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São três as dimensões da escrita de José Saramago mais vezes destacadas quando procuramos saber qual a herança que o único Nobel da Literatura português (que nasceu a 16 de novembro de 1922 na freguesia de Azinhaga, Golegã, e completaria agora 100 anos) deixou às gerações de escritores que vieram depois, que o leram e nele encontraram referências.
Por um lado, o aspeto formal da escrita: o jogo entre o discurso direto e indireto, o fraseado ou as pontuações. Por outro, a criação de mundos próximos da realidade, mas sempre distantes ao mesmo tempo. Uma espécie de fantasia de carne e osso, saída de inspirações tão distintas como a História portuguesa, a religião, os escritores que vieram antes dele ou a existência quotidiana.
A terceira característica fundamental está relacionada com a intervenção política e social que levava da vida “civil” para a escrita. Entre as personagens e os enredos, procurava constantemente a forma mais eficaz de fazer passar os seus ideais. A conclusão evidente é que, mesmo que o escritor-leitor não concordasse com a ideologia defendida por Saramago, acabava por respeitar e admirar a decisão de seguir em frente, de não evitar críticas ou polémicas, insistindo num processo que para o Nobel era inevitável, natural.
A propósito dos cem anos de José Saramago, questionámos escritoras e escritores em língua portuguesa de gerações mais recentes, à procura de elos de ligação com uma obra que permanece influente e fundamental para percebermos os caminhos que a literatura portuguesa percorreu sobretudo desde 1980, ano da publicação de Levantado do Chão, livro que marca o início da construção da figura literária de Saramago.
Afonso Cruz
“Com Saramago descobri uma maneira bastante original de escrever, que me parece ter algumas raízes comuns com o Dinis Machado, pelo menos identifico alguma coisa em termos formal. E o facto de ter sido um escritor de conceitos. Alguns livros dele baseavam-se em ideias muito fortes, com premissas que depois permitiam desenvolver um enredo e uma intriga com extrema facilidade. Porque, na verdade, depois de se achar essa ideia, um livro torna-se numa espécie de plano inclinado. E claro, creio que também trouxe e deu um contributo muito grande à prosa em Portugal. Fez acreditar que era possível escrever e viver do romance, além de promover o investimento em novos escritores, que também correram mais riscos. Fez mudar um pouco esse panorama, um pouco — ou sobretudo — por ter vencido o Nobel da Literatura. Os livros dele marcaram a minha vida também pela sua originalidade e pelo que acabaram por criar em termos de rutura com o que se fazia antes.
O meu livro favorito é o Memorial do Convento. Foi o primeiro que li e, portanto, tem o impacto das primeiras coisas e das primeiras leituras. Acabou por me marcar de uma maneira diferente. Mas a verdade é que gosto muito de outros livros de José Saramago e sou realmente um admirador da sua obra.”
Afonso Cruz é um escritor, ilustrador e músico de 51 anos, autor, entre outras obras, dos romances “A Carne de Deus” (2008) e “Jesus Cristo Bebia Cerveja” (2012)
Ana Margarida Carvalho
“Saramago tinha a característica de não dissociar o escritor do cidadão. Como ele disse, na altura do Nobel: ‘não precisei de deixar de ser comunista para ganhar um prémio Nobel e se precisasse preferia não ter o prémio’. Era um escritor que não dissociava a sua arte literária da sua intervenção ativista, cívica e política, e do ideal pelo qual sempre se bateu, contra as desigualdades. Há este lado muito singular de alguém que nunca teve de escolher entre o ético e o estético. Por outro lado, tinha esta característica única de possuir uma voz própria quando escreve, que é algo que muito poucos conseguem alcançar. Muito fiel à sua própria verdade e que desobedecia, quando queria, até aos próprios cânones literários. Além de introduzir uma certa forma de oralidade na escrita, tinha um vicio de pensar historicamente as questões, ou seja, de subverter e colocar a questão de ‘e se as coisas não tivessem acontecido exatamente assim?’. Aprendi com ele que tudo isto era possível: uma nova maneira de escrever, que era possível desobedecer sem infringir regras sintáticas, que era possível que o discurso oral fosse introduzido no discurso indireto e que era possível fazer esta mistura entre o que é facto histórico e o que é totalmente imaginário.
Enquanto leitores e escritores, muitos de nós tivemos o privilégio enorme de sermos contemporâneos de um escritor que viria a ser prémio Nobel. Ou seja, íamos acompanhado à medida que os livros iam saindo. Comecei a ler pela ordem, naqueles anos gloriosos, em que dois anos depois do Levantado do Chão já estava a publicar o Memorial do Convento. Foram anos de grande pujança. Escolheria O Ano da Morte de Ricardo Reis, pela ideia genial de pegar no facto de Fernando Pessoa não nos ter deixado o ano da morte do seu heterónimo. Disse-nos só que ele era um médico exilado no Brasil, por ser monárquico. O que Saramago faz neste livro é aproveitar essa lacuna na biografia do Ricardo Reis e a partir dela construir o ano em que ele morre, justamente um ano terrível, em 1936, em que estavam a acontecer coisas terríveis, num regresso em que obriga a personagem a contemplar o espetáculo do mundo. Chega a Lisboa e acha tudo opressor e sujo, mas não toma posição. Apenas deambula e observa. É uma total ficção com elementos, em que surge uma assombração misturada com a revolta dos marinheiros, que é um facto real e com a observação que ele tem da cidade de Lisboa e da formação das milícias fascistas. Temos aqui um lado absolutamente fantasista, com um heterónimo que ganha vida, e um lado realista, características muito marcantes e fundamentais da sua escrita.”
Ana Margarida Carvalho, 53 anos, é escritora e jornalista, autora do romance “Que Importa a Fúria do Mar” (2013) e de “Não se Pode Morar nos Olhos de um Gato” (2017), nomeado pela SPA e vencedor do Prémio Manuel Boaventura.
Andréa del Fuego
“Aprendi ser honesta com o próprio processo de escrita e afirmar o compromisso com a criação no sentido de dar às palavras um caminho ético. Saramago, ao assumir certa oralidade em sua narrativa, por exemplo, nos ensina que está na vida a própria literatura, tanto do ponto de vista ético como do ponto de vista estético. Seu processo de escrita é ele altamente pedagógico para um escritor, quando Saramago trabalha com sua experiência numa região rural, assim como na pesquisa histórica ou até assumindo impressões fortuitas como no surgimento do título de O Evangelho Segundo Jesus Cristo: ao andar pela rua, acredita ter lido a frase que, mesmo não sendo real, a incorpora tal como a vislumbrou, ainda que não seja o próprio Jesus o evangelista de seu romance. Uma escrita que não esconde seu próprio processo. Entre muitas outras lições, aprendi e aprendo que a escrita literária é a vida mesma com seu espanto e absurdo.
O meu livro favorito de Saramago é O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Foi meu primeiro contacto com a obra saramaguiana, o primeiro impacto com a sua audácia literária. É um livro que fala sobre justiça, culpa e herança na mais perfeita ironia pedagógica.”
Andréa del Fuego é uma escritora brasileira de 47 anos, autora do romance “Os Malaquias” (2010), vencedor do Prémio José Saramago. Publicou ainda os romances “As Miniaturas” (2013) e “A Pediatra” (2021).
Dulce Maria Cardoso
“Não sinto que aprendi diretamente com um escritor, diria que aprendi com todos. A escrita não é uma matéria objetiva que se aprende. Pode-se falar num diálogo através do tempo e do espaço, em que cada uns dos escritores e leitores vão acrescentando pontos e virgulas a este diálogo, não só em Portugal, como no mundo inteiro. Obviamente que o li e que a escrita dele está presente em mim. O que aprendi com ele foi uma ideia de escritor cidadão. Aprendi que se podia ter um papel ativo na sociedade e podíamos não ter medo de darmos a nossa opinião. Esse é o grande mérito de Saramago. Ele dizia sempre o que pensava, independentemente de agradar ou não. Era um indivíduo e dizer isto não é pouco, porque a maior parte de nós existimos num coletivo e cumprimos o que é que esse coletivo quer de nós. Ser um individuo, traçar para si um plano e ser fiel a ele é algo singular. Ele fê-lo e lutou por aquilo em que acreditou. Outra coisa que aprendi com Saramago é que, de alguma forma, o céu é o limite. É sabido que ele cresceu numa casa sem livros, sem cultura e privilégio e pôde existir com a sua inteligência fulgurante neste meio que é muito elitista. O seu percurso é de esperança e de mostrar que é possível irmos para um sítio diferente daquele a que o nascimento nos condena.
O meu livro preferido de Saramago é o Todos os Nomes. O encontro de um leitor com um livro é sempre misterioso e até uma questão de sorte, porque muitas vezes depende da altura em que se lê e das preocupações que temos nas nossas vidas e do contexto em que estamos. Mas gosto do livro por me parecer uma bela metáfora a ideia de que temos sempre de estar à procura de alguém e isso é um dos nossos deveres na vida, procurarmos quem nos permita ser mais felizes e muitas vezes esquecemo-nos que o que interessa em quase tudo, procurando pessoas e ideias é a busca e não propriamente o resultado. É um livro muito bem pensado e completo. Não é um livro com muitas pontas soltas. Saramago parte para os seus livros com uma pergunta, mas às vezes maça-se na procura da resposta. Ali não e conseguiu acabar muito bem o livro.”
Dulce Maria Cardoso é uma autora de 58 anos, autora dos romances “Eliete” (2018), “O Retorno” (2011) e “O Chão dos Pardais” (2009)
Filipa Martins
“A longevidade das oliveiras é grande, há relatos de algumas que ultrapassam os dois mil anos. Estas árvores são também conhecidas pela sua errância e capacidade de adaptação, abraçando novas moradas, de raízes soltas capazes de se prenderem a novos solos. A simbologia da oliveira casa na perfeição com a imagem de Saramago. Seja junto à oliveira centenária vinda da Azinhaga, hoje enraizada em frente à Fundação, ou à sombra de outra, à entrada da biblioteca da casa de Lanzarote onde o Nobel viveu, a presença do escritor é quase física. Numa entrevista à jornalista Anabela Mota Ribeiro, Saramago garantia que todos os escritores escrevem para o presente, talvez seja também uma forma de pedir amor. Estava mais ou menos conformado com a ideia remota de ser esquecido. Mas a verdade é que, como acontece com as oliveiras, há ecos do escritor e da sua obra que podem tocar com os dedos a eternidade. Há palavras que são para sempre.
Um livro favorito: Ensaio Sobre a Cegueira. A contemporaneidade do livro é desconcertante e, arrisco, ainda será mais pertinente daqui a um par de décadas. Faz parte do grupo muito restrito das obras imortais, como 1984, por exemplo. Ler Saramago é uma escalada. Galgamos degraus, galgamos penedos, galgamos ravinas. O legado que nos deixa pertence aos lugares das montanhas sem cumes, estamos sempre a acrescentar significância ao anteriormente lido à medida que a nossa subida prossegue. Cada ponto cimeiro parece ser suplantado pelo próximo parágrafo, recanto, suspiro. A ausência de cumes não diminui a urgência da subida. Os leitores sangram as mãos na corda de alpinista ou são levados pelo afã da ascensão.”
Filipa Martins é uma jornalista e escritora de 39 anos. Recebeu o Prémio Revelação em 2004, atribuído pela Associação Portuguesa de Escritores (APE), com “Elogio do Passeio Público”, o seu primeiro romance (2008)
Gisela Casimiro
“Com Saramago aprendi muito sobre vírgulas, mas também que a vida e o sonho são possíveis, independentemente das origens, da educação, dos meios. Aprendi a questionar a perceção de mim e dos outros, os factos, as projeções e convenções em torno das nossas identidades; aprendi a arriscar deixar cair e a reconstruir a máscara.
O meu livro favorito é o Ensaio sobre a Cegueira, por ter sido o primeiro livro que li do autor; tem uma memória afetiva associada. Também tenho muito vivas as vezes em que discuti o livro com outras pessoas, adolescentes como eu era na altura. Atualmente, à luz da pandemia e de tantas questões sociais prementes que vemos desde o Brasil aos Estados Unidos e ao Irão, sinto que se tornou ainda mais relevante e que importa revisitá-lo. Fazê-lo de uma perspetiva ativista, mais ainda. A alternativa seria O Evangelho segundo Jesus Cristo, pois a temática está muito presente na minha própria escrita, enquanto alguém educada nessa fé e que teve de questioná-la por vezes.”
Gisela Casimiro é uma escritora e ativista de 38 anos, autora de “Erosão” (2018). Alguns dos seus poemas integram a antologia “Rio das Pérolas” (2020) e a obra “Reconstituição Portuguesa”, organizada por Viton Araújo e Diego Tórgo, editada pela Companhia das Letras, em 2022
Gonçalo M. Tavares
“Lemos a realidade através de livros que ele escreveu antes. A partir do próprio Prémio Saramago, ele teve a generosidade de me acompanhar e de me ler. Tenho muita pena de ele não ter lido alguns livros como o Aprender a Rezar na Era da Técnica ou a Viagem à Índia, porque infelizmente morreu antes, gostava que os tivesse lido. Julgo que aprendi muito sobre a generosidade e como é que alguém com um percurso incrível, e já depois do Nobel, consegue dar atenção a escritores mais novos. Dar atenção e ler é perder tempo. É dar parte do seu tempo para pessoas que estão a começar. Ele foi muito generoso quando eu estava a começar. Acompanhou-me com uma generosidade muito franca e uma afetividade absolutamente extraordinária. Teve alguns gestos também muito bonitos, como quando me convidou a estar presente no momento da assinatura simbólica da Fundação José Saramago na sua casa e esse é um momento, entre outros, que não vou esquecer. Diria que aprendi toda esta questão da generosidade em relação às pessoas que estão a começar e é sobretudo isso que guardo. A escrita já a conhecemos todos, quando lida em voz baixa tem uma potência e quando lida em voz alta tem outra. De alguma maneira, mistura uma língua muito cuidada, quase erudita, com uma simplicidade invulgar e junto a isso com esta ideia de oralidade constante e que está completamente afastado de qualquer erudição. É uma mistura invulgar e que marca.
O Memorial do Convento, diria que é o meu favorito. Foi o primeiro que li e tem um imaginário que me interessa muito e uma escrita forte; mas poderia também falar das primeiras páginas do O Ano da Morte de Ricardo Reis, da chuva de Lisboa, que são muito fortes e ficam como imagem; o Ensaio sobre a Cegueira também. Provavelmente amanhã escolheria outro. O que sinto é que são clássicos. Em relação ao Ensaio sobre a Cegueira, estive recentemente na Turquia a apresentar uma tradução e na altura falaram que, em 2020, no momento da pandemia, o livro vendeu quase 50 mil exemplares. Foi um best seller precisamente porque era uma leitura quase analítica da pandemia antes do tempo. Os livros de Saramago têm esta característica e digamos que isso é algo absolutamente invulgar e que o coloca já como um clássico, isto é, com livros escritos antes e que são interpretações de factos posteriores.”
Gonçalo M. Tavares, 52 anos, é escritor e professor universitário, cuja primeira obra foi publicada em 2001. Destacou-se com a publicação do romance “Jerusalém” (2004), com o qual foi distinguido com o Prémio José Saramago. Com “Aprender a rezar na Era da Técnica” recebeu o Prix du Meuilleur Livre Étranger 2010, em França
João Reis
“É difícil separar o leitor do escritor. Li Saramago e o grosso da obra antes de pensar sequer em ser escritor. Diria que ele tem três fases, uma inicial, uma intermédia e uma final. A que mais me interessa como leitor e, em certa medida, escritor, é a intermédia. Ele tem um estilo próprio, sobretudo aquele discurso direto, corrido e quase usado como discurso indireto. Embora não seja uma influência minha, é um autor interessante, que por isso é lido e não só pela questão do Nobel. Teve a capacidade de criar – recorrendo muitas vezes a temas bíblicos – e recriar narrativas inseridas num contexto social e politico, conseguindo ser um criador de parábolas e de alegorias. Também por isso Saramago é, de facto, um escritor que atingiu outros níveis. Criou uma tabela de ética ou moralidade para um público generalizado trazendo essa esfera para a literatura.
Comecei a lê-lo ainda bastante novo, quando era adolescente. Li nessa altura o Memorial do Convento e o Evangelho segundo Jesus Cristo, que na altura me marcaram muito. Depois mais tarde, o Todos os Nomes e O Ano da Morte de Ricardo Reis, que são os mais fortes, no meu entender, todos pertencentes a esta fase intermédia. Foram sempre aqueles que mais me apelaram ao longo da vida.”
João Reis é um escritor de 37 anos, autor de vários romances, entre eles, a “Noiva do Tradutor” (2019), “A Avó e a Neve Russa” (2017), finalista do Prémio Fernando Namora, e “A Devastação do Silêncio” (2018)
João Tordo
“Comecei a ler o José Saramago ainda jovem, devia ter 21 anos, e a primeira obra que li foi O Ano da Morte de Ricardo Reis. Comecei pelo auge e foi muito importante. Durante alguns anos, Saramago foi o meu ponto de contacto. Eu vivia fora de Portugal e os únicos livros que pedia à minha família eram os livros dele, à medida que iam saindo. E teve um impacto muito grande, desde o primeiro livro que li, porque foi a descoberta de que em Portugal podia haver um escritor universal. Todos os escritores portugueses que tinha lido e embora gostasse muito de alguns, continuava a não sentir que eram escritores universais. Com o Saramago esse sentimento chegou. Estava a lê-lo, como podia estar a ler Borges ou Melville. Tem essa característica. Foi um homem que aliou uma linguagem invulgar e única com uma capacidade narrativa incrível e isso fazia muito falta na literatura portuguesa. Ele trouxe isso à tona. Numa época em que o romance português parecia adormecido um pouco à sombra de uma certa tradição, Saramago pegou em tudo ao mesmo tempo e fez tudo bem. Quando nos lembramos dos livros do Saramago não pensamos apenas no aspeto formal, mas na grande narrativa que ele nos contava.
O Ano da Morte de Ricardo Reis é, para mim, o grande livro do Saramago e o mais marcante. O Memorial do Convento – que foi amplamente estudado nas escolas – parece-me um desvio barroco aquilo que viria a ser a linguagem saramaguiana, que começa com o Levantado do Chão, ainda um pouco aos soluços, que depois ganha o seu grande esplendor no ano da morte, que para mim é o grande livro de Saramago. Depois desse ele encontra, finalmente, a sua voz.
João Tordo é um romancista de 47 anos, autor de mais de uma dezena de livros, entre eles o o romance “As três vidas”, com o qual venceu o Prémio Literário José Saramago em 2009
Valter Hugo Mãe
“A grande lição de Saramago, para além da excelência da literatura, passa por um exercício de cidadania. Para mim, o que me fascinou no Saramago e que me fascina, tem muito que vê-lo e entendê-lo como uma espécie de cidadão bravo, que se colocou diante das questões da fé e sempre disponível para o debate. Tenho dito, muitas vezes, que de facto a grande tragédia da contemporaneidade passa por não conseguirmos definir os inimigos, porque ninguém assume grandemente aquilo pelo que é responsável e passa por não ser possível haver um debate de boa-fé entre os antagonistas. Saramago era um antagonista de boa-fé. Era um indivíduo que acreditava naquilo que acreditava – e com toda a legitimidade – e dispunha-se ao confronto limpo. Ele estava disposto a isso e essa é a sua grande lição. Se pudéssemos, os que leem e os que escrevem, se pudéssemos replicar alguma que era apanágio dele, deveria ser isso. É uma excelência de cidadania.
O meu livro favorito de Saramago é O Evangelho segundo Jesus Cristo. Não será talvez o melhor exercício literário, o mais esplendoroso, mas é pessoalmente o livro que mais aproveitei e que mais passou perto daquilo que precisava na altura. Fui criado num ambiente de alguma opressão religiosa, em que a fé era uma questão institucional e acreditar passava um pouco por acreditar conforme nos mandavam acreditar e este livro é uma libertação da fé e da figura de Cristo, do património que essa figura pode deixar ao mundo, que na verdade não pertence a instituição nenhuma, não está a cargo de nenhuma empresa, e preciso de começar a ser visto como algo que é deixado a toda a gente. É, sobretudo, um património que começa por ser literário. Daí que a forma como essa obra me impactou quando era miúdo – li quando o livro saiu e teria 16/17 anos – foi muito benigna e muito sanadora. Então é, até hoje, o livro pelo qual tenho mais carinho.”
Valter Hugo Mãe, nome artístico do escritor português Valter Hugo Lemos, é um escritor e artista plástico de 51 anos. Publicou, entre outros títulos, “o remorso de baltazar serapião” (Prémio Literário José Saramago), “a máquina de fazer espanhóis” (Prémio Oceanos) e “As doenças do Brasil” (2021)
Yara Nakahanda Monteiro
“Saramago, para mim, é um escritor com um olhar literário interior direcionado a sul. A sua escrita é a voz dos anónimos. Em Saramago, os seus heróis e heroínas são anónimos. A escrita de Saramago vale bastante pelos princípios da igualdade e da justiça. Foca-se nos problemas sociais, políticos, na vida humana e também na desumanização. Fá-lo com mestria através da criação dos enredos e nunca com uma atitude paternalista em relação às suas personagens. O que aprendi como escritora foi exatamente esta sua capacidade de efabulação, que se mantém bastante contemporânea.
O meu livro preferido é o Levantado do Chão, que é uma referência. Saramago é um escritor humanista e esta obra retrata uma história de três gerações que invoca as classes trabalhadoras do Alentejo. Um outro seria o Ensaio sobre a Cegueira, que é único. Creio ter sido inspirado por uma passagem bíblica e por uma pintura. A narrativa retrata aquilo que nós, por vezes, enquanto sociedade demonstramos: uma cegueira inconsciente que se traduz na falta de empatia para com o próximo e também numa imobilidade na busca pela mudança positiva no mundo. Os seus livros levam o leitor a questionar-se sobre o status quo. Espero que sua obra continue a ser lida e festejada por muitos anos e séculos.”
Yara Nakahanda Monteiro tem 43 anos e é autora do romance “Essa Dama Bate Bué!” (2018) e de “Memórias, Aparições, Arritmias” (2021), livro vencedor do Prémio Literário Glória de Sant’Anna 2022