Há poucos meses, em abril deste ano, o mundo foi confrontado com uma notícia que poucos queriam ouvir: um ataque químico na Síria, para numerosas organizações internacionais levado a cabo pelo regime de Bashar al-Assad — mas para este “inteiramente fabricado” pela oposição –, atingiu civis e provocou dezenas de mortes na província de Douma. O número é difícil de quantificar, devido à gestão da informação feita pelo regime, mas terá superado as quatro dezenas, podendo até ter ultrapassado as oito dezenas de mortos. Donald Trump não gostou e, perante os microfones, prometeu uma “resposta rápida”.
Longe das câmaras, a reação terá sido mais visceral. Mal tomou conhecimento do ataque, o presidente norte-americano terá pedido para falar com o seu secretário de Defesa, James Mattis. O que Trump o desafiou a fazer ao presidente sírio, só o seu círculo interno sabia. Até ao dia de hoje. “Vamos matá-lo, porra! Vamos lá. Vamos matá-los sem apelo nem agravo”, terá dito “The Donald”. Mattis disse-lhe que sim, que trataria do assunto. Mal desligou o telefone, começou a falar a sério, como se antes estivesse a aceder aos caprichos de uma criança e depois estivesse já a falar com adultos: “Não vamos fazer nada disso”.
A revelação é bombástica, mas é apenas uma de muitas incluídas num livro que só será publicado daqui a alguns dias, numa data que seguramente não foi escolhida ao acaso (11 de setembro, a data do maior ataque terrorista em solo americano) mas que está já a agitar os media, a política norte-americana e a administração de Donald Trump. “Fear: Trump in the White House” — título que em português significa “Medo: Trump na Casa Branca” — foi escrito pelo reputado, premiado e veterano escritor e jornalista de investigação Bob Woodward, 75 anos. Alguns órgãos de comunicação social como a CNN e, claro, o The Washington Post, onde Bob Woodward trabalha há 47 anos, tiveram acesso antecipado ao livro.
As 488 páginas de “Fear: Trump in the White House” retratam um presidente instável, irritadiço, habitualmente pouco informado sobre os dossiês mais prementes na gestão da maior potência ocidental do mundo, capaz de insultar inimigos e colaboradores e com uma apetência patológica para mentir, segundo os relatos dos dois órgãos norte-americano. Até aqui, a obra não diverge muito de reportagens, peças jornalísticas e até livros já publicados sobre Donald Trump. As novidades trazidas por este livro de Bob Woodward passam por descrições de conversas e reuniões (algumas das quais secretas e confidenciais) de Donald Trump com o seu staff e a perceção que os seus colaboradores mais próximos têm do seu caráter e capacidades. Uma perceção traduzida em palavras pouco simpáticas, de “mentiroso incorrigível” a “idiota”, “desequilibrado”, “alguém com natureza errática”, “relativamente ignorante”, “incapaz de aprender”, com “ideias perigosas” e uma pessoa com “o raciocínio de um aluno da quinta ou da sexta classe”.
Pior do que isso, o livro retrata alguém que, de acordo com o que seria a convicção do antigo advogado de Trump, John Dowd, poderia passar a “vestir um fato laranja” (ou seja, de presidiário), se tivesse ido depor nas investigações sobre a possível ligação da sua campanha presidêncial à interferência da Rússia de Vladimir Putin nas eleições de 2016.
Como foi escrito o livro?
O método para a escrita de “Fear: Trump in The White House” foi diferente dos utilizados na maioria dos livros de Bob Woodward. Para as quatro obras que escreveu sobre George W. Bush (“Bush at War”, “Plan of Attack”, “State of Denial: Bush at War, Part II” e “The War Within: A Secret White House History (2006–2008)”), por exemplo, Bob Woodward fez seis entrevistas ao então presidentes norte-americano, que resultaram em perto de 11 horas de conversa.
Para o primeiro livro escrito sobre Donald Trump, Bob Woodward não entrevistou o protagonista e personagem principal da obra. Não que não tivesse vontade de o fazer. Segundo revelou o veterano jornalista e escritor, desde o início do processo de investigação e escrita foram várias as tentativas de chegar a Trump, através de diferentes intermediários. Nunca foi possível. Trump só se disponibilizou para responder às questões no início de agosto deste ano, altura em que o livro estava já finalizado. Fê-lo através de uma conversa telefónica, gravada e recentemente divulgada pelo The Washington Post.
Ao telefone, Donald Trump queixou-se de nunca ter sido convidado diretamente por Bob Woodward para participar no livro ou para ser entrevistado. Fora-o apenas indiretamente. Bob Woodward disse-lhe que o livro era um “olhar duro sobre o mundo, sobre a sua administração e sobre si” e Trump respondeu “bom, assumo que isso significa que será um livro negativo. Mas estou 50% habituado a isso, está tudo bem. Alguns são bons, outros são maus. Parece que este será mau”.
Para escrever “Fear: Trump in the White House”, Bob Woodward alega ter feito muitas entrevistas de fundo a colaboradores próximos de Donald Trump, sob promessa de lhes garantir o anonimato. Ouviu conselheiros, elementos do staff da Casa Branca e figuras do executivo de Trump, em “centenas de horas de entrevistas gravadas com dezenas de fontes do círculo próximo de Trump, tal como documentos, ficheiros, diários e anotações, incluindo uma nota escrito pelo próprio Donald Trump”.
Trump e a Rússia. “Não testemunhe. Não há maneira de se safar disto”
John Dowd era o antigo advogado pessoal de Donald Trump e considerava o presidente norte-americano “um mentiroso de m****”, segundo revelaram fontes próximas de Dowd a Bob Woodward, que relata a opinião do advogado no livro. Os dois ter-se-ão separado devido à posição de Donald Trump sobre as investigações às alegadas interferências russas nos resultados das eleições presidenciais de 2016, através de campanhas de manipulação e propagação de informação enviesada e falsa (as chamadas “fake news”) nas redes sociais, segundo relata Bob Woodward em “Fear: Trump in the White House”.
Na véspera da demissão de John Dowd como advogado pessoal de Trump, os dois terão estado juntos na residência de “The Donald”, na Casa Branca. O encontro serviu para um inquérito preliminar de Dowd a Trump, uma espécie de teste ao presidente norte-americano feito para perceber se o testemunho de Donald Trump sobre o processo era fiável o suficiente para ser apresentado ao líder da investigação, o procurador especial Robert Mueller.
O inquérito de teste não terá corrido bem. Segundo relata Bob Woodward no seu novo livro, o advogado terá percebido que um eventual depoimento de Trump seria “um pesadelo total” e aconselhou-o a não depor, dada a inconsistência de discurso. “Ele simplesmente inventou. Faz parte da sua natureza”, terá dito Dowd a Robert Mueller, que terá insistido que “precisava do testemunho do presidente”. John Dowd e Trump discutiram. O presidente norte-americano não achava que o seu discurso fosse inconsistente e julgava-se uma testemunha fiável. John Dowd julgava o contrário: “Não há maneira de se conseguir safar disto… não testemunhe. Ou não o faz ou terá de vestir um fato laranja”. Isto é, ir preso. “Não é uma boa testemunha. sr. presidente, temo não poder ajudá-lo”. Na manhã seguinte, Donald Trump recebeu a carta de demissão do advogado.
O dinheiro acima da segurança nacional
Uma das críticas que colaboradores próximos fazem ao presidente norte-americano é a sua impreparação e leviendade sobre a gestão da segurança nacional. No seu novo livro, Bob Woodward menciona reuniões confidenciais e ultra secretas (“top-sccret”) ocorridas a 27 de julho de 2017. Correu tão mal que, à saída, o secretário de Estado Rex Tillerson terá desabafado: “Ele é um idiota de m****”.
A reunião serviu para tentar persuadir Donald Trump a ser mais diplomático e cuidadoso na sua intervenção. Para Trump, nada disso fazia sentido. As negociações com a Coreia do Norte, por exemplo, deveriam ser simples: “Isto tem simplesmente a ver com um líder contra outro líder, homem contra homem, eu contra o Kim”. Com generais do Exército presentes na reunião, Trump não foi simpático. “Deveriam estar a matar tipos [no Afeganistão]. Não precisam de uma estratégia para matar pessoas”, terá dito.
Outro dos pontos de discórdia foi a presença de tropas norte-americanas na península da Coreia. Donald Trump não via a necessidade de ter elementos do Exército na Coreia do Sul e quis dizê-lo ali, naquele dia. Gary Cohn, que na altura era o principal conselheiro económico de Trump, ter-lhe-á perguntado, segundo relata o livro: “Então, sr. presidente, do que é que precisaria de ter na região para dormir bem de noite”. A resposta terá sido desconcertante: “Não precisaria de porra nenhuma. E dormiria como um bebé”.
A obsessão de Donald Trump com o dinheiro, que tem resultado numa política menos intervencionista dos EUA na gestão dos conflitos internacionais, é um dos pontos mais mencionados por Bob Woodward no seu livro, segundo a CNN e The Washington Post, que tiveram acesso prévio à obra. Um dos aspetos mais polémicos do livro é a citação de opiniões de atuais colaboradores e elementos do staff da Casa Branca sobre Trump — opiniões essas que foram recolhidas sob a condição de anonimato, tal como Woodward fez com o famoso Garganta Funda do caso Watergate. A colaboradores próximos, o secretário de Defesa de Trump, James Matti, por exemplo, terá dito que sobre os assuntos de Defesa e Relações Internacionais, Donald Trump tinha um conhecimento de um “aluno da quinta ou da sexta classe”. Já o seu chefe de equipa John Kelly considerá-lo-á um “idiota” e um “desequilibrado”.
O “Hemingway dos 140 caracteres” e os documentos que o staff lhe escondeu
Para alguns colaboradores próximos do presidente norte-americano, a sua intervenção no Twitter é tão arriscada que pode “causar uma guerra”. Trump, no entanto, nada teme. Pelo contrário. Quando a rede social decidiu expandir o limite das suas mensagens de 140 para 280 caracteres, o presidente dos EUA ter-se-á comparado ao escritor de Oak Park, Illinois: “É uma coisa boa mas tenho alguma pena porque era o Ernest Hemingway dos 140 caracteres”.
Menos engraçadas e mais preocupantes são episódios narrados por Bob Woodward que apontam para a necessidade que elementos do staff do presidente tiveram de, em alguns momentos, esconder documentos de Donald Trump, para evitar ações que consideraram poder colocar em risco a segurança do país. Um desses relatos serve, aliás, para o início do livro. No arranque, o veterano jornalista do The Washington Post conta que, um dia, o então principal conselheiro económico de Donald Trump, Gary Cohn, viu na secretária da Sala Oval um rascunho de uma carta que poderia impedir um importante acordo comercial entre os EUA e a Coreia do Sul. Segundo Woodward, Cohn terá temido que a carta colocasse em causa um programa informático dos Serviços Secretos que permite detetar o lançamento de um míssil em território norte-coreano em apenas sete segundos. Cohn terá ficado “chocado” com o que leu e com a possibilidade de Trump assinar a carta. A um colaborador, terá dito: “Roubei-a da secretária dele. Não podia deixar que ele a visse, ele nunca poderia ver aquele documento. Tinha de proteger o país”.
Rob Porter também terá usado uma estratégia semelhante em “múltiplas ocasiões”, segundo a obra. Reince Priebus, antigo chefe de gabinete do executivo de Trump que teve com este uma relação conturbada, terá mesmo dito, segundo Bob Woodward: “Um terço do meu trabalho era tentar reagir a algumas das ideias verdadeiramente perigosas que ele tinha e tentar explicar-lhe, fazê-lo acreditar que talvez não fossem boas ideias”. Para Woodward, as numerosas tentativas de contornar Trump e esconder-lhe documentos “não são menos do que um golpe de Estado administrativo”.
Quem é Bob Woodward?
Quase dois anos depois da eleição de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos da América, depois de tanto já se ter escrito sobre a vitória e a presidência de “The Donald”, o protagonismo dado a um novo livro sobre o sucessor de Barack Obama depende, em grande medida, de quem o escreve. Não fosse Bob Woodward o autor de “Fear: Trump in White House” e dificilmente o livro suscitaria tantas notícias e tanto comentário antes mesmo de ser publicado.
Woodward não é um simples repórter ou escritor norte-americano. Em primeiro lugar, foi ele que, em conjunto com Carl Bernstein, liderou ao investigação ao caso Watergate e ‘obrigou’ Richardo Nixon a demitir-se da presidência norte-americana para não ser alvo de um processo impeachment — a mesma sombra que paira sobre a cabeça de Trump. Em mais de 40 anos de carreira, ajudou o The Washington Post a vencer dois prémios Pulitzer e já escreveu obras de referências sobre vários presidentes dos EUA. É o autor de alguns dos livros de referência sobre os últimos presidentes do país, como George H. W. Bush (“The Commanders”, que aborda a Guerra do Golfo e as políticas do primeiro Bush a chegar à presidência do país), Bill Clinton (“The Agenda”), George W. Bush (quatro obras) ou Barack Obama (“Obama’s Wars”, sobre a gestão de Obama das guerras do Afeganistão e do Iraque). Ao todo, Woodward tem mais de 15 títulos escritos por si, alguns dos quais em parceria. Para português, foram traduzidas obras como “Bush em Guerra” (ed. Gradiva, 2003), “Plano de Ataque” (ed. Difel, 2004), “O Homem Secreto” (ed. Quidnovi, 2006), “Estado de Negação” (Relógio d’Água, 2007) e “A Verdadeira Guerra” (ed. Mill Books, 2009).
O interesse de Bob Woodward no jornalismo e na política norte-americana começou cedo, ainda na juventude. Ter sido admitido na universidade de Harvard e ter recusado ingressar na instituição, preferindo antes candidatar-se a um trabalho no The Washington Post que conciliou com cursos sobre William Shakespeare e sobre relações internacionais na Universidade George Washington, atesta bem o interesse do homem nascido em Geneva, uma pequena cidade do estado do Illinois, a 26 de março de 1943. Isto apesar de ter tido direito a apenas duas semanas à experiência, não sendo contratado devido à falta de experiência. Um ano no mais pequeno Montgomery Sentinel acabou por servir de “estágio” ao trabalho no “The Post”, que iniciou em 1971.
Os livros que publicou tornaram-no uma celebridade no mundo das artes e letras, ainda que fosse criticado por alguns devido ao uso de fontes anónimas e a declarações polémicas como a de que não acreditava que o Iraque não possuísse armas nucleares, face à extensa cobertura que fizera da administração de George W. Bush e às muitas conversas que tivera com ele.
Os grandes trabalhos, contudo, começaram nos jornais. Ao serviço do The Washington Post, Bob Woodward cobriu o escândalo Watergate, ao lado do repórter Carl Bernstein. O escândalo levou à demissão do então presidente Richard Nixon, foi revelado em primeira mão por Woodward, Bernstein e pelo “The Post”, resultou num emblemático livro (posteriormente aproveitado pela indústria de cinema de Hollywood) chamado “All The President’s Men” e deu ao jornal norte-americano um prémio Pulitzer na categoria Serviço Público. Apesar do caso Watergate ter nascido do trabalho da dupla Woodward/Bernstein, o primeiro teve sempre mais destaque na comunicação social (e no filme realizado por Alan J. Pakula) por ter sido ele o interlocutor da célebre fonte anónima apelidada de “Garganta Funda” com os seus encontros misteriosos em parques de estacionamento e noutros locais em Washington. Foi o caso Watergate que catapultou o Washington Post de um jornal essencialmente local para uma publicação nacional e um verdadeiro concorrente do New York Times.
Mais tarde, em 2001, Bob Woodward conquistou mesmo um Pulitzer para Cobertura Nacional, na sequência de reportagens sobre o atentado às Torres Gémeas, de 11 de setembro de 2001.
As reações ao livro: “Mais uma tentativa patética” de atingir Trump
Entretanto, já surgiram as primeiras reações à divulgação de notícias sobre o conteúdo de “Fear: Trump in The White House”. A coordenadora de imprensa da Casa Branca, Sarah Sanders, chamou-lhe “nada mais do que um conjunto de histórias fabricadas, muitas delas por antigos funcionários insatisfeitos, que têm a intenção de transmitir uma má imagem do Presidente”.
O chefe de staff de Trump John Kelly também já reagiu, negando ter chamado “idiota” e “desequilibrado” a Donald Trump: “A ideia de que alguma vez chamei idiota ao Presidente não é verdadeira. É mais uma tentativa patética de manchar as pessoas próximas do Presidente Trump e tirar o foco dos muitos sucessos da administração”, apontou, acrescentando que tem uma relação “incrivelmente cândida e forte” com “The Donald”. Também John Dowd, antigo advogado do presidente dos EAU, negou alguma vez ter chamado mentiroso a Trump ou ter sugerido que este acabaria preso se testemunhasse perante Rober Mueller, o procurador especial responsável pelas investigações sobre a relação da campanha de Donald Trump à interferência russa nas eleições presidenciais.
No Twitter, o antigo “Ernest Hemingway dos 140 caracteres”, isto é, o Presidente dos Estados Unidos da América, ainda não reagiu. O debate sobre a veracidade dos depoimentos citados por Bob Woodward em “Fear: Trump In The White House” e sobre o impacto que a obra poderá ter ou não na popularidade do presidente norte-americano deverá intensificar-se nos próximos dias.
Esta, contudo, tem resistido a inúmeras polémicas: à gravação de um vídeo em que “The Donald” era ouvido a defender a estratégia de “agarrá-las pela c***” como aproximação a mulheres, à afirmação de que poderia “disparar sobre alguém que não perderia eleitores” ou ao ataque a John McCain, antigo prisioneiro de guerra no Vietname, que Trump considerou não ser um herói de guerra por se ter deixado capturar. O empresário imobiliário, refira-se, não foi mobilizado para o Vietname por alegados problemas ósseos no pé.
Nota – Artigo atualizado às 17h55 do dia 05/09 com correções relativas ao percurso de Enrnest Hemingway, Reince Priebus e com correção relativa à ortografia do prémio Pulitzer (e não Pullitzer, como anteriormente se lia)