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Umas vezes por negligência, outras por convicção, a guerra colonial é narrada como um acontecimento político-militar envolvendo apenas guerrilheiros africanos de um lado e militares das forças armadas portuguesas do outro. Nesta vulgata, a dimensão internacional dos factos foi sempre reduzida àquilo que teria sido a crítica, quando não a condenação, sistemática e unânime (ou quase) por parte da sociedade internacional – governos, organismos internacionais ou opiniões públicas e publicadas – à posição assumida pelo regime autoritário português de não ceder ao irresistível “vento de mudança” que soprava sobre África, tal como enunciado por Harold Macmillan em discurso no parlamento da África do Sul em 1960.
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Vulgata à parte, a verdade é que antes de em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique alguns dos movimentos independentistas terem escolhido o caminho da insurgência armada, já a questão colonial lusa se tinha tornado num tema de política internacional. Por um lado, o governo de Jawaharlal Nehru manifestou veementemente a vontade em ver resolvido o problema do estatuto político-jurídico dos territórios portugueses de Goa, Diu e Damão através da sua integração incondicional na União Indiana — facto que fez com que o governo português procurasse internacionalizar a disputa reclamando apoio junto de aliados britânicos e norte-americanos, e recorrendo, depois, aos préstimos do Tribunal de Haia.
Por outro lado, a admissão de Portugal às Nações Unidas, consumada em finais de 1955, trouxe consigo o início de uma discussão interminável, naquele organismo, e a partir da ONU, e algumas das suas instâncias, em muitos outros fóruns de política inter-regional, transcontinental e internacional, em torno daquela que era, ou seria, a natureza da relação política e jurídica das chamadas províncias ultramarinas portuguesas com a metrópole e das autoridades portuguesas com as populações africanas.
Verdade seja dita que ainda na década de 1950, como nos mais de treze anos de guerra, e mesmo após o 25 de Abril, Portugal lutou sistemática e genericamente contra a indiferença ou a hostilidade internacional face àquilo que eram as suas opções no domínio da política colonial. Mas isto não significa que a questão colonial, nomeadamente entre 1961 e 1974, tenha privado o estado português de apoios e de cumplicidades, e não apenas “ocidentais”. Não quer igualmente dizer que Portugal tenha abdicado de ter política externa e diplomacia, ou que uma e outra tenham sido meramente reactivas e assentes predominantemente no princípio da intransigência. Por fim, não permite afirmar que Portugal e a sua política, nas dimensões colonial e externa, estivessem “orgulhosamente sós” no mundo e face ao mundo segundo a leitura, errada se feita no sentido literal e descontextualizada, de uma afirmação proferida por Salazar num discurso pronunciado em 1965.
Finalmente, e quando se tem em conta aquilo que foi a dimensão internacional das guerras coloniais na África lusófona, deve ainda ser notado o facto dessa dimensão não poder ser resumida à forma como a política externa e a diplomacia do estado português, dos movimentos de libertação, de organizações internacionais – intergovernamentais ou não governamentais –, e dos mais variados estados era pensada e executada.
A dimensão internacional da questão colonial portuguesa e das guerras que a mesma acabou por gerar teve outros aspectos. Acima de tudo, foi uma luta pela sedução e satisfação de interesses manifestados por terceiros, mas ainda, e sobretudo, pela necessidade de conquista dos corações e das mentes dos cidadãos que na sociedade internacional acompanhavam e avaliavam não só a evolução da contenda político-militar mas, também aquilo que consideravam ser a sua natureza não apenas ética mas, sobretudo, moral. As autoridades portuguesas nunca descuraram essa luta, mas os movimentos de libertação foram aí mais bem-sucedidos.
Integração internacional de Portugal
Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, e apesar de ter sido forçado a votar a extinção da Sociedade das Nações e de não ter sido convidado para assumir o papel de membro fundador da ONU, o estado português integrou-se com relativa facilidade na nova ordem internacional, mesmo que dela tivesse Salazar e uma parte do regime uma visão crítica e fizesse uma avaliação sustentada num razoável grau de descrença.
Portugal fez parte das organizações ou programas de ajuda à recuperação da economia europeia e internacional no pós-guerra, assim como dos organismos que se pretendiam reguladores de realidades tão diversas que iam desde o funcionamento da aviação civil à garantia da sanidade e viabilidade de um regime monetário internacional. Portugal foi ainda, em 1949, membro fundador do Pacto do Atlântico e assistiu de perto ao processo de criação de organismos como a Comunidade Económica do Carvão e do Aço, o Mercado Comum ou a EFTA (de que aliás também seria membro fundador em 1959/60).
Depois de 1961, manteve a sua presença em praticamente todas as organizações internacionais em que fora admitido a partir de 1945-46. É verdade que em algumas delas, nomeadamente na OTAN e na ONU, os representantes portugueses e, portanto, o país e o estado, foram alvo de pressões e críticas relativas, não à natureza autoritária do regime mas ao seu colonialismo persistente. Mas por outro lado, a diplomacia portuguesa usou diversos fóruns internacionais para, em proclamações públicas ou em conversas privadas, explicar a interlocutores – nomeadamente ministros da Defesa ou dos Negócios Estrangeiros –, muitas vezes com êxito, as suas políticas, nomeadamente quanto às suas pretensões e natureza.
Se pela sua composição a ONU se tornou, independentemente da sua ineficácia relativa, no areópago que mais dores de cabeça causou à política externa e à diplomacia portuguesa, já a OTAN – aliança política e militar a que pertencia a generalidade dos chamados países “ocidentais” – era normalmente vista por Lisboa como o local ideal para serem desfeitas, com maior ou menor grau de sucesso, aquilo que nas Necessidades e em São Bento se consideravam ser as suspeitas infundadas manifestadas por “países amigos” sobre as opções políticas portuguesas definidas para os seus territórios africanos.
Mas para além de ter sido chamado a integrar as principais instituições da Europa e do mundo do pós-guerra, Portugal pode ainda construir e consolidar importantes relações políticas e económicas, nomeadamente no plano bilateral, com as principais potências ocidentais (EUA, Grã-Bretanha, França ou Alemanha) mas também com países com menor projecção e diferente localização, como foi o caso do Paquistão, da África do Sul, da Indonésia, do Japão ou do Brasil. Com todos eles manteve relações cordiais (mesmo quando eram transmitidas críticas à natureza do regime ou, sobretudo, à intransigência em matéria colonial).
Vale a pena recordar que a França e a Alemanha construíram importantes infraestruturas militares em Portugal, da mesma forma que venderam armamento ou aceitaram tratar em hospitais localizados na então Alemanha Ocidental um número importante de militares portugueses feridos na guerra.
A par da existência de relações diplomáticas cordiais no plano formal, o estado português conseguiu junto de terceiras potências possuidoras de indústrias de armamento, de infraestruturas militares ou exportadoras de capital, importantes ajudas tanto para poder continuar a desenvolver o seu esforço de guerra, como para tentar acelerar o processo de crescimento e modernização económica, tanto na metrópole como nas colónias.
Desta realidade decorria a possibilidade de aquisição de armamento ou de outro tipo de meios – motorizados, médicos, financeiros, ou outros – essenciais para a continuação e aprofundamento do esforço militar na guerra em curso. Por exemplo, e apenas citando dois casos, vale a pena recordar que a França e a Alemanha construíram importantes infraestruturas militares em Portugal, da mesma forma que venderam armamento ou aceitaram tratar em hospitais localizados na então Alemanha Ocidental um número importante de militares portugueses feridos na guerra.
No caso do relacionamento com países vizinhos dos territórios africanos localizados na África Austral, o estado português manteve relações da maior relevância com a Rodésia do Sul ou a África do Sul, mas ainda, mesmo que noutros termos, muitas vezes num domínio essencialmente informal, com a Zâmbia, o Malawi ou o Zaire, nomeadamente por ser facilmente demonstrável em que medida a economia de cada um daqueles países dependia das vias rodoviárias e ferroviárias de acesso ao Índico e ao Atlântico através, respectivamente, de Moçambique e Angola.
Diplomacia paralela
Um aspecto importantíssimo da política externa portuguesa e daquela que era sua percepção sobre o funcionamento e as oportunidades eventualmente oferecidas pela sociedade internacional, radicava no facto de o Estado Novo, sobretudo no consulado de Marcello Caetano, ter algumas vezes recorrido, e outras vezes ter sido vítima, de acções da chamada diplomacia paralela. Umas vezes envolviam militares, outras civis. Algumas vezes usavam canais informais, outras formais; umas vezes pareciam agir com conhecimento e/ou ordens directas emanadas de Lisboa ou dos governadores das províncias; outras, pelo contrário, as missões desempenhadas pareciam ter vida própria, não se lhe conhecendo as motivações e, muito menos, os objectivos ou as instruções.
Embora com antecedentes no consulado salazarista, este modo informal de conceber a acção diplomática faz com que não se perceba ainda hoje a natureza e os objectivos de muitos contactos ou de encontros como aquele que foi mantido pelo general Spínola com o presidente Senghor do Senegal (1972), as negociações com o PAIGC ocorridas em Londres e iniciadas em vésperas do 25 de Abril de 1974 ou os prolíficos mas pouco fecundos contactos mantidos pelo general Kaulza de Arriaga, durante a sua estada em Moçambique como comandante-chefe, com políticos e militares sul-africanos.
Luta pela opinião pública internacional
No entanto, se nestes como noutros domínios as autoridades portuguesas conseguiram manter entre 1971 e 1975 a normalidade político-diplomática possível em situação de guerra de contra-insurgência e numa conjuntura em que a perpetuação de relações políticas de natureza colonial parecia tornar-se cada vez mais difícil de sustentar, já na domínio da luta travada junto da opinião pública internacional a posição portuguesa foi-se paulatinamente degradando. É verdade que logo em 1961, e durante toda a guerra, as autoridades portuguesas, tal como os movimentos de libertação, não descuraram a importância que então tinha e iria continuar a ter a luta pelo domínio da qualidade e quantidade da informação produzida e transmitida à opinião pública internacional.
No entanto, as autoridades portuguesas lidaram com essa realidade sempre numa situação de desvantagem que decorria do facto de regimes autoritários e estados coloniais se terem tornado cada vez mais soluções politicamente falhadas e moralmente condenáveis por grande parte da opinião pública internacional. Os exemplos desta desigualdade foram muitos, mas basta recordar, por exemplo, que se os episódios de violência colonial – civil ou militar – preocupavam os media e chocavam a opinião pública, episódios equivalentes perpetrados por guerrilheiros dos movimentos de libertação nunca mereceram um tratamento informativo e uma indignação proporcionais por parte tanto desses mesmos media como, naturalmente, da opinião pública.
Nos seus métodos e na sua doutrina os movimentos de libertação podiam ser mais violentos e certamente mais autoritários que o estado colonial e os seus agentes. No entanto, esta era uma questão que não merecia uma avaliação ou suscitava uma dúvida, fosse ela política-ideológica, jornalística ou filosófica.
Portanto, e mesmo que muitas vezes os resultados políticos e/ou militares da acção dos movimentos de libertação fossem escassos em toda a história da sua guerra contra o estado colonial português, a verdade é que aos olhos de grande parte da opinião pública internacional, da generalidade dos estados do Terceiro Mundo, do bloco soviético ou, até, do mundo ocidental, os movimentos de libertação, sobretudo o PAIGC e a FRELIMO, eram cada vez mais tidos como os justos e legítimos representantes, para não dizer governantes virtuais, dos territórios e populações da Guiné-Bissau e de Moçambique.
Ora esta realidade colocava às autoridades portuguesas obstáculos muito difíceis de ultrapassar e que, embora por si mesmas, não definissem os termos em que o confronto entre estado colonial e movimentos de libertação poderia terminar, produziam uma importante erosão na forma como a “causa” portuguesa podia ser defendida no plano político tanto internacional como nacional.
Um acontecimento secundário
Ao contrário daquilo que o senso comum erradamente nos ensina, não só o estado português não fez a guerra em situação de isolamento político internacional, como o seu estatuto na sociedade internacional estava longe de equivaler, entre 1961 e 1974, ao de um estado pária. Paralelamente, e apesar da importância que as guerras coloniais portuguesas tiveram e do acompanhamento político e mediático que mereceram, a verdade é que estiveram muito longe de estar entre os acontecimentos que mais atenção receberam por parte de instâncias políticas e mediáticas estrangeiras, fossem elas nacionais ou transnacionais.
A crise dos mísseis em Cuba em 1962, a intervenção e subsequente retirada norte-americana do Vietname (1964-1975), ou, finalmente, os dois grandes conflitos israelo-árabes (em 1967 e 1973), ajudam a relativizar a importância da guerra colonial
Em África, por exemplo, o apartheid suscitava muito mais reparos e preocupações enquanto grande questão política e moral, ao passo que conflitos militares como as crises do ex. Congo belga (1960-65), a guerra de secessão do Biafra (1967-1970) ou, anos antes, a guerra de independência da Argélia (1956-1962) mereceram um incomparavelmente maior acompanhamento e cuidado pela sua dimensão, intensidade e gravidade, fosse ela política ou humanitária. Aliás, e no que à dimensão colonial da política africana diz respeito, a declaração unilateral de independência da Rodésia (1965) foi um acontecimento com muito maior impacto internacional do que o efeito conseguido, por exemplo, pelos massacres perpetrados em nome da UPA em Angola em Março de 1961, ou pelo início da luta armada na Guiné ou em Moçambique.
E se evocarmos os grandes acontecimentos de política internacional ocorridos entre 1961 e 1975, percebe-se como foi politicamente irrelevante, do ponto de vista internacional, a guerra colonial e todas as independências dos territórios ultramarinos portugueses em 1974 e 1975 com excepção do caso de Angola. A crise dos mísseis em Cuba em 1962, a intervenção e subsequente retirada norte-americana do Vietname (1964-1975), ou, finalmente, os dois grandes conflitos israelo-árabes (em 1967 e 1973), entre muitos outros acontecimentos, ajudam a relativizar a importância da guerra colonial e o grau de crítica e de relevo internacional que tiveram e mereceram.
A Operação Mar Verde (1970) ou o massacre de Wiryamu são exemplos de incidentes que tornaram a guerra na África portuguesa num acontecimento com maior exposição internacional, não apenas no momento em que foram tornados públicos, mas durante períodos relativamente prolongados
Nada disto quer porém dizer que a dimensão internacional do conflito não tenha sido importante e, em alguns momentos, determinante no modo como condicionou, positiva ou negativamente, os termos em que as autoridades civis e militares portuguesas podiam agir ou reagir.
Se, por exemplo, a extrema violência usada em Março de 1961 no norte de Angola possibilitou ao estado português algum espaço para justificar o recurso a uma resposta militar de legítima defesa a um ataque não só não provocado como tido como politicamente desproporcionado, incidentes militares ocorridos em zonas fronteiriças de territórios vizinhos de Angola, Guiné-Bissau ou Moçambique tendo as forças militares portuguesas como protagonistas acabaram por produzir resultados nefastos para os interesses do governo de Lisboa.
A Operação Mar Verde (1970) ou o massacre de Wiryamu são exemplos de incidentes que tornaram a guerra na África portuguesa num acontecimento com maior exposição internacional, não apenas no momento em que foram tornados públicos, mas durante períodos relativamente prolongados, fosse pela sua objectiva gravidade política, jurídica e, até, moral, mas, sobretudo, pela capacidade demonstrada por líderes e quadros dos movimentos de libertação, nomeadamente do PAIGC e da FRELIMO, para delinearem e executarem uma estratégia de projecção internacional dos aspectos do conflito que mais dano provocavam nos interesses portugueses e mais benefícios traziam à causa dos movimentos de libertação.
Tendo portanto em conta a dimensão internacional da “guerra colonial” e os termos em que essa dimensão condicionou a estratégia político-militar portuguesa e, também, a sua acção diplomática, é óbvio que embora aquela não tenha sido decisiva para se perceberem as causas directas e imediatas da derrota portuguesa, a verdade é que não deixou de desempenhar o seu papel, não tanto na forma como o conflito terminou, mas mais no modo como condicionou a sua evolução.