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Manuel Vicente e Orlando Figueira
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Manuel Vicente e Orlando Figueira

Manuel Vicente e Orlando Figueira

O que levou à acusação de corrupção contra Manuel Vicente?

Pagamentos de cerca de 800 mil euros e empregos pelo arquivamento de casos contra o n.º 2 de Angola estão na base da acusação. Vicente ainda pode vir a ser alvo de um mandado de detenção internacional

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Um caso de corrupção de um procurador da República não é muito comum na Justiça portuguesa. Uma investigação sobre a alegada corrupção e violação do segredo de justiça de um procurador do departamento de elite do Ministério Público, o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), muito menos — aliás, nunca tinha acontecido.

Se juntarmos esse caráter inédito ao facto de o número 2 do Governo de José Eduardo dos Santos desde 26 de setembro de 2012 ser o principal suspeito de ter corrompido o magistrado para conseguir o arquivamento de investigações abertas contra si, só podemos concluir que se trata de um processo explosivo. Não só por envolver Manuel Vicente, — o ex-sr. Petróleo que governou durante mais de dez anos a Sociedade Nacional de Combustíveis de Angola (Sonangol) e está nos últimos meses do seu mandato como vice-Presidente de Angola –, mas também, e por arrasto, outras figuras de topo do regime angolano, como os generais Hélder Dias Vieira ‘Kopelipa’ (ministro de Estado e chefe da Casa Militar de José Eduardo dos Santos) e Leopoldino Nascimento ‘Dino’ (consultor de Kopelipa e chefe da Casa de Segurança do Presidente). Ou o procurador-geral da República de Angola, o igualmente general João Maria de Sousa. Todos eles altos responsáveis políticos em Angola.

O carácter explosivo, contudo, não foi extinto com o despacho de encerramento de inquérito. Manuel Vicente foi acusado pelo DCIAP sem ter sido ouvido — o que a lei portuguesa permite. As procuradoras responsáveis pela investigação enviaram uma carta rogatória para Angola para que Vicente fosse constituído arguido e interrogado. Mas a Procuradoria-Geral de Angola recusou-se a cumprir tal carta rogatória, já que se tratava do vice-Presidente de Angola.

Apesar de o advogado de Manuel Vicente (Rui Patrício, do escritório Morais Leitão, Galvão Teles & Associados) ter sido notificado da acusação, o DCIAP expediu na semana passada uma nova carta rogatória, solicitando à PGR de Angola que notifique igualmente Manuel Vicente do despacho de acusação proferido contra si. Ao que o Observador apurou, caso as autoridades angolanas recusem cumprir esta segunda carta rogatória poderá ser emitido um mandado de detenção internacional com o nome do vice-Presidente de Angola. A concretizar-se a emissão de tal mandado, Manuel Vicente poderá ser detido em qualquer país que aceite cumprir o pedido de auxílio internacional.

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Essa intenção ficou em aberto no despacho de acusação emitido no dia 16 de fevereiro. Ao contrário do que fizeram com todos os arguidos, as procuradoras Inês Bonina e Patrícia Barão não quiseram tomar nenhuma posição sobre as medidas de coação que devem ser aplicadas pelo Tribunal de Instrução Criminal a Manuel Vicente enquanto arguido formalmente acusado dos crimes de corrupção, branqueamento de capitais e falsificação de documento. “Oportunamente nos pronunciaremos assim que for recebida resposta à carta rogatória expedida às autoridades judiciárias angolanas a solicitar notificação do despacho de acusação ou no caso de não vir a ser dada resposta à mesma”, lê-se no documento consultado pelo Observador.

O DCIAP expediu na semana passada uma nova carta rogatória, solicitando à PGR de Angola que notifique Manuel Vicente da acusação. Caso as autoridades angolanas recusem cumpri-la, poderá ser emitido um mandado de detenção internacional com o nome do vice-Presidente de Angola.

Esse pode ser o próximo episódio de um processo cuja fase de inquérito terminou com a acusação emitida na quinta-feira, dia 16, e divulgada em primeira mão pelo Observador, contra Manuel Vicente, o procurador Orlando Figueira, o advogado Paulo Blanco e Armindo Pires (amigo e representante de Vicente).

Além de imputar crimes graves ao vice-Presidente de Angola, o texto da acusação subscrito pelas procuradoras Inês Bonina e Patrícia Barão, é também um escrutínio duro sobre a forma como o DCIAP liderado por Cândida Almeida (não) investigou as denúncias de corrupção feitas por ativistas angolanos ou os indícios de branqueamento de capitais que foram sendo transmitidos pelos bancos. Porquê? Porque o procurador Orlando Figueira, acusado de corrupção passiva na forma qualificada, branqueamento de capitais, falsificação de documento e violação do segredo de justiça, era o titular de boa parte desses inquéritos.

Também os negócios de Manuel Vicente são analisados, ficando a conhecer-se um pouco melhor a rede de influência do ainda vice-Presidente de Angola na economia portuguesa.

O primeiro processo sobre Angola e a viagem a Luanda

Acabado de chegar ao DCIAP e com poucos casos, Orlando Figueira começou por receber em 2008 um processo mediático: o caso Banif. Tratava-se de uma queixa criminal da autoria do Estado angolano, através da sua Procuradoria-Geral da República, contra três empresários portugueses por burla qualificada. Estava em causa a transferência, por ordens do presidente José Eduardo dos Santos, de cerca de 192 milhões de dólares (cerca de 182 milhões de euros ao câmbio actual) para Francisco Cruz Martins (advogado) e António Figueiredo (empresário entretanto falecido) comprarem em nome de Angola metade do capital social do Banif — então liderado por Horácio Roque, homem próximo, por via da mulher Fátima Roque, da UNITA de Jonas Savimbi. As ações terão sido adquiridas mas não foram transmitidas ao Estado angolano. Daí a queixa-crime por burla qualificada.

O general Hélder Vieira Dias 'Kopelipa (à esquerda) e o general Leopoldino Nascimento 'Dino' (à direita)

Paulo Blanco era o advogado da PGR de Angola e foi nesse caso que conheceu Orlando Figueira. Blanco começou a ganhar notoriedade pública como advogado da PGR de Angola (e, a título pessoal, do própro procurador-geral João Maria de Sousa) em Portugal. Mais tarde viria a ganhar posição junto de Manuel Vicente, de outras figuras de topo do regime do MPLA e de várias empresas angolanas com processos do DCIAP.

Na prática, os angolanos apenas queriam que Cruz Martins, os herdeiros de António Figueiredo e o empresário Eduardo Morais (um terceiro elemento que se juntou mais tarde ao grupo de testas-de-ferro) devolvessem o dinheiro. A queixa-crime era apenas para assustar e pressionar a devolução do dinheiro. Concretizada a devolução, Angola desistia da queixa e o processo era arquivado. Era esse o plano e Orlando Figueira aceitou participar no jogo. No fim, os angolanos recuperaram parte do dinheiro e o processo foi arquivado.

Mais tarde, já em 2010 e 2011, Cândida Almeida distribuiu a Orlando Figueira três processos que envolviam figuras de topo do regime angolano. A diretora do DCIAP não queria perder o know-how que Figueira tinha desenvolvido sobre Angola. Acresce que Paulo Blanco e o procurador-geral João Maria de Sousa ficaram muito satisfeitos com o trabalho do procurador do DCIAP.

Tão satisfeitos ficaram que convidaram Orlando Figueira (e o igualmente procurador Vítor Magalhães) para visitarem Angola durante a “Semana da Legalidade”, entre 24 de abril e 2 de maio de 2011, por ocasião do 32.º aniversário da PGR de Angola. Figueira participou em colóquios sobre corrupção, foi apresentado na comunicação social angolana como “convidado especial do procurador-geral da República, Dr. João Maria de Sousa” e participou no “no ato central das comemorações do 32.º aniversário da institucionalização do Ministério Público em Angola”. Longe de imaginar que seis anos depois seria acusado de corrupção passiva, branqueamento de capitais, falsificação de documento e violação do segredo de justiça, classificou a corrupção como um flagelo, afirmou que o “combate à corrupção é um direito de cidadania” e inspirou os jornalistas angolanos a adaptarem um ditado português: “Quem não tem cabras e cabritos vende é suspeito”.

De acordo com o despacho de acusação, foi nesta viagem a Angola que Orlando Figueira começou a manifestar “o seu desalento perante os cortes ocorridos nos vencimentos dos magistrados em Portugal e a sua disponibilidade para sair do Ministério Público e passar a exercer funções na na iniciativa privada em Portugal ou no estrangeiro”, lê-se no documento.

O almoço no Ritz

Regressado a Portugal, Orlando Figueira soube que Carlos Silva, presidente do Conselho de Administração do Banco Millennium Atlântico e do Banco Privado Atlântico Europa e vice-presidente do BCP, seria ouvido no DCIAP como testemunha. A inquirição decorreu no dia 20 de maio de 2011 e ficou a cargo do procurador Rosário Teixeira.

Após a inquirição no DCIAP, Carlos Silva convidou Orlando Figueira para almoçar no Ritz. Figueira aceitou e voltou a queixar-se dos cortes salariais que tinha sofrido, manifestando a sua "inteira disponibilidade de ir trabalhar para Angola", lê-se na acusação.

Carlos Silva não é um homem qualquer. Chegou a trabalhar no BES, tendo sido uma das figuras angolanas que Ricardo Salgado equacionou para liderar o BES Angola no final dos anos 90. Preterido face a Álvaro Sobrinho, Carlos Silva saiu do BES, aproximou-se de Manuel Vicente, então líder da Sonangol, e convenceu-o a apostar no Banco Privado Atlântico — a instituição financeira da qual Carlos Silva foi fundador e o primeiro chief executive officer. Carlos Silva rapidamente se transformou num dos vários braços direitos de Manuel Vicente para a área financeira.

Após a inquirição do DCIAP, onde esteve acompanhado pelo advogado Paulo Blanco, Carlos Silva convidou Orlando Figueira para almoçar no Ritz — hotel de luxo que o banqueiro conhecia bem por aí se hospedar com regularidade sob o nome de “Sr. X”. Figueira aceitou e, de acordo com a acusação, voltou a queixar-se ao também vice-presidente do Conselho Geral e de Supervisão do BCP dos cortes salariais que tinha tido por via da política de austeridade imposta pelo Governo de Passos Coelho e manifestou a sua “inteira disponibilidade de ir trabalhar para Angola”, lê-se no despacho de acusação.

De acordo com as provas reunidas pelas procuradoras Inês Bonina e Patrícia Barão, a disponibilidade manifestada por Figueira chegou aos ouvidos de Manuel Vicente. Um mês depois, Orlando Figueira abriu uma conta no BPA Europa em euros e em dólares.

Carlos Silva, presidente do BCP Europa e vice-presidente do BCP.

O caso Nasaki

Quando este almoço acontece, Orlando Figueira já tinha uma denúncia em mãos contra Manuel Vicente — e que também envolvia os generais Kopelipa e Dino. Rafael Marques, jornalista e ativista, e Adriano Parreira, ex-embaixador de Angola, alegavam na queixa apresentada em março de 2011 que os três dirigentes angolanos teriam alegadamente utilizado as empresas Portmill Investimentos e Telecomunicações, a Damer Industries, a TV Zimbo (principal televisão privada angolana) e a Nazaki Oil & Gás na alegada prática de crimes de corrupção e de branqueamento de capitais. Estava em causa a alegada aquisição de participações na operadora de telecomunicações Movicel e no Banco Espírito Santo Angola.

Não se esqueça dos nomes da Portmill e da Damer mas, para já, concentremo-nos na Nazaki para perceber melhor as relações entre Manuel Vicente e os generais Kopelipa e Dino — a verdadeira troika angolana sem a qual nenhum negócio relevante é feito em Luanda.

Eis uma empresa que já teve honras de primeira página do prestigiado diário britânico “Financial Times” (FT), mas não pelas melhores razões. Foi associada a uma investigação da Securities and Exchange Commission (SEC), a polícia da Bolsa dos Estados Unidos, por suspeitas de corrupção — entretanto parcialmente arquivada. Porquê? Porque a Nazaki era sócia da Cobalt — empresa norte-americana que descobriu no final da década passada um dos poços de petróleo mais promissores de Angola. Para conseguir a concessão para a exploração do petróleo, a Cobalt teve de ter três sócios angolanos:

  • Sonangol — 20% do capital;
  • Apler Oil — 10% do capital;
  • Nazaki — 30%.

Não se sabe de quem é a Apler Oil. E a Nazaki? Se disse Manuel Vicente, acertou em parte; se acrescentou ‘Kopelipa’ e ‘Dino’, ganhou o jackpot. De acordo com o repórter do FT, Tom Burgis, a troika angolana era sócia da Nazaki através da empresa Aquattro International.

As suspeitas de corrupção do caso Nazaki são simples: Manuel Vicente, 'Kopelipa' e 'Dino' teriam recebido alegados subornos para que a Sonangol autorizasse a concessão da Cobalt. Manuel Vicente chegou a admitir ao Financial Times que era sócio da Nazaki, mas alegou que não sabia que a empresa tinha feito negócios com a Cobalt.

As suspeitas de corrupção no negócio eram simples: Manuel Vicente, ‘Kopelipa’ e ‘Dino’ teriam recebido alegados subornos para que a Sonangol (liderada por Vicente) autorizasse a concessão da Cobalt — era a petrolífera pública que geria e explorava os recursos angolanos, logo as as concessões privadas dependiam da empresa liderada por Vicente.

Manuel Vicente chegou a admitir ao repórter do FT que era sócio da Nazaki, mas alegou que não sabia que a empresa tinha feito negócios com a Cobalt. O mesmo garantiu ‘Kopelipa’.

Com a investigação da SEC, contudo, a troika angolana foi obrigada a vender a sua participação na Nazaki, aparecendo a Sonangol (liderada por Manuel Vicente) como compradora. Não se sabe ao certo quanto a Sonangol pagou, mas a participação da Nazaki estava avaliada em 1,3 mil milhões de euros, o que poderá ter levado a um encaixe de cerca de 650 milhões de euros para a troika dirigente angolana.

Os processos contra a nomenklatura angolana

No centro do despacho de acusação, consultado pelo Observador, estão três investigações relacionadas com Angola e com figuras do regime do MPLA, que, como se viu acima, foram distribuídas a Orlando Figueira por decisão da procuradora-geral adjunta Cândida Almeida, então diretora do DCIAP e agora testemunha de acusação. Todos eles têm Manuel Vicente como protagonista.

Além do caso Nazaki, existia uma segunda investigação aberta em setembro de 2011 sobre a aquisição de imóveis no edifício de luxo Estoril Sol Residence. A Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) tinha comunicado ao DCIAP uma falta de diligência no âmbito da lei contra o branqueamento de capitais por parte de um fundo de imobiliário fechado chamado Fundbox e do Banco Invest. Isto é, o fundo tinha vendido apartamentos a Manuel Vicente e a outras figuras políticas do regime angolano, sem que as transações concretas tivessem sido comunicadas. A lista das figuras envolvidas era extensa:

  • O general ‘Dino’ (chefe da Casa de Segurança do presidente José Eduardo dos Santos);
  • José Pedro Morais Júnior (ex-ministro das Finanças de Angola);
  • Luísa Giovetty (mulher do general ‘Kopelipa’);
  • Manuel António Rabelais (ex-ministro da Comunicação)
  • Álvaro Sobrinho (então presidente do BES Angola).

Da lista constava igualmente Vladimir Sergeenko (ex-governador da região da Federação Russa). Todos eles eram “Pessoas Politicamente Expostas” — classificação que abrange os titulares de altos cargos públicos e políticos. Logo, existia a obrigação de a Fundbox e o Banco Invest comunicarem as respetivas transações à CMVM — o que não aconteceu.

No caso de Manuel Vicente, estava em causa o pagamento de cerca de 3,8 milhões de euros por uma fração no 9.º andar no Estoril Sol Residence.

Manuel Vicente pagou cerca de 2,6 milhões de euros em março de 2011 através de uma transferência da sua conta pessoal no BCP (onde era vice-presidente), mas o resto do dinheiro foi pago entre julho de 2007 e agosto de 2008 através de três sociedades offshore — daí os indícios de branqueamento de capitais:

  • Damer Industries — 95.775 euros;
  • Delta Shipping Overseas UK — 383.100 euros;
  • Portmill — 383.100 euros.

Pormenor relevante: estas três sociedades offshore foram também utilizadas para pagar os andares de ‘Dino’ e ‘Kopelipa’. Isto é, as sociedades fizeram três transferências globais de cerca de 1,8 milhões de euros entre julho de 2007 e agosto de 2008 para a Fundbox que serviram para pagar o imóvel de Vicente (861.975 euros) e os dos generais (cerca de 930.600 euros).

As três sociedades offshore que pagaram parte do andar de Vicente foram também utilizadas para pagar os andares de 'Dino' e 'Kopelipa'. As sociedades fizeram três transferências globais de cerca de 1,8 milhões de euros.

Logo, e tendo em conta que tinham sido utilizadas as mesmas sociedades para pagar os apartamentos dos três dirigentes angolanos, as suspeitas contra Manuel Vicente, ‘Kopelipa’ e ‘Dino’ eram indissociáveis.

O terceiro inquérito, aberto a 5 de janeiro de 2012, resultou precisamente da autonomização das suspeitas relativas a Manuel Vicente. Aproveitando um requerimento apresentado pelo advogado Paulo Blanco, onde alegadamente se justificava, através de 22 documentos, que os cerca de 3,8 milhões de euros pagos pelo apartamento no Estoril tinham origem nos rendimentos de trabalho obtidos na Sonangol, EP, Sonalis, Lda (uma participada da petrolífera estatal angolana), Unitel, SA (principal operadora de telecomunicações) e Banco Angolano de Investimento, SA, Orlando Figueira propôs a Cândida Almeida a abertura de um inquérito autónomo apenas para investigar as suspeitas sobre Manuel Vicente. A então diretora do DCIAP concordou.

No mesmo dia, Figueira abre esse novo inquérito só para as suspeitas de Manuel Vicente, fazendo questão de referir no primeiro processo onde as suspeitas foram inicialmente investigadas que o vice-Presidente de Angola não era suspeito naqueles autos. Um despacho que, no seu raciocínio jurídico, deu-lhe legitimidade para desentranhar os 22 documentos que Paulo Banco tinha juntado sobre os rendimentos de Manuel Vicente, de forma a que os mesmos não ficassem acessíveis a quem consultasse os autos após um eventual arquivamento — uma espécie de medida preventiva contra jornalistas. Os documentos foram entregues a Blanco, tendo mais tarde sido encontrada uma cópia dos mesmos na casa de Figueira.

Apenas sete dias após ter instaurado um inquérito ao ex-presidente da Sonangol, Orlando Figueira arquivou o mesmo, argumentando que “é manifesto que [Manuel Vicente] tem capacidade financeira mais do que suficiente para adquirir a fração autónoma. Donde, tudo aponta no sentido de que o dinheiro utilizado na aquisição (…) tenha proveniência lícita”.

Orlando Figueira abriu uma investigação apenas para escrutinar as suspeitas que existiam contra Manuel Vicente. Apenas sete dias após ter aberto o inquérito, Orlando Figueira arquivou o caso, argumentando que "é manifesto que [Manuel Vicente] tem capacidade financeira mais do que suficiente para adquirir" o apartamento. Donde, tudo aponta no sentido de que o dinheiro utilizado na aquisição (...) tenha proveniência lícita".

As procuradoras Inês Bonina e Patrícia Barão criticam no seu despacho de acusação a fundamentação de Figueira, já que não especificou concretamente as remunerações a que se referia ou aos montantes que Vicente declarara fiscalmente e muito menos especificou qual a documentação que fundamentava o seu raciocínio. Limitou-se a afirmar genericamente que tinha analisado a documentação apresentada por Paulo Blanco.

O arquivamento decidido por Figueira ocorreu 14 dias antes de Manuel Vicente tomar posse como ministro de Estado para a Coordenação Económica do Governo de José Eduardo dos Santos.

O PGR de Angola e a violação do segredo de justiça

Os dois primeiros inquéritos acima referidos foram comunicados por Orlando Figueira a Paulo Blanco ainda antes de este advogado ter alguma intervenção nos dois processos — o que constitui, na óptica do DCIAP, um indício para a acusação de violação de segredo de justiça que é imputada aos dois juristas.

No despacho de acusação é mesmo citado um email de Paulo Blanco para João Maria de Sousa, procurador-geral da República de Angola, como prova de que tal crime terá sido alegadamente praticado por Orlando Figueira e por Blanco, tal como o Público noticiou. Enviado no mesmo dia em que o magistrado abriu a sua primeira conta no Banco Privado Atlânico (BPA) Europa, Blanco afirma no referido email que Figueira lhe tinha garantido que os “documentos comprovativos de rendimentos profissionais e/ou prémios de gestão de cidadãos angolanos visados no âmbito desse inquérito não ficariam acessíveis a qualquer consulta pública, nomeadamente de jornalistas”.

No dia seguinte, Paulo Blanco voltou a dar informações sobre o processo em segredo de justiça, informando o procurador-geral João Maria de Sousa que “não constava do processo qualquer esclarecimento à CMVM”.

As procuradoras responsáveis pela acusação enfatizam no seu despacho que o “Estado angolano nunca foi interveniente processual a qualquer título nesses autos”, motivo pelo qual, entendem as magistradas, Paulo Blanco não poderia ter passado aquelas informações.

General João Maria de Sousa, procurador-geral da República de Angola

O Ministério Público imputa ainda uma segunda violação de segredo de justiça a Orlando Figueira relacionada com a queixa de Rafael Marques e de Adriano Parreira. Numa data que o despacho de acusação não precisa, mas que é “seguramente anterior a 22 de setembro de 2011”, Figueira terá comunicado “a existência deste inquérito, bem como os visados pela investigação e o seu objeto” a Paulo Blanco. Assim como informou sobre diligências que iriam ocorrer, como a audição de Rafael Marques que se concretizouno dia 22 de setembro de 2011.

Na posse dessa informação, Blanco enviou no mesmo dia uma carta ao procurador-geral João Maria de Sousa a informá-lo da inquirição do jornalista angolano nas instalações da Polícia Judiciária, acrescentando que iria tentar saber o conteúdo da mesma inquirição. O advogado frisou que, tendo em conta que o jornal Público tinha noticiado que o DCIAP estava a investigar a compra de 24% do BES Angola por parte da Portmill, justificava-se que esta sociedade promovesse uma diligência junto dos autos, uma vez que até ali “estava de alguma forma constrangida de agir no processo pendente no DCIAP”, sob pena de “indiciar o uso de informação decorrente da quebra do segredo de justiça”, lê-se no despacho de acusação.

Uma terceira imputação de violação do segredo de justiça a Figueira baseia-se na alegada entrega de uma cópia da carta rogatória que o DCIAP enviou para Angola para proceder à recolha de informação documental sobre a estrutura acionista e os titulares de órgãos sociais da Portmill, assim como para realizar a inquirição do presidente da empresa (Zandre Finda) e dos restantes administradores. A carta rogatória terá sido fotocopiada a 27 de dezembro de 2011.

Vicente vende casa e o negócio do BIG

Chegado ao Governo angolano a 30 de janeiro de 2012 como ministro de Estado e da Coordenação Económica, o ex-líder da Sonangol decidiu vender o seu apartamento ao seu amigo e representante Armindo Pires — que já tinha assinado a escritura de compra em nome de Vicente. Por 4 milhões de euros (mais 169 mil euros do que o preço pago à Fundbox), Vicente vendeu o imóvel à empresa Oceangest — Gestão e Empreendimentos Imobiliários, SA, de Armindo Pires. Até ao momento, e de acordo com a acusação do DCIAP, o apartamento do Estoril “não foi ocupado, arrendado ou alienado, mantendo-se sem qualquer rendibilidade e formalmente como ativo da Oceangest.

Pires é muito próximo de Vicente, sendo uma prova disso mesmo o facto de ter procurações do governante angolano para movimentar as suas contas bancárias e dispor do seu património imobiliário.

Chegado ao Governo angolano como ministro de Estado e da Coordenação Económica a 30 de janeiro de 2012, o ex-líder da Sonangol decidiu vender o apartamento ao seu amigo e representante Armindo Pires. Até ao momento, e de acordo com a acusação do DCIAP, o apartamento do Estoril "não foi ocupado, arrendado ou alienado".

A Oceangest veio a fundir-se com a sociedade gestora de investimentos Edimo — empresa de Edmilson Jesus, enteado de Manuel Vicente. Esta empresa é igualmente acionista do banco BIG, detendo 4,9% do capital social — posição avaliada em cerca de 6 milhões de euros e que foi transmitida por Manuel Vicente.

Voltemos às investigações aos responsáveis políticos angolanos. Enquanto as suspeitas contra Manuel Vicente eram arquivadas, os generais ‘Kopelipa’ e ‘Dino’ (que, como já referimos, pagaram parte dos seus apartamentos no Estoril através das mesmas empresas e transferências bancárias que serviram para pagar parte da casa de Vicente) continuavam a ser investigados.

Por tudo isto, o despacho de arquivamento teve a oposição da procuradora adjunta Teresa Sanchez. Trata-se da magistrada que coadjuvava Orlando Figueira nos inquéritos sobre Angola, mas que não chegou a assinar aquele arquivamento, pois entendia que, se se arquivava as suspeitas contra Vicente, devia tomar-se a mesma decisão para os indícios sobre ‘Kopelipa’ e ‘Dino’, pois a proveniência do dinheiro, em parte, era a mesma: a Damer e a Portmill.

Sobre as suspeitas relacionadas com ‘Kopelipa’, ‘Dino’ e os restantes titulares de cargos políticos em Angola, Orlando Figueira nunca proferiu despacho para que todas estas “Pessoas Politicamente Expostas” justificassem os rendimentos que lhes permitiram adquirir apartamentos de luxo no Estoril. O arquivamento do inquérito aberto contra estes responsáveis angolanos só veio a ser decretado a 26 janeiro de 2015 pelo procurador Paulo Gonçalves — três anos depois de Manuel Vicente.

As contrapartidas

Pouco mais de um mês após ter recebido os autos da investigação aos responsáveis políticos angolanos, e já depois de ter almoçado com Carlos Silva no Hotel Ritz, Orlando Figueira decidiu abrir com o seu filho uma conta no banco liderado por Carlos Silva: o Banco Privado Atlântico (BPA) Europa.

No período a que se reportam os factos que constam da acusação, o BPA Europa era detido a 100% pela sociedade Atlântico Europa, SGPS, que por sua vez era maioritariamente detida pelo BPA (casa-mãe do banco com sede em Luanda). O BPA tem uma participação do Banco Millennium Angola (BMA), que, por sua vez, era detido em 29,9% pela Sonangol. Em 2016, concretizou-se uma fusão entre o BMA e o BPA — o que deu origem ao Banco Millennium Atlântico. Carlos Silva, que é visto como um homem de Manuel Vicente em Luanda, é o líder do Conselho de Administração da nova instituição.

De acordo com a acusação, “o arguido Manuel Vicente, por intermédio do arguido Paulo Blanco (…), contactou com o então vice-presidente do Conselho de Administração do BPA Europa, André Navarro, e deu-lhe conta de que o arguido Orlando Figueira iria tornar-se cliente desse banco, bem como que a abertura de contas e a gestão dos assuntos deste cliente irá exigir um acompanhamento especial e que iria obedecer a indicações suas”, lê-se no despacho.

Segundo as procuradoras, "o pagamento da primeira prestação do valor acordado pelos arguidos" Manuel Vicente, Paulo Blanco, Armindo Pires e Orlando Figueira pelo arquivamento do inquérito da casa do Estoril e de outros passou por um empréstimo do BPA Europa no valor de 130 mil euros.

Segundo as procuradoras responsáveis pela investigação, “o pagamento da primeira prestação do valor acordado pelos arguidos” Manuel Vicente, Paulo Blanco, Armindo Pires e Orlando Figueira pelo arquivamento do inquérito da casa do Estoril e de outros passou por um empréstimo do BPA Europa no valor de 130 mil euros.

A título de “transferência de utilização”, o crédito foi concedido a 7 de dezembro de 2011 sem qualquer garantia. Nunca foi pago (apesar de Figueira ter fundos para o fazer, segundo o DCIAP) nem o banco reclamou o pagamento do crédito até ao dia em Figueira foi preso preventivamente, segundo a acusação. O que leva as procuradoras Inês Bonina e Patrícia Barão a afirmar na sua acusação que o contrato de mútuo é fictício, já que serviu apenas para “justificar a entrega de tal quantia a Orlando Figueira e ocultar o facto de a mesma ser proveniente de Manuel Vicente, bem como se destinar a compensar [Figueira] pela violação dos seus deveres profissionais públicos”.

Figueira terá justificado o empréstimo com o dinheiro que teria de pagar à sua ex-mulher no âmbito do respetivo processo de divórcio. O DCIAP diz que tal montante não ultrapassava os 43.600 euros — e que, nem mesmo assim, foi pago na totalidade. Paulo Blanco foi o advogado de Orlando Figueira durante a negociação do acordo com a ex-mulher do magistrado, tendo trabalhado de forma graciosa.

A 9 de janeiro de 2012, quatro dias depois de ter decidido abrir um inquérito autónomo a Manuel Vicente por causa da casa do Estoril e no mesmo dia em que mandou desentranhar os documentos sobre os rendimentos de Vicente no processo original da casa do Estoril, Orlando Figueira abriu uma segunda conta no BPA Europa. A 16 de janeiro, precisamente no dia em que o DCIAP expediu o seu despacho de arquivamento para Paulo Blanco, Figueira recebeu cerca de 210 mil dólares (cerca de 197,7 mil euros ao câmbio atual) de uma empresa chamada Primagest a partir de uma conta do BPA em Luanda. As procuradoras responsáveis pelos autos afirmam que a transferência foi “ordenada pelo arguido Manuel Vicente”.

No dia em que o DCIAP expediu o seu despacho de arquivamento para Paulo Blanco, Figueira recebeu cerca de 210 mil dólares de uma empresa chamada Primagest. As procuradoras responsáveis pelos autos afirmam que a transferência foi "ordenada pelo arguido Manuel Vicente".

A Primagest é uma sociedade fundada em 2007 que se encontra na órbita da Sonangol, sendo classificada pelo DCIAP como uma sociedade veículo — isto é, não tem instalações nem trabalhadores. A empresa tem inclusive vários administradores em comum com o BPA Europa. Por exemplo: Augusto Ramiro Batista, representante da Primagest, é administrador daquele banco desde agosto de 2010. O DCIAP não tem dúvidas de que a Primagest foi utilizada pela Sonangol e por dirigentes angolanos, como Manuel Vicente, para adquirir e gerir participações em “áreas de negócio e sociedades às quais não pretendiam ter uma ligação formal”, lê-se na acusação.

A representante da Primagest em Portugal chama-se Angélica Conchinha. Esta cidadã angolana exercia igualmente funcões na Ifogest – Consultadoria de Investimentos, sendo responsável pela gestão financeira e fiscal das sociedades que a Sonangol utilizava na concretização dos seus negócios, bem como de veículos utilizados pelo general ‘Dino’ e por Manuel Vicente mas aos quais os seus nomes não podiam ser associados. A Ifogest teve também a seu cargo a instalação do BPA Europa em Lisboa, tendo inclusive o gestor de conta do procurador Orlando Figueira trabalhado anteriormente naquela sociedade.

Andorra e o contrato com uma sociedade veículo da Sonangol

A transferência de 210 mil dólares da Primagest terá sido feita ao abrigo de um “contrato-promessa de trabalho”. Isto é, de acordo com o documento datado de 10 de janeiro de 2012, o procurador seria admitido como diretor do serviço jurídico ou diretor do serviço de compliance da Primagest após iniciar uma licença sem vencimento de longa duração concedida pelo Conselho Superior do Ministério Público.

O pedido de Figueira tinha entrado no órgão de gestão e disciplinar do Ministério Público a 29 de dezembo de 2011 e deveria entrar em vigor a 1 de setembro de 2012. O requerimento foi despachado favoravelmente a 18 de janeiro de 2012 — oito dias antes da alegada assinatura do contrato-promessa de trabalho.

Apesar de ter garantido à sua diretora, Cândida Almeida, que não iria trabalhar para empresas angolanas, Orlando Figueira confessou ao seu amigo juiz Carlos Alexandre que iria “trabalhar para uma empresa relacionada com a Sonangol”, lê-se no despacho de acusação. Alexandre aconselhou-o de imediato a deixar de despachar processos relacionados com Angola. Razão? Incompatibilidade. Figueira não ouviu.

Apesar de ter garantido à sua diretora, Cândida Almeida, que não iria trabalhar para empresas angolanas, Orlando Figueira confessou ao seu amigo juiz Carlos Alexandre que iria "trabalhar para uma empresa relacionada com a Sonangol", lê-se no despacho de acusação. Alexandre aconselhou-o de imediato a deixar de despachar processos relacionados com Angola. Razão? Incompatibilidade. Figueira não ouviu.

Tal contrato-promessa, que obrigava Figueira a desempenhar funções em Angola (o que nunca aconteceu), foi transformado num contrato definitivo em março de 2014 — já com Orlando Figueira em gozo da licença sem vencimento. Mais uma vez, as procuradoras responsáveis pela acusação classificam tal contrato como fictício, já que Figueira nunca desempenhou funções na Primagest.

Certo é que tal contrato de trabalho esteve na origem na transferência de mais 265 mil dólares (264,9 mil euros ao câmbio atual) da Primagest para Orlando Figueira entre maio de 2014 e abril de 2016. Mas desta vez sem o BPA entrar no circuito financeiro.

Figueira e o filho decidiram abrir uma conta na Banca Privada D’Andorra a 17 de março de 2014, depositando 25 mil euros em dinheiro vivo. Para o Ministério Público não há dúvidas sobre a motivação: “o arguido Orlando Figueira pretendia ocultar o recebimento de tais fundos, assim com a sua origem”, lê-se no despacho de acusação.

Mais tarde, nas buscas domiciliárias de que foi alvo, foi-lhe apreendido um artigo retirado de um site especializado na constituição de sociedades offshore nos mais conhecidos paraísos fiscais e na abertura de contas no exterior. O artigo referia-se especificamente às vantagens das contas numeradas e anónimas em Andorra. “O grande atrativo do sistema bancário andorrano é a privacidade. Ainda é possível ter uma conta numerada e anónima, e a verdadeira identidade do titular da conta é conhecida apenas pelos gerentes de alto-escalão do banco”, lê-se no artigo.

O ex-magistrado do DCIAP ainda veio a receber mais 193,5 mil euros da Primagest por salários até ao final do contrato e subsídio de férias e de Natal, em virtude de um acordo de rescisão do contrato de trabalho assinado a 26 de maio de 2015.

Figueira e o filho decidiram abrir uma conta na Banca Privada D'Andorra a 17 de março de 2014, depositando 25 mil euros em dinheiro vivo. Para o Ministério Público não há dúvidas sobre a motivação: "o arguido Orlando Figueira pretendia ocultar o recebimento de tais fundos, assim com a sua origem", lê-se no despacho de acusação.

Um dia antes, afirmam as procuradoras Bonina e Barão na acusação, Orlando Figueira tinha ficado a saber da existência da investigação contra si. Desconhecendo que Figueira estava a trabalhar no departamento jurídico do Activo Bank, o DCIAP notificou o banco do Grupo BCP a enviar todos os extratos das contas bancárias que o magistrado tivesse nessa institutição financeira. Essa é a motivação, na óptica da acusação, para o acordo de rescisão. Total das contrapartidas que Orlando Figueira alegadamente terá recebido: 763.429, 88 euros.

Os empregos no BCP

Orlando Figueira ainda terá recebido, na óptica do DCIAP, mais duas alegadas contrapartidas não pecuniárias:

  • Consultor do Departamento de Compliance do BCP entre novembro de 2012 e junho de 2014;
  • Assessor do Conselho de Administração do Activo Bank (Grupo BCP) de julho de 2014 até ser detido em fevereiro de 2016.

O Grupo BCP tinha em 2012 a Sonangol como um dos principais acionistas. Aliás, 15 dias antes da assinatura do primeiro destes contratos, a petrolífera tinha reforçado a sua participação para 15%.

Ambos os contratos terão sido assinados por alegadas ordens de Manuel Vicente, sendo José Iglésias Soares o interlocutor de Orlando Figueira. Soares é tido pelo DCIAP como um homem de confiança do vice-Presidente de Angola, tendo inclusivé sido administrador da Ifogest e do BPA Europa.

De acordo com a acusação do DCIAP, em maio/junho de 2014 “começaram a surgir rumores dentro do Millenium BCP de que o arguido fazia sair informação do banco para o exterior”. Miguel Maya Pinheiro, administrador do banco, solicitou então a José Iglésias Soares que algo fosse feito. Os dois gestores terão decidido então que era melhor promover a saída de Figueira do BCP. Daí a transferência para o Activo Bank (um banco especializado em private banking do Grupo BCP), onde estava a trabalhar no momento em que foi detido.

As retificações fiscais e o cofre n.º 267 da “mana”

Dois dias depois de ter tido conhecimento de que estava a ser investigado, Orlando Figueira fez alterações nas suas declarações fiscais através do Portal das Finanças. De 2008 a 2011, o magistrado declarou única e exclusivamente os seus rendimentos como procurador da República: cerca de 70 mil euros anuais brutos. Em 2012, contudo, Figueira apenas declarou os cerca de 51 mil euros brutos que recebeu até setembro enquanto magistrado e mais 7 mil euros de rendimentos como trabalhador independente.

Dois dias depois de ter tido conhecimento de que estava a ser investigado, Figueira fez alterações nas suas declarações fiscais. Começou por retificar a omissão dos 210 mil dólares que a Primagest transferiu para a sua conta. Mas deixou "o espaço de reservado à entidade patronal" "deliberadamente em branco", lê-se no despacho de acusação.

Isto é, Orlando Figueira não declarou os cerca de 210 mil dólares que a Primagest transferiu para a sua conta no BPA Europa em 2012. Foi precisamente essa omissão que começou por retificar, entregando uma declaração de substituição para o exercício de 2012 onde declarou como rendimento de trabalho dependente cerca de 175 mil euros. Mas, e aqui a censura é do DCIAP, deixou “o espaço de reservado à entidade patronal” “deliberadamente em branco”, lê-se no despacho de acusação. O preenchimento desse espaço era obrigatório.

Na mesma data, Figueira entregou a sua declaração de IRS relativo ao exercício de 2014 e declarou como rendimento de trabalho dependente cerca de 221 mil euros, “pago por entidade desconhecida”.

“Ao declarar os rendimentos oriundos da Primagest como sendo provenientes de trabalho dependente, o que bem sabia não corresponder à verdade, o arguido Orlando Figueira agiu com o intuito de ocultar o facto de tais pagamentos constituírem a contrapartida da prática do crime de corrupção e de dificultar a sua qualificação como tal pela investigação”, afirmam as procuradoras Inês Bonina e Patrícia Barão, que acusam o magistrado do crime de falsificiação de documento.

Outro momento que as magistradas responsáveis pela investigação fizeram questão que ficasse devidamente registado no despacho de acusação prende-se com documentos que foram apreendidos na casa de Orlando Figueira. Além de um conjunto de documentação relativa aos processos sobre Angola que tinha no DCIAP (como, por exemplo, os documentos que mandou retirar do processo da casa do Estoril contra Manuel Vicente), as investigadoras descobriram ainda 5.750 euros em numerário com um post-it manuscrito: “4.630 devo mana. 19.02.2016”. E um contrato para o aluguer do cofre n.º 193 da sucursal do Millenium BCP na Av. Fontes Pereira de Melo, em Lisboa, em nome da empresa da irmã Maria José.

O cofre 267 estava alugado à irmão de Orlando Figueira. "Nesse cofre foram encontrados 129.850 euros em numerário, pertencentes ao arguido Orlando Figueira. A referida quantia encontrava-se acondicionada em envelopes, sendo que em vários desses envelopes se encontrava a manuscrita a palavra 'mano'". Em família, Orlando e Maria José tratavam-se por "mano" e "mana".

Munidas de um mandado de busca, as procuradoras tentaram perceber o que estaria no cofre. O 193 já estava alugado a outra pessoa, mas o 267 estava, de facto, alugado a Maria José Figueira. “Nesse cofre foram encontrados 129.850 euros em numerário, pertencentes ao arguido Orlando Figueira. A referida quantia encontrava-se acondicionada em envelopes, sendo que em vários desses envelopes se encontrava a manuscrita a palavra ‘mano’”, lê-se no despacho de acusação. Em família, Orlando e Maria José tratavam-se por “mano” e “mana”.

O arquivamento dos indícios contra o BPA

Houve um ponto da investigação em que não foi possível recolher qualquer tipo de prova: o envolvimento dos responsáveis do BPA Europa nas transferências da Primagest para Orlando Figueira.

A investigação do DCIAP ao BPA Europa, uma instituição financeira muito conhecida junto da elite angolana, obrigou o banco a contratar o escritório de Daniel Proença de Carvalho — a sua filha Graça, aliás, é administradora do BPA Europa.

O principal indício do alegado envolvimento do banco fundamentava-se no facto de as contas de Orlando Figueira (quer a que abriu em conjunto com o seu filho em outubro de 2011, quer a segunda que o próprio magistrado abriu em janeiro de 2012) nunca terem sido comunicadas ao Banco de Portugal (BdP) — o que originou a abertura de um processo de contra-ordenação no supervisor bancário.

Apesar de ter arquivado os indícios contra o BPA Europa, o DCIAP não deixa de censurar o banco, acusando-o de "negligência", sendo que a omissão de comunicação ao Banco de Portugal "susceptível de sugerir que os procedimentos legalmentes impostos e atinentes à prevenção do branqueamento são implementados no banco sem o necessário rigor".

Além disso, Carlos Silva é dado pela investigação como figura muito próxima de Manuel Vicente, afirmando-se mesmo na acusação que, sabendo que o líder da BPA Europa era (e é) Carlos Silva, o vice-Presidente de Angola “sabia que o BPA Europa cumpriria indicações que fossem dadas por si relativamente à abertura de contas e à concessão de financiamentos ao arguido Orlando Figueira” , lê-se no despacho do DCIAP.

Mais: o BPA Europa também não comunicou a transferência de cerca de 210 mil dólares da Primagest para a conta de Orlando Figueira. Neste caso, tal comunicação obrigatória deveria ter sido feita ao DCIAP e à Unidade de Informação Financeira da Polícia Judiciária no âmbito da lei de prevenção e de combate ao branqueamento de capitais.

Tal comunicação só feita pelos responsáveis do BPA Europa após a realização de buscas judiciais ao banco no dia 23 de fevereiro de 2016.

O DCIAP entende que existe prova para criticar de forma dura o BPA Europa em três pontos:

  • Concedeu um empréstimo de 130 mil euros a Orlando Figueira por alegada ordem de Manuel Vicente;
  • “Tinha conhecimento de que esse financiamento consistia numa operação financeira destinada a camuflar que a origem desses fundos fosse” o vice-Presidente de Angola;
  • E “agiu com intenção de ocultar o recebimento de elevadas quantias pecuniárias por Orlando Figueira, provenientes do BPA, em Luanda, e com origem na conta da Primagest”.

Contudo, escrevem as procuradoras Inês Bonina e Patrícia Barão, inexistem “indícios de que a não comunicação” das contas bancárias de Orlando Figueira ao Banco de Portugal tenha sido intencional “por parte de representantes” do BPA Europa. O facto de outras contas bancárias não terem sido igualmente comunicadas ao supervisor bancário leva as magistradas a não excluir a possibilidade de se tratar de um erro. Daí o arquivamento dos autos.

Contudo, o DCIAP não deixa de censurar o BPA Europa, acusando o banco de “negligência”, sendo que a omissão de comunicação ao BdP “susceptível de sugerir que os procedimentos legalmentes impostos e atinentes à prevenção do branqueamento são implementados no banco sem o necessário rigor”.

Não existe dolo, mas existe uma certeza das procuradoras Inês Bonina e Patrícia Barão: “Caso o BPA Europa tivesse comunicado as operação em causa ao DCIAP e à Unidade Informação Financeria da Polícia Judiciárias”, nos termos da lei de prevençao de branqueamento de capitais, “muito provavelmente a presente investigação ter-se-ia iniciado em 2012”. E não em 2014.

Artigo alterado às 20h19. Carlos Silva, presidente do BPA Europa, foi interrogado no DCIAP a 20 de maio de 2011 pelo procurador Rosário Teixeira e não pelo procurador Orlando Figueira.

Acrescentada data de tomada de posse de Manuel Vicente como vice-presidente de Angola

Retificada informação relativa a Augusto Baptista, que era representante da sociedade Primagest, às 23h40 de 9 de maio de 2023

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