da nova estrutura, foi dado o impulso para uma nova fase na vida da secção portuguesa da Komintern, contando igualmente com a colaboração de um espanhol de apelido (ou pseudónimo) González.
José de Sousa, entretanto readmitido no trabalho do partido depois de reabilitado pela Internacional Comunista, retomou a liderança da intervenção sindical, procurando expandir a influência da Internacional Sindical Vermelha junto das organizações de trabalhadores, remetidas pela política social da Ditadura à quase semiclandestinidade. Com os novos ventos que sopravam de Moscovo, procuraram acabar com a resiliente pulsão da revolução imediata, subjacente à “aliança operário-camponesa”. Começara o período da “resistência antifascista”, lançando mão de tudo o que fosse útil para a afirmação do poder do PCP, mesmo que pudesse parecer que haviam vendido a alma ao diabo burguês. Obediência cega, disciplina rigorosa, compromisso militante iam marcar a vida de um aparelho partidário clandestino quase renascido das cinzas. E sobretudo uma fidelidade canina a Moscovo, onde já campeava o estalinismo e onde os partidos comunistas satélites passaram a ser vistos, de facto, como meras secções regionais do todo-poderoso PCUS. Para trás ficava o comunismo como o caminho mais curto para a revolução mundial.
A nova metodologia comunista impunha que, além da táctica das “frentes unitárias”, circunscritas essencialmente ao âmbito sindical, havia que procurar um relacionamento político com todos os partidos que se opusessem ao “fascismo”, definido sinteticamente como a “ditadura terrorista do grande capital”. Na receita, não faltou a prescrição do “como fazer” para que, num curto espaço de tempo, os partidos comunistas passassem a dominar e controlar a estrutura “frentista” eventualmente criada. Dimitrov, cabecilha da Komintern, apresentara também a táctica, a que chamou de “cavalo de Tróia”, em que defendeu a entrada de agentes do partido nas estruturas de base social formadas pelas “massas atraídas pelo fascismo”, onde, dizia, estava o seu verdadeiro calcanhar de Aquiles. Tornava-se importante actuar nessas organizações, penetrando-as e trabalhando-as, como eram o caso das Deutsche Arbeitsfront nacional-socialistas, das Corporazioni Sindicali fascistas ou dos Sindicatos Nacionais portugueses. Não se deviam rejeitar os equivocados partidários do fascismo, o “irmão da camisa negra”, na linguagem cínica dos comunistas italianos, ou o “legionário honesto”, no jargão dos seus camaradas ortodoxos portugueses.
Mas em Portugal, como seria de esperar, as várias estruturas do movimento sindical reagiam muito mal à conversão forçada das suas organizações de classe “nos sindicatos nacionais” do Estado Novo. Quer a anarco-sindicalista Confederação Geral do Trabalho (CGT) quer a Comissão InterSindical (CIS), afecta ao PCP e à Profintern, a Internacional Sindical Vermelha (ISV), quer a Federação das Associações Operárias (FAO), de tendência socialista, e mesmo alguns sindicatos autónomos, como os Sindicatos dos Jornalistas, do Pessoal da Imprensa Nacional, dos Telefones e dos Ferroviários, pressionados todos pelos seus militantes de base, predispuseram-se a unir esforços para resistir ao estipulado no Decreto-Lei n.º 23 048, de 23 de Setembro de 1933. Na CIS, dirigida por José de Sousa, estavam agregados os Sindicatos dos Arsenalistas da Marinha e do Exército bem como os Sindicatos dos Alfaiates, dos Cortadores de Carnes Verdes, dos Portuários de Lisboa, com os Sindicatos dos Conferentes Marítimos, dos Estivadores, dos Catraieiros, dos Descarregadores, e pouco mais. A FAO juntava a Associação de Classe dos Fragateiros de Lisboa, a Associação dos Caixeiros de Lisboa e alguns agrupamentos de classe do Porto e do Alto Alentejo.
A Comissão Confederal da CGT, para cavalgar a convulsão sindical que se avizinhava, aprovou um detalhado plano de intervenção, gerido por um comité de acção, e autorizou o secretariado confederal, composto por Mário Castelhano, José Francisco e Manuel Henriques Rijo, a contactar e a acordar com outros grupos sindicais e políticos um guião para a insurreição geral. Quase todos anuíram; apenas a CIS do PCP manifestou reservas, dispondo-se, contudo, a participar numa comissão de coordenação. Como salientaria Emídio Santana, dessa forma tomaria conhecimento das acções previstas pelos outros enquanto se reservava, na insurreição, para os objectivos e interesses próprios.
Por sugestão da CGT acordaram todos a preparação de uma greve geral insurreccional para meados de Novembro, coordenada e sincronizada com um previsto levantamento militar organizado pelo major Sarmento de Beires. Para preparar o arsenal da revolta, os anarco-sindicalistas chamaram a si o habitual fabrico de bombas que, em grande parte, foram montadas em oficinas clandestinas da Cova da Piedade. A polícia, alertada por um anormal fluxo de dicas dos seus informadores, começou a investigar e, em Outubro, o próprio presidente do Conselho, sempre tão reservado, numa entrevista ao Diário de Notícias, publicada em 20 de Outubro de 1933, admite haver uma agitação fora do comum, “conduzida por grupos e grupinhos, com o apoio dos comunistas”. E a 19 de Novembro, na véspera da data em que a polícia cria estar aprazada a “revolução”, são detidas preventivamente várias figuras da Oposição, nomeadamente Sarmento de Beires.
Contudo, a conjura prosseguirá, centrada essencialmente nas organizações sindicais, sendo reagendada a eclosão do levantamento operário para meados de Janeiro de 1934. Mas a repressão da polícia não parava e o regime deteve vários dirigentes da CGT, entre eles Acácio Tomás de Aquino, do comité de acção, e José Francisco, do secretariado confederal. Pouco depois, a 15 de Janeiro, seria a vez de Mário Castelhano cair igualmente nas mãos da polícia, o que levou a CGT a solicitar um adiamento da greve geral, acordada entretanto para o dia 18 de Janeiro. A CIS recusou e declarou que, se necessário fosse, avançaria sozinha. A desconfiança mútua entre anarco-sindicalistas e comunistas era bem conhecida, divididos que estavam por duas concepções díspares sobre o papel que a greve geral desempenhava na luta dos movimentos operários organizados. Para os primeiros, a greve geral assumia uma dimensão estratégica; para os segundos, era meramente táctica.
A insurreição operária acabou mesmo por acontecer a 18 de Janeiro. Pela noite fora, foram realizadas acções de sabotagem, como o descarrilamento de um comboio na Linha do Norte, perto de Santa Iria de Azóia (realizado por elementos do PCP), e a destruição da Central Eléctrica de Coimbra. Em Lisboa, pela sua acção preventiva, a polícia já estava de sobreaviso e na posse de informações sobre a eclosão do movimento. Ciente do facto, o militante anarquista Custódio da Costa, encarregado de sinalizar o arranque do movimento insurreccional na capital por detonação de uma bomba na Senhora do Monte [de São Gens], à Graça, decidiu não o fazer. Em compensação, o rebentamento extemporâneo de um artefacto explosivo na Estrada de Chelas, pelo comunista José Ernesto Ribeiro, confundiu vários conjurados que, confiados no sinal, iniciaram as tarefas que lhe tinham sido cometidas. Mas a explosão alertara igualmente as forças da ordem, que conseguiram conter facilmente o movimento grevista que, em Lisboa, acabaria por, praticamente, nem se fazer sentir.
O mesmo aconteceria no resto do país, com excepção para ocorrências excepcionais em Campo Maior, Coimbra, Vila Boim e, muito especialmente, em Almada, em Silves e na Marinha Grande. Na cintura industrial de Lisboa, designadamente na margem sul do Tejo, bem como em Silves, a participação operária foi quase esmagadora, com os estaleiros, os transportes e as indústrias corticeiras a paralisarem até ao dia 20. Na Marinha Grande, a acção insurreccional, liderada pelos comunistas, não levou à mobilização de grandes massas e durou pouco mais de um par de horas. Não obstante, iria ficar na História, como “o mito fundador da imagem revolucionária do proletariado português”, como afirma Pacheco Pereira.
Forjado sobre um fragmento menor da narrativa factual, o soviete da Marinha Grande eclipsou a acção maioritária dos anarco-sindicalistas, que acabariam derrotados no combate pelo controlo das “colinas da Memória”, tendo o PCP sido levado ao colo pelo relato ajustado que o próprio Estado Novo fez dos acontecimentos. Com efeito, na mente dos dirigentes do regime as “bestas negras da revolução” já haviam passado a ser os comunistas do PCP, considerados “perigosos agentes da Internacional de Moscovo”. Na mesma ordem de ideias, como salienta Maria de Fátima Patriarca, os órgãos de comunicação do regime avolumaram e puseram em relevo as acções violentas executadas na ocasião e sobre as quais havia já a suspeita de terem sido efectuadas por “estalinistas”, como o aparatoso descarrilamento na Linha do Norte, em detrimento das atitudes de protesto mais genéricas e de âmbito verdadeiramente sindical levadas a cabo por um número bem mais significativo de activistas.
A polícia política já se apercebera de que aqueles anos eram tempos de viragem no movimento operário organizado, com os agentes da Internacional Sindical Vermelha a assumirem gradualmente a sua liderança, mercê das orientações e do apoio que recebiam do exterior. Depois da greve geral falhada, a repressão não se fez esperar e foram presos muitos militantes envolvidos na “anarqueirada”, como lhe chamou Bento Gonçalves, acusando-os de se terem comportado como “putschistas e terroristas irresponsáveis”. A maioria foi parar a uma colónia penal junto à foz do Cunene, em Angola. Só mais tarde, ao aperceberem-se de que os acontecimentos da Marinha Grande tinham sido, em grande parte, obra de recentes militantes comunistas, iriam os escribas do partido (e não só) incensar o “glorioso soviete” que tinha conquistado o posto local da GNR. Para a posteridade, os anarco-sindicalistas e os socialistas eram eliminados da fotografia do 18 de Janeiro.
A hagiografia oficial comunista registou como heróis da “classe operária” na greve geral de então, quase em exclusivo, os militantes do partido na Marinha Grande. Mas quer José Gregório (Alberto Goya) quer Manuel Domingues (Carlos Amaro) quer Armando Correia Magalhães (Velasquez ou Amaral), que formavam o núcleo comunista infiltrado no Sindicato dos Vidreiros, só tinham aderido ao PCP pouco tempo antes. Os dois primeiros lideraram de facto a tentativa insurreccional da Marinha Grande e o terceiro, alertado pelo governador civil de Leiria, seu conhecido, de que sobre ele pendia um mandado de captura, conseguira fugir para a União Soviética, onde já se encontrava quando da eclosão do 18 de Janeiro. O ex-operário vidreiro, enquanto agente do PCP, a soldo da Komintern, chegou depois a ser secretário político de Afonso Costa no seu exílio parisiense. Em Deus Vermelho, Edgar Rodrigues, pseudónimo do acrata António Francisco Correia, regista tudo numa entrevista concedida por Armando Magalhães, sob a capa do anonimato. José Gregório e Manuel Domingues acabariam por conseguir iludir a vigilância das forças da ordem e, depois de uma curta passagem por Espanha, chegariam igualmente a Moscovo para frequentar a Escola Lénine.
O 18 de Janeiro marca efectivamente o fim da influência maioritária do anarco-sindicalismo nos movimentos organizados do operariado português. Com o aparelho da CGT a ser gradualmente desmantelado pela PVDE (a polícia política do regime), com o suporte de alegadas denúncias vindas dos meios comunistas, como sustentam Edgar Rodrigues e outros próceres acratas, o 18 de Janeiro foi o canto do cisne dos anarco-sindicalistas. Doravante, o PCP assumiria o controlo e a coordenação dos sectores operários defensores da via revolucionária.