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“Nalgumas ruas das avenidas novas têm‑se construído e estão ainda em construção grandes prédios (…). A renda, porém (…), ultrapassa de tal modo as possibilidades de cada um de nós, que tem dado lugar às mais variadas discussões e mais ásperos protestos (…)! É claro que não são alojamentos desta categoria que fazem falta neste momento.”
A frase com que se inicia este texto, e que poderia ter sido retirada de um qualquer jornal português da última semana, mês ou ano, foi, na realidade, publicada em 1945 na revista A Arquitectura Portuguesa. O seu autor, Alberto A.C., dando mostras da inquietação que o assolava, deu ao seu artigo o título de Um problema, a palavra que, ontem, hoje, e muito provavelmente amanhã, mais vezes vemos associada à questão da habitação, mesmo sem contar com o famoso livro do poeta Ruy Belo, o qual, apesar de incluir o verso “uma casa é a coisa mais séria da vida”, é de outro campeonato, mais próximo do metafísico do que da materialidade da argamassa e da alvenaria.
Nesse ano de 1945, naturalmente sublinhado em todos os manuais de História de todos os países do planeta como aquele em que chega ao fim a II Guerra Mundial, ocorreu, em Portugal, o arranque de uma nova política pública de habitação, desta vez, ao contrário do que acontecera nos primeiros programas habitacionais do Estado Novo, focada no arrendamento e não no conceito que tinha animado o início da ditadura: o “cidadão-proprietário”, enraizado na sua pequena, modesta, mas higiénica moradia independente e unifamiliar, e devidamente disciplinado pelo braço forte do Estado.
Através do pagamento mensal de amortizações, pretendia-se então, nessa época constitucionalmente fundadora de 1933, que o morador, num prazo aproximado de duas décadas, atingisse a posse plena da casa que lhe tinha sido destinada pelo poder vigente. O Programa de Casas Económicas, assim foi baptizado, talvez pelo próprio Salazar ou pelos seus muito próximos Duarte Pacheco (responsável pela construção dos imóveis) e Pedro Teotónio Pereira (responsável pela sempre disputada distribuição das chaves), dirigia os seus maiores esforços não para as classes mais desfavorecidas da população, abrangidas por outras iniciativas (Programa de Casas Desmontáveis, por exemplo), mas principalmente para aqueles que constituíam ou poderiam vir a constituir a base social de apoio do regime: chefes de família, com emprego estável no sector público ou privado, e sobre os quais não recaíssem quaisquer suspeitas de mau comportamento político e moral.
Devidamente “emparedados” entre os critérios de admissão (explicitamente atestados pelos sindicatos nacionais ou pelos respectivos chefes quando se tratava de funcionários do Estado) e a disciplina paternalista assegurada pelo fiscal do bairro (responsável, entre outras actividades, pela organização de um ficheiro actualizado sobre cada morador), os beneficiários deste programa sentiam-se, contudo, privilegiados. A “casa portuguesa”, onde viviam e da qual, caso mantivessem perenemente um comportamento decente e adequado, seriam proprietários num futuro relativamente visível, era, afinal de contas, aos olhos da propaganda oficial, um oásis de vida saudável na periferia, sem comparação possível com a confusão sobrelotada e promíscua dos centros urbanos.
“E são tão económicas as nossas ambições / que não vão muito além das mil evoluções das moscas” (Ruy Belo)
Mesmo descontado a propaganda, e tentando, claro, ignorar o tenebroso ficheiro do fiscal, parece verdade que o conceito, qual sapatinho no pé da Cinderela, se ajustava perfeitamente aos gostos e preferências do proverbial “português médio”, eventualmente o mesmo que, nos anos 50, catapultou a canção Uma Casa Portuguesa a um tal grau de sucesso que a própria Amália Rodrigues dela se cansou, chegando mesmo, em alguns concertos, a fazer ouvidos de mercador aos pedidos que muitas vezes lhe gritavam da platéia para que a cantasse.
As quatro paredes caiadas, o cheirinho a alecrim, as uvas douradas e as rosas no jardim, entre outras características – o São José de azulejo, o sol a bater na janela – que garantiam o conforto pobrezinho de um lar, se bem que celebrizadas musicalmente pelos versos que Reinaldo Ferreira e Vasco Matos Sequeira escreveram num hotel de Moçambique, tinham uma existência real nos Bairros de Casas Económicas inaugurados a partir da década de 30 nas então pouco ocupadas cercanias das cidades portuguesas, além de partirem de uma teorização largamente desenvolvida, não só pelo poder político pós-I República, mas também por importantes arquitectos, dos quais se destaca o fascinante e multifacetado Raul Lino.
Figura ainda hoje polémica, alvo de interpretações não consensuais, dele se pode dizer, tentando não extremar a caracterização, que tendia para o nacionalismo, para o romantismo, para o anti-modernismo. Pouco dado ao fascínio da máquina e da velocidade e eficiência por ela proporcionadas, defensor da manufactura artesanal e do tempo lento, refugiava-se nostalgicamente na História e nas tradições do país, procurando a tal alma e essência da “casa portuguesa”, que imaginava meridional e solar, influenciada pelo mediterrâneo na sua dupla vertente romana e árabe.
Os títulos dos livros que publicou – A Nossa Casa: apontamentos sobre o bom gosto na construção das casas simples (1918); A Casa Portuguesa (1929); Casas Portuguesas: alguns apontamentos sobre o arquitectar das casas simples (1933) – quase dispensam explicações adicionais sobre a importância deste arquitecto para o Programa de Casas Económicas, muito embora pouca relação houvesse, pela escala e pelos orçamentos, entre os seus projectos particulares (Casa do Cipreste em Sintra, por exemplo) e aqueles que fez para habitação pública. Havia, porém, em ambos os casos, uma ideia de ninho protegido do exterior que batia certo com a ideia transmitida por Salazar num importante discurso radiodifundido em 1933: “A intimidade da vida familiar reclama aconchego, pede isolamento, numa palavra, exige a casa, a casa independente, a casa própria, a nossa casa. Eis porque nos não interessam as colossais construções para habitação operária, com seus restaurantes anexos e sua mesa comum. Para o nosso feitio independente e em benefício da nossa simplicidade morigerada, nós desejamos antes a casa pequena.”
Assim eram, pois, os bairros de Raul Lino e respectivos discípulos, como o Novo de Belém, o dos Telheiros da Ajuda, o Duarte Pacheco em Braga, o das Condominhas, o do Ilhéu, com as suas casinhas, jardinzinhos, quintaizinhos, janelinhas, patiozinhos, beiraizinhos, hortazinhas, alpendrezinhos e, claro, alguns São Josés de azulejinhos, como na canção popularizada por Amália. Todos esses “inhos” físicos e palpáveis haveriam de contribuir, esperava-se, para o espírito da “casa portuguesa”, tão presente nos versos cantados pela fadista como nos muito anteriores textos do arquitecto Raul Lino, que o fazia depender, até mais do que dos materiais, do “sabor português” e de um “certo ar amoroso de doçura”. Paradoxalmente, todavia, os projectos conciliavam o conservadorismo com alguns aspectos da modernidade, nomeadamente no que se refere à dimensão e simplificação das habitações, tema que alimentava noutros países o estudo racionalista do Existenzminimum, ou seja, a definição do espaço mínimo onde um ser humano poderia viver eficientemente, seja lá isso o que for.
Por outro lado, dois dos pontos fulcrais deste Programa – o “cidadão-proprietário” em vez do “cidadão-inquilino do Estado” e a moradia unifamiliar em vez da habitação colectiva – revelavam tolerância zero a eventuais instintos “modernizadores”, fazendo prevalecer as opiniões mais tradicionalistas – a aldeia reproduzida na cidade – e o fomento da propriedade privada, pedra basilar da muito bem-vista “herança de família”. Tratava-se, em certa medida, de marcar a diferença em relação à forma como a Primeira República tinha encarado a política pública de habitação, embora mais tarde, em 1945, como foi referido logo no início deste texto, também o Estado Novo aderisse, pragmaticamente mas sempre com reservas, ao arrendamento público a aos blocos de habitação colectiva, ponto que se retomará mais à frente.
Já o período 1910-1926, que deve ser analisado mais pelas intenções do que pela obra, uma vez que a balbúrdia instalada não permitiu que se fizesse muita, fica marcado pelo nascimento das primeiras leis sobre a intervenção do Estado na habitação, uma consequência não só da multiplicação de “ilhas” portuenses e de “pátios” lisboetas insalubres, sobrelotados e miseráveis, como também de uma crise de desemprego na construção civil, duas desgraças que, ao ocorrerem em simultâneo, provocavam nas elites o terror de uma revolução temperada com pitadas de peste e de tuberculose.
Os Bairros Operários ou Sociais da República, alguns só projectados, outros parcialmente construídos, mostravam naturalmente menos receio de um certo colectivismo do que aquele que atingiria o pensamento dos primeiros anos salazaristas, o que não se estranha dadas as características e as diferenças ideológicas entre os dois regimes. Esses Bairros, que se davam bem com blocos multifamiliares e com o modelo do arrendamento, previam também a integração de cantinas, lavandarias e balneários, assim evidenciando o género de mundividência que deixava o ditador de Santa Comba com os cabelos em pé.
O poder republicano, no entanto, fazendo-lhe um grande favor, devido em parte ao desagradável facto de ser muito mais fácil e rápido escrever despachos e decretos do que erguer fiadas de tijolos, não conseguiu transformar a sua visão em realidade, e mesmo o Bairro da Ajuda/Boa Hora e o Bairro do Arco do Cego, dois dos poucos empreendimentos que tiveram obra de facto, acabaram por ser finalizados já pelo Estado Novo, que ainda foi a tempo de os “ajustar” à sua concepção individualista. As habitações acabaram assim nas mãos de “moradores-adquirentes”, reforçando-se o pilar família/herança, e os cabelos de Salazar assentaram novamente. Ademais, o facto de ter sido ele a ter de terminar as empreitadas que os republicanos, no meio do caos político e financeiro, não tinham sido capazes de erigir, reforçou a imagem de competência que vinha laboriosamente a contruir desde o dia em que assumiu funções políticas, se não mesmo desde o dia em que nasceu.
“Feliz aquele que administra sabiamente / a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias / Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará” (Ruy Belo)
Em Junho de 1970, no número 1496 da Seara Nova, o arquitecto Nuno Teotónio Pereira, cansado do aumento contínuo de barracas e bairros de lata na capital, faz publicar um texto sugestivamente intitulado A nódoa de Lisboa. Esse tipo de “alojamento sem ser em prédio”, como eufemisticamente lhe chamava o Censo de 1960, não era de todo uma especificidade portuguesa, como bem podiam comprovar os inúmeros emigrantes lusos transferidos directamente da miséria local para a miséria estrangeira de um qualquer “bidonville” nos arredores de Paris. Esse pormenor, no entanto, não servia de consolo a Teotónio Pereira, nem, supõe-se, aos moradores das barracas, nem tampouco, e isso sabe-se hoje sem sombra de dúvida, às autoridades políticas, que, programa após programa, iniciativa após iniciativa, se sentiam, embora não o confessassem, como Sísifo nos seus trabalhos.
Note-se que nesse ano de 1970, Portugal levava já mais de duas décadas de novas experiências habitacionais públicas, de escala significativamente maior do que aquela que desejava casar, sob apadrinhamento do fiscal e do seu ficheiro, o pequeno proprietário com a casinha portuguesa “de” Raul Lino. A promoção do arrendamento social, vista com muito maus olhos nos primeiros vinte anos de Estado Novo, começa a ser alvo de uma visão refrescada, mais por necessidade do que por convicção, em meados dos anos 40, e algo de semelhante acontece, pelos mesmos motivos, em relação ao tema dos grandes blocos de habitação colectiva.
O Bairro de Alvalade, por exemplo, onde trabalharam vários arquitectos conhecidos dos quais se destaca Miguel Jacobetty Rosa, foi uma iniciativa levada a cabo pelo poder central e municipal que conjugava rendas económicas, extensa área urbanizada e construção em altura, e a sua visibilidade, indisfarçável, logo despertou o interesse de outras cidades portuguesas, que prontamente deitaram a mão aos projectos de Jacobetty e aos fundos disponibilizados pelo Estado.
Datam igualmente desta época do pós-guerra a construção de Bairros para Famílias Pobres (um dos arquitectos envolvidos foi Ruy Jervis d’Athouguia, um aristocrata reservado que, dando provas de grande ecumenismo, desenhou casas para pobres ao mesmo tempo que projectava edifícios para a elite, como é o caso da emblemática Sede da Fundação Calouste Gulbenkian), Bairros para Pescadores, Bairros do Movimento Nacional de Auto-Construção, um nome que é todo um programa mas que contavam com apoio público, Bairros da Fundação Salazar, os quais, à semelhança da ponte sobre o Tejo, se chamam agora 25 de Abril, Colónias Agrícolas em vários concelhos, principalmente do interior, numa tentativa de travar o êxodo rural, ou seja, de parar o vento com as mãos, Bairros “do” Padre Américo, enfim, todo um conjunto de políticas que, todavia, coexistiam com um sem-fim de lamaçais inundados por barracas de madeira carcomida e chapa esburacada.
“E a alegria é uma casa recém-construída” (Ruy Belo)
Assim sendo, logo no início da governação de Marcello Caetano, e como resultado de uma longa reflexão que atribuía as insuficiências da política de habitação (“falhanço” era uma palavra proibida) ao facto de esta se encontrar dispersa por várias entidades, é criado o Fundo de Fomento da Habitação (FFH), organismo destinado, de acordo com o engraçado lero-lero do governo, a “concentrar o estudo da problemática”. Estamos em pleno III Plano de Fomento e numa época em que parte do regime, contra a opinião de uma outra parte mais conservadora, tentava importar para Portugal algum do Estado Social que caracterizava as democracias da Europa ocidental.
O FFH, através do conceito de Plano Integrado (o arquitecto Nuno Portas, cujas ideias foram aproveitadas para esta abordagem, chamava-lhe uma “arquitectura de nova dimensão, integradora dos sucessivos escalões de planeamento”), inicia então o planeamento de empreendimentos de grande escala, não apenas ao nível dos edifícios previstos, mas também em relação às vias de comunicação, às infraestruturas e aos equipamentos sociais, ou seja, dá-se o tiro de partida, no nosso cantinho, ao lançamento dos grands ensembles que polvilhavam desde o final da II Guerra Mundial as áreas metropolitanas francesas, alemãs ou italianas e que, por essa altura, comprovando pela enésima vez a nossa chegada tardia às coisas, começavam a ser postos em causa pelas populações e autoridades desses países.
Vários arquitectos, alguns deles famosos nos dias de hoje mas nessa época em início de carreira, começam por isso, num espaço temporal que engloba os anos finais da ditadura e os primeiros anos pós-25 de Abril, a projectar, no âmbito destes PI, ou Planos Integrados, ou 3,14 para os amigos, blocos e mais blocos de habitação social, uns para arrendamento, outros no sistema de propriedade resolúvel, ou seja, a amortização por prestações mensais característica das “casas económicas” dos anos 30, espalhando pelo território milhares e milhares de casas e apartamentos.
E a estas devemos também somar as muitas habitações construídas como resposta pública a catástrofes (com destaque para os Bairros Gulbenkian, nascidos de uma espécie de PPP formada para acudir as vítimas das grande cheias de 1967), os Bairros CAR, construídos para alojar o mais rapidamente possível os retornados de África, visto que a solução provisória – mosteiros, seminários, casas de acolhimento, conventos, parques de campismo, autocaravanas, pensões, residenciais e hotéis de uma, duas, três, quatro, cinco estrelas, e mais estrelas houvesse, caso isto fosse o Dubai – se revelava excêntrica e dispendiosa, e os Bairros SAAL, cooperativas de trabalho conjunto entre o povo (o real, mesmo, e não o das teorias ideológicas) e grandes nomes da arquitectura (Siza Vieira, Alcino Soutinho, Fernando Távora, Gonçalo Byrne, etc.), numa experiência inovadora e marcante, pontuada por muita utopia revolucionária, mas que teve projecção internacional e nos deixou frases memoráveis, como aquela em que um morador, interrogado sobre as suas preferências conceptuais, contrapõe um magnífico “o senhor arquitecto faça como se fosse para si que de certeza que eu vou gostar.”
“E a alegria é uma casa demolida” (Ruy Belo)
Mais recentemente, já na época de estabilidade democrática em que dois gigantes, Mário Soares e Cavaco Silva, ocupavam, numa feliz coincidência histórica, as cadeiras da Presidência e da chefia do Governo, provocando-se mutuamente, às vezes de uma forma feroz, mas também contribuindo para que cada um desse o seu melhor na respectiva função, dá-se a construção de dezenas de milhares de habitações destinadas à substituição das barracas que teimosamente ainda subsistiam. Soares aproveita as suas Presidências Abertas para, no âmbito daquilo que na gíria se convencionou chamar “magistratura de influência”, denunciar as indecentes condições de habitabilidade que marcavam certos territórios, e Cavaco, o executivo, responde-lhe com a pulsão, sempre à flor da pele, de “fazer obra”, demolindo, em conjunto com os municípios, uma infinitude de bairros de lata e de habitações precárias degradadas, não todas, infelizmente, dizem uns que por causa do boicote político de algumas autarquias, dizem outros que por causa de várias outras vicissitudes, sendo seguro que, entretanto, talvez mesmo no mês ou na semana passada, há novas barracas a nascer por aí, muito frágeis na aparência, é certo, mas solidamente resistentes aos discursos bondosos sobre pobreza e chagas sociais.
“Oh as casas as casas as casas”, escrevia Ruy Belo já não no livro O Problema da Habitação, de 1962, mas num outro, País Possível, editado nas vésperas do 25 de Abril. Sim, ouve-se perguntar, onde estão as casas as casas as casas, milhares e milhares delas, construídas com dinheiro público nos últimos 100 anos, mesmo que descontemos outras tantas que foram feitas no modelo de propriedade resolúvel, e destinadas por isso, desde o início, a terem como destino final a posse privada? O tal 2%, número que nos martela os ouvidos, o fraquíssimo indicador da nossa liliputiana habitação pública, não parece compatível com tanto arquitecto, tanto projecto, tanta obra.
E, no entanto, é! Consciente das suas próprias e gritantes dificuldades de gestão, da cobrança das rendas à conservação dos imóveis, o Estado, nos últimos 40 anos, tentou livrar-se a todo o vapor, e se calhar ainda bem!, dos seus edifícios arrendados, umas vezes entregando-os às autarquias, quando estas, distraídas, os aceitavam, outras vezes, a maioria, vendendo as fracções aos respectivos inquilinos, numa operação de larguíssima escala que pouca gente, se é que alguém, consegue quantificar. E as autarquias, como é óbvio, sentindo idênticas aflições quando envergaram o fato de senhorio, fizeram o mesmo. O que sobrou, 2%, aí está, para consumo público em letra de imprensa, pois, como muito bem diz o povo na sua descomplexada sabedoria, quem o rabo vende não se senta quando quer.
P.S. – A maioria da informação que aparece neste texto foi recolhida no excelente livro Habitação: Cem Anos de Políticas Públicas em Portugal, 1918 – 2018 (INCM, Dezembro de 2018, 525 pp.), encomendado pelo Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana IP a um vasto conjunto de investigadores coordenados pelo arquitecto e professor universitário Ricardo Costa Agarez. Seria talvez boa ideia que a Ministra da Habitação e o PM, ainda que na diagonal, deitassem pelo menos os olhos aos estudos solicitados pelo próprio governo de que fazem parte. Poderiam assim contactar com esse longo período em que o Estado – fosse ele dirigido por republicanos radicais, ditadores reaccionários ou democratas liberais –, quando queria entregar casas ao povo (uma opção discutível, mas legítima), metia as mãos na massa e não na argamassa dos outros.
(escreve de acordo com a antiga ortografia)