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A voz era masculina, grave e, aparentemente, calma. Na chamada telefónica para o Centro Distrital de Operações de Socorro, Carlos dava conta de que a mãe, mulher idosa e acamada, poderia ter sofrido uma paragem cardiorrespiratória e que precisaria de assistência médica na casa onde viviam, no centro de Grândola. A equipa que saiu em sinal de emergência do quartel no bairro de São João partiu como sempre, sem saber o que iria encontrar. Mas o que viu, no primeiro andar daquela casa, dificilmente se perderá nas memórias dos bombeiros: o cadáver excessivamente magro de uma mulher deitado numa cama em condições descritas como miseráveis.
O alerta chegou aos bombeiros já perto das 14h00, depois do almoço, do último sábado. Segundo uma fonte da corporação, dada a descrição da chamada, foi também ativada uma Viatura de Emergência Médica. Habituados a estes serviços, os bombeiros iam preparados para manobras de reanimação e um possível transporte ao hospital. Mas não era preciso nada disto. Ou era muito mais do que isso. Ao chegarem à casa amarela, com o número 10, Carlos, o filho, estava à espera deles sem grande conversa. “Tinha um olhar tão esquisito que eles ordenaram-lhe que aguardasse à entrada da casa, na parte de baixo”, descreveu a fonte.
Mal entraram, os bombeiros sentiram o cheiro nauseabundo que se foi adensando à medida que subiam as escadas até ao primeiro andar da pequena vivenda geminada, onde estava o quarto de Isabel, a mãe de Carlos. Quando ali entraram foi pior ainda. Isabel estava já cadáver, um corpo magro, apenas pele e osso. As feições da cara tinham sido engolidas pela magreza e a pele do corpo, por ser mantida na mesma posição “há tanto tempo”, estava coberto de escaras, algumas já “em estado de putrefação”, descreve o bombeiro com quem o Observador falou.
Junto à mulher havia fezes e urina que mostravam que ela estaria ali, sem qualquer assistência digna, há também muito tempo. “A rigidez cadavérica, no entanto, mostrava que não teria morrido há mais de 24 horas”, arrisca a mesma fonte. Mas o cenário em que estava revela que poderá ter sofrido ao longo de semanas.
Perante tudo o que viram, os bombeiros contactaram de imediato as autoridades locais, a GNR — que por se tratar de uma morte comunicou o caso à Polícia Judiciária. Habituados a lidar com este tipo de casos morte nos mais diversos contextos, a reação dos inspetores foi na do mesmo sentido dos bombeiros. Encontraram uma casa suja, sem qualquer cuidado, uma mulher aparentemente subnutrida, desidratada. Tudo apontava ter sido mal tratada pelo filho. O filho Carlos que não conseguiu encontrar uma explicação coerente para o sucedido.
Vizinhos arrependidos por nada terem feito, mas nunca pensaram que este seria o desfecho
Os estores da casa amarela onde tudo aconteceu estão fechados. Mas já há meses que permaneciam assim, pelo menos pouco antes de ter sido declarado o estado de emergência por causa da pandemia, em meados de março, e de todos terem ficado em confinamento. O que poderá ter agravado a situação.
Olinda Ferreira, que vai com frequência cuidar das plantas à casa mesmo em frente, a pedido da dona, lembra-se bem de ver Isabel à janela de sorriso rasgado numa cara “tão bonita” que escondia os seus 84 anos. Procurava dois dedos de conversa e “era uma senhora muito simpática”, descreve Olinda ao Observador. Ela própria já se tinha questionado várias vezes das razões da sua ausência. “Mas o que é feito da dona Isabel?”, perguntava-se. Mas como ela vivia com o filho e era até costume vê-lo à porta de casa, nunca ousou bater à porta e perguntar por ela. Hoje arrepende-se de não o ter feito e tenta agarrar-se à memória para interpretar todas as imagens que guarda desta família nos últimos meses.
São peças que, juntas, procuram chegar a uma qualquer justificação para aquilo que se passou, mas que conduzem sempre à mesma questão: como é que um filho deixa, indiferente, morrer uma mãe à fome?
No sábado, já depois de almoço, estava em casa, na mesma rua da casa amarela onde viviam Isabel e Carlos, quando ouviu o som da marcha de urgência das ambulâncias. Acreditou que era longe e deixou-se estar mas, mais tarde, acabaria por dar com o aparato policial mesmo à porta com o número, 10, a casa da Dona Isabel. Era a PJ que acabava de chegar.
Olinda foi ver o que se passava e acabou por ter que responder a algumas perguntas de uma inspetora da PJ que tentava reconstruir o que se passava. “Estava a falar com ela e ele a olhar para mim, ali à porta, com aqueles olhos. Fiquei com muito medo de falar e disse-o à inspetora”, recorda. Disse o que acabaria por revelar também ao Observador. Que é natural de Grândola, mas que esteve fora cerca de 30 anos e até trabalhou num lar de idosos. Há sete anos que regressou e há cinco que Isabel e o filho arrendaram aquela casa na sua rua.
Olinda não lhes conhecia mais nenhuma família. Lembra-se de Isabel, com dificuldades para andar, sair à rua para ir às compras à mercearia ou à padaria. Ou mesmo aos correios levantar a sua reforma. Hoje olha para trás e recorda-se da sua simpatia à janela, quando a via passar na rua. “Mas sempre que o filho se aproximava ela calava-se. Se calhar já sentia medo na altura”, tenta agora adivinhar.
Há dois anos, porém, Isabel deixou de ser vista na rua. O dono da mercearia mais próxima tenta encontrar uma explicação para isso: “Como a senhora já andava com muita dificuldade, sugeri ao senhor Carlos que me enviasse uma mensagem com a lista se compras. Eu respondia com o valor a pagar e ia lá levar-lhe à porta, para ela não ter que sair”, lembra ao Observador, sem querer que o seu nome apareça. Fazia-o pela D. Isabel, como faz a outros clientes idosos. “Sempre o achei de uma inteligência acima da média e muito simpático”, descreve, embora nunca tenha questionado porque não era ele a ir buscar as compras.
Merceeiro viu Dona Isabel há quatro meses
Carlos, 54 anos, nunca saía de casa. E numa das vezes que abriu a porta para receber as compras, o rapaz da mercearia ainda viu a dona Isabel sentada num sofá. “Até se meteu comigo”, lembra. Terá sido há cerca de quatro meses, antes do estado de emergência.
Para as vizinhas, que na rua procuram umas nas outras explicações para o que aconteceu ali por detrás da parede ao lado, Carlos era “um homem assustador”. Tinha o cabelo e a barba compridos, de alguém que não se cuida e raramente saía à rua. Não trabalhava e abria a porta apenas para receber encomendas. Por vezes Olinda via-o abrir a portinhola de casa quando dava conta de um barulho qualquer. Especialmente quando ela ia tratar das plantas da casa da frente. “Via que era eu, olhava para mim com aquele olhar e dizia bom dia ou boa tarde numa voz muito grossa. Metia medo”, diz agora. Medo que partilhou com a inspetora da PJ quando prestou declarações e que só melhorou quando esta lhe disse que ele ia ser detido pela morte da mãe.
Carlos vivia ali com a mãe desde o divórcio, há cinco anos. Antes, apesar de ter crescido em Grândola, onde “sempre foi um bom aluno”, como revelou outra vizinha, vivia em Santiago do Cacém e até terá trabalhado na rádio local. Não se sabe a fazer o quê. “Ele nunca recuperou da separação. Ainda usava a aliança!”, constata Olinda.
As únicas pessoas que via ir lá a casa, nos últimos dois anos, eram o carteiro, com o cheque da reforma de Isabel, o senhor da mercearia, o do gás e a equipa da Meo. “Vinham muitas vezes. Ele devia passar o dia com a televisão e a internet”, arrisca afirmar.
6878
Número de processos de apoio a pessoas idosas que a APAV recebeu entre 2013 e 2018, em que 5.482 foram vítimas de crime e de violência. Em 36,9% dos casos, as vítimas eram o pai ou mãe do agressor.
APAV
PJ acredita que Carlos desejou a morte da mãe
Pai e mãe chegaram a ter um cão e um gato em casa. Nem o cão vinha a rua. As vizinhas não sabem o que lhes aconteceu. Sabem todas, porém, que o cheiro nauseabundo há muito que incomodava. Ao ponto de a dona do salão de cabeleireiro, mesmo ao lado, manter a porta fechada para não o sentir.
Hoje o que Olinda sente é arrependimento. “Cheguei a dar conta a uma pessoa que os estores estavam demasiado fechados e que era estranho. Aaprendi nos cursos que fiz que, na casa onde vive um idoso, se há estores fechados muito tempo as autoridades devem ser alertadas”, diz, de coração apertado por ter delegado o problema noutra pessoa e não ter ido de imediato alertar as autoridades.
Para a Polícia Judiciária, Carlos, filho único, aproveitou-se da reforma da mãe e não cuidou dela. Mais. Sem coragem para lhe tirar a vida de outra forma, com uma faca ou uma arma de fogo, deixou de tratá-la e cuidá-la, à espera que morresse. Mas tê-lo-á desejado. Por isso Carlos não responde apenas pelos crimes de maus tratos ou de violência doméstica, mas sim pelo de homicídio qualificado. “Ele sabia o que iria acontecer à mãe sem alimentos e cuidados e resignou-se com esse fim”, considera fonte da PJ contactada pelo Observador. O juiz de instrução que o ouviu terá concordado e mandou-o esperar o desenvolvimento do caso em prisão preventiva.
Entre 2013 e 2018, a Associação de Apoio à Vítima registou um total de 6.878 processos de apoio a pessoas idosas, em que 5.482 foram vítimas de crime e de violência. Em 36,9% dos casos, as vítimas eram o pai ou mãe do agressor.