Foi tudo com a bênção de Anders Behring Breivik. Ao mesmo tempo que se espalhava a notícia do atentado terrorista que matou pelo menos 49 pessoas em duas mesquitas em Christchurch, na Nova Zelândia, também o manifesto deixado pelo responsável pela matança desta sexta-feira fazia as rondas pela Internet.
Naquelas 74 páginas, que se dividem entre uma auto-entrevista e divagações que denunciam uma “substituição racial” dos “europeus” por “não-europeus”, o seu autor, o terrorista Brenton Tarrant, explica de forma clara quem é a sua maior inspiração.
“Li os escritos de Dylan Roof [autor do atentado de Charleston, nos EUA, onde morreram 9 afro-americanos numa igreja] e de muitos outros, mas só fui buscar uma verdadeira inspiração ao Cavaleiro Justiceiro Breivik”, lê-se no manifesto de Brenton Tarrant.
Se o objetivo daquele homem australiano, que tem 28 anos e se descreve como um “eco-fascista”, era o de copiar Breivik, o resultado demonstra que esteve muito perto de consegui-lo na plenitude.
A 22 de julho 2011, Breivik fez explodir uma carrinha no centro de Oslo e, depois, partiu para a ilha de Utøya, onde decorria um acampamento da juventude do Partido Trabalhista norueguês. Ali, munido de armas, para as quais tinha licença de porte, disparou a queima-roupa contra todos os jovens que viu pela frente. Breivik estava vestido de polícia, o que levou muitos jovens a procurarem proteção junto do homem que acabou por matá-los. Ao todo, morreram 77 pessoas. Quando por fim o terror terminou, com a detenção do terrorista, já o seu manifesto de 1518 páginas circulava online.
A 14 de março de 2019, Brenton Tarrant participou e outras três pessoas, que até agora não foram identificadas, irromperam em duas mesquitas da cidade neozelandesa de Christchurch. Não é certo que o homem de 28 anos tenha sido o único a disparar contra as pessoas — há outros três detidos, entre eles uma mulher, mas o seu papel no atentado ainda não é claro —, mas o que se sabe é que morreram 49 pessoas de forma direta ou indireta pelas suas ações. Brenton Tarrant transmitiu num vídeo em direto grande parte do atentado. Quando foi detido, já era conhecido o seu manifesto de 74 páginas.
https://www.youtube.com/watch?time_continue=99&v=ZfgO74SKGYs
Para este trabalho, o Observador falou com três especialistas em terrorismo de extrema-direita da Noruega. O objetivo era entender, junto daqueles que estudaram mais a fundo o caso de Breivik, até que ponto é que o terrorista que matou quase 80 pessoas na Noruega em 2011 fez escola noutras partes do mundo. A resposta é invariavelmente positiva.
Em entrevista ao Observador, o diretor do Centro de Estudos do Extremismo da Universidade de Oslo, o C-REX, sublinha que as semelhanças entre um atentado e o outro são “evidentes”.
“É a mesma ideologia. Ambos defendem a ideia da invasão dos muçulmanos contra a civilização europeia e a ideia de que eles querem destruir o povo europeu. Utilizam toda a retórica da aniquilação étnica. Claramente, o terrorista da Nova Zelândia não esconde que está a falar de raça, algo que Breivik também não fazia”, diz Tore Bjørgo, em entrevista telefónica.
Mas esta não é uma realidade restrita a países como a Noruega e a Nova Zelândia. Ao Observador, o académico Lars Eric Berntzen, da Universidade de Bergen, sublinha como este fenómeno ganhou uma dimensão “transnacional” desde o tempo que passou entre Utøya e Christchurch.
“Estamos a falar de uma comunidade muito reduzida de pessoas que se juntam em fóruns na Internet, comunicando em línguas nas quais todos se possam entender. O que os leva a juntar-se é um conjunto de ideias e crenças em teorias da conspiração que circulam entre estes grupos”, diz Lars Eric Berntzen ao telefone. “O objetivo destes terroristas de extrema-direita não passa por atacar um país em específico, mas sim por atacar grupos que eles consideram representar valores que lhes são contrários. De certa forma, no que a isto diz respeito, são muito semelhantes aos terroristas islamistas.”
Já são vários os casos de atentados em que os seus autores mencionaram a sua inspiração em Breivik.
Na Polónia, logo em 2012, um professor de química quis repetir o atentado do norueguês, acrescentando que iria evitar cometer os mesmos “erros” técnicos do autor da matança de Oslo e Utøya. Em 2016, no dia em que o atentado de Breivik fazia cinco anos, um jovem alemão de ascendência iraniana disparou mortalmente contra 10 pessoas num centro comercial em Munique — deixando para trás um manifesto onde louvava o terrorista norueguês. Em 2017, um grupo da cidade francesa de Dijon, identificado como Comando de Defesa do Povo e da Pátria Francesa, realizou pelo menos seis ataques contra imigrantes e minorias étnicas, tudo sob a influência assumida de Breivik. Em outubro de 2018, também o autor do atentado numa mesquita em Pittsburgh, nos EUA, onde morreram 10 pessoas, invocou o nome de Breivik. E já em 2019, em fevereiro, um tenente da Guarda Costeira dos EUA foi detido por planear um ataque inspirado no que chocou a Noruega e o mundo em 2011.
É como se, de repente, houvesse um Breivik a cada esquina.
Como aparecem os Breivik?
No manifesto que deixou para trás, além de falar com algum detalhe do que diz ser a “substituição” dos brancos europeus por outras etnias, o terrorista da Nova Zelândia apresenta dois momentos como sendo cruciais para a sua tomada de posição.
O primeiro remete para o ataque terrorista que, em abril de 2017, levou à morte de cinco pessoas em Estocolmo, na Suécia. O autor foi um antigo requerente de asilo do Uzbequistão, a quem tinha sido negado o estatuto de refugiado. Uma das vítimas foi Ebba Akerlurd, uma rapariga de 11 anos que, por ser surda, não terá fugido do camião que a abalroou em pleno centro de Estocolmo. “A morte de Ebba, às mãos dos invasores, a indignidade da sua morte violenta e a minha incapacidade de impedi-la desfez o meu cinismo em cacos, como um martelo”, escreveu o terrorista Brenton Tarrant no seu manifesto.
O segundo momento que o terá levado a agir foram as eleições presidenciais de França em 2017, onde Emmanuel Macron derrotou Marine Le Pen, na segunda volta. “Os candidatos eram dois sinais óbvios do nosso tempo: um globalista, capitalista, igualitário e ex-banqueiro de investimento que não tem quaisquer crenças nacionais além da busca do lucro; contra uma defensora do nacionalismo cívico, fraca e irresponsável, que é uma figura controversa cuja ideia mais corajosa e acertada é a possível deportação de imigrantes ilegais”, escreveu o terrorista. “A minha crença numa solução democrática desapareceu.”
Durante o julgamento de Breivik — que foi condenado a 21 anos de prisão, pena essa que poderá ser alargada sempre que ele for considerado um perigo para a sociedade —, o tema da sua sanidade mental, por oposição às suas motivações políticas, foi alvo de um amplo debate na Noruega. Para os especialistas noruegueses contactados pelo Observador, a avaliação do caso de Breivik e de todos aqueles que lhe procuraram seguir o exemplo não deve cingir-se a apenas uma dessas dimensões.
“Um aspeto não exclui o outro“, sublinha Tore Bjørgo. “No caso de Breivik, havia um problema mental, mas também havia uma forte carga ideológica.” O diretor do C-REX explica que os problemas mentais, que geralmente levam estes indivíduos a acreditarem que servem um propósito superior e uma missão de salvamento da civilização ocidental, “são mais comuns nos terroristas que agem de forma isolada do que naqueles que se inserem em grupos”.
Lars Eric Berntzen acredita que estamos perante uma “combinação tóxica” entre problemas mentais e ações políticas. “Durante o julgamento, falou-se de como Breivik foi vítima de abusos enquanto criança e que teve uma infância traumática, levando-o a ter vários distúrbios de personalidade. Mas quantas pessoas por este mundo foram passaram por isto e não se transformaram em atiradores em escolas ou terroristas?”, explica. “Ao mesmo tempo, podemos dizer que a ideologia é um fator forte aqui, mas, no caso específico de Breivik, a inspiração inicial dele foi o movimento anti-Islão da Europa Ocidental que, em vários aspetos, procura a defesa da democracia e de causas como a igualdade de género, e nunca a violência.”
Por isso, assegura Lars Eric Berntzen, o processo de formação destes terroristas tem sido o de “escolher uma coisa daqui e escolher outra coisa dali” em diferentes espetros do radicalismo anti-islâmico e de extrema-direita, levando-os depois para o campo da violência política.
Para a investigadora Cathrine Moe Thorleifsson, também do C-REX da Universidade de Oslo, o processo de formação destes terroristas é sobretudo ideológico, político e assente em ideias racistas. “Tanto Breivik como o terrorista da Nova Zelândia partilham esta ideia da ‘grande substituição’, que é uma peça central da ideia conspirativa da extrema-direita. Eles falam como se neste momento estivesse a decorrer uma guerra racial”, diz, numa entrevista por telefone.
Este sentimento, explica a investigadora norueguesa, é ajudado pelo facto de alguns dos países em questão terem cada vez mais imigrantes ou filhos de imigrantes. No caso da Noruega, em 2018, a soma dos imigrantes e dos seus filhos atingiu o número mais alto de sempre — quase 747 mil, segundo números oficiais, entre 5,3 milhões de população total. O maior grupo de imigrantes era então de ascendência polaca (98 200 pessoas), mas a nacionalidade em maior crescimento foram os sírios, que passaram de 20 800 em 2017 para 27 400 no ano seguinte.
Também na Nova Zelândia a imigração sobe para níveis até agora inéditos. Em 2017, entre os 4,8 milhões de residentes naquele país, 72 400 era imigrantes, de acordo com números oficiais.
Ainda assim, tanto num caso como no outro, as noções de Breivik e do terrorista de Christchurch parecem altamente distorcidas e longe da ideia de uma “grande substituição”. Primeiro, porque nem toda a imigração nestes dois países se insere necessariamente nas descrições por eles feitas — muçulmana e não-ocidental. Depois, mesmo que assim fosse, os números não demonstram essa realidade. Na Noruega, os imigrantes compõem 14% da população. E, na Nova Zelândia, apenas 1,5%.
Quando lhe perguntamos se o ambiente político vivido em muitos países do Ocidente, em que partidos de extrema-direita e na sua maioria islamófobos, é em parte responsável pelas ações destes terroristas, Cathrine Moe Thorleifsson responde afirmativamente, embora com algumas reticências.
“A minha pesquisa levou-me a concluir que o grande fator aqui é que a desumanização do Outro, neste caso dos muçulmanos, leva à violência política. Depois de 2011, isto só teve por onde piorar. Em 2015, houve a crise de refugiados, que levou a uma grande polarização política e a um preconceito anti-islâmico que rapidamente passou das margens para o mainstream, mas sempre a partir da extrema-direita”, diz. “As ideias que são defendidas por estes terroristas são claramente derivadas de outras que circulam na extrema-direita dita normal e também no sistema democrático.”
Lars Eric Berntzen faz uma análise diferente. “Parece-me claro que algumas pessoas possam sentir-se reforçadas na sua confiança por sentirem que, de certa forma, a maré da História está do seu lado. Mas não há uma relação direta entre estes partidos e estes terroristas, tal como não existe entre os partidos verdes e os eco-terroristas ou os grupos terroristas de defesa dos animais”, diz o investigador da Universidade de Bergen.
Aqui, continua Lars Eric Berntzen, foi a extrema-direita que, mais do que qualquer outro espetro político, mudou de modus operandi. “A extrema-direita à antiga, do fascismo e do nazismo, assentava em noções e princípios de glorificação da violência. Mas hoje, os partidos da extrema-direita não são assim. Eles já não glorificam a violência, na verdade defendem a democracia, por oposição ao que consideram ser o Islão”, explica.
Como apanhar os lobos solitários?
À semelhança do que já tem acontecido com ataques terroristas islamistas, também os atentados da extrema-direita são feitos acima de tudo por “lobos solitários” ou “agentes solitários”. Isto é, indivíduos que agem de forma isolada, evitando agir em grupo para dessa forma agirem de forma mais eficaz.
“Embora estas pessoas se mantenham em contacto por uma questão de pertença ideológica, nenhum deles se assemelha por exemplo aos neonazis e aos anti-fascistas que andam à porrada nas ruas. Em vez de optarem pela lógica de grupo, estes terroristas agem de forma solitária, montando planos meticulosos que são difíceis de detetar”, diz Lars Eric Berntzen.
Este é, sublinha, Tore Bjørgo, um dos maiores desafios para as autoridades dos vários países que lidam — ou podem vir a lidar — com este tipo de ataques. “É sempre mais fácil encontrar pessoas num grupo, porque se existir um plano de ação é impossível que eles não comuniquem. Só o simples facto de haver mais pessoas envolvidas torna qualquer plano mais falível logo à partida”, explica o diretor do C-REX.
Mas também no caso dos terroristas que agem como células individuais é possível apanhá-los. “Muitos deles acabam por se autodenunciarem, mesmo sem quererem, porque tendem a partilhar informação ou a dar pistas a pessoas que lhes são próximas”, explica. “Outra maneira de perceber se alguém está a preparar algo do género é perceber se eles têm comprado armas ou ingredientes para fabricar bombas artesanais.”
“Mas, infelizmente, nem sempre isso acontece ou é feito a tempo”, acrescenta Tore Bjørgo. É aí que começa o verdadeiro perigo de ter um Breivik a cada esquina.