Não era a notícia que queríamos dar: este ano não haverá Shellac no Primavera Sound. E se por acaso estiverem a pensar que tal se deve a mais um ataque de mau feitio de Steve Albini, o líder da banda e produtor de meio mundo, desta feita estarão errados: Albini morreu esta quarta-feira, 8 de maio, vítima de ataque cardíaco sofrido em casa, isto de acordo com o staff do Electrical Studio, o estúdio de gravação de que Albini era dono e onde tanta magia foi produzida. Albini tinha 61 anos de idade e se, demasiadas vezes, quando alguém morre, exageramos os feitos da pessoa, desta feita não há exagero possível: morreu um gigante da cena indie-rock, um dos maiores de sempre.
Isto custa – custa sempre que alguém morre e custa mais ainda quando se trata de alguém tão novo e que ainda há pouco andava a dar entrevistas à conta da promoção da reedição de In Utero, dos Nirvana. E que nessas entrevistas se revelava um homem diferente do que fora: se, durante décadas, e enquanto líder dos Big Black, dos Rapeman e dos Shellac, Albini se dedicou à provocação máxima (que, não raro, passeava de mão dada com o insulto máximo), um homem eternamente pronto para aborrecer metade da humanidade com as suas reflexões morais (uma dualidade que se revelava no facto de chamar a uma banda Rapeman e de, em simultâneo, zurzir contra a falta de ética do sistema capitalista que geria a indústria musical), com o tempo Albini foi-se tornando mais ponderado, quase que uma voz da razão e do bom senso, como disse numa entrevista a Conan O’Brien sobre os Nirvana.
Esta é, aliás, uma das minhas histórias preferidas sobre Steve Albini e ainda bem que Conan resolveu contá-la, para que toda a gente possa saber o tipo de homem que Albini era: o produtor foi abordado pelos Nirvana para produzir In Utero e, como era (e ainda é) prática habitual nestas lides, a editora ofereceu-lhe pontos sobre o disco – isto é, ofereceu-lhe uma percentagem da autoria. É bom lembrar que nesta altura os Nirvana eram a maior banda do mundo: nem que gravassem o som de uma gota de orvalho a descer uma folha de alface que se espreguiçava pela matina, até isso venderia sempre milhões. Mas Albini recusou os pontos percentuais por uma simples razão: parecia-lhe desonesto e pouco ético estar a retirar esses pontos a quem fazia a música (porque as editoras não oferecem esses pontos a partir do bolo total mas sim da parte que cabe aos músicos, pelo que são sempre os músicos que são prejudicados).
O homem podia ter ficado rico ali, naquele instante, para a vida. Mas recusou baseado numa razão moral que faz todo o sentido: não foi ele quem criou a música – ele só põe microfones à frente dos instrumentos, pelo que não há razão alguma para ficar com direitos de autor. A questão é mais complexa do que isto – pode sempre argumentar-se que um produtor cria o som final (e, no caso, criou mesmo, nota-se à légua que foi Steve Albini a produzir e o som de In Utero é muito diferente do de Nevermind, por exemplo), mas o fundamental é registar que este era um homem que tinha ética e essa ética não se revelava apenas nas palavras: ele vivia de acordo com a ética que apregoava.
É importante que esta história seja ouvida da mesma forma que é importante ouvir Steve Albini – até porque ouvir Albini é toda uma arte, a arte de ouvir o que não está lá. Lembro-me perfeitamente da primeira vez que ouvi Steve Albini: alguém me passou uma cassete com Surfer Rosa, o disco de estreia dos Pixies, e logo à primeira canção fiquei estupefacto porque nunca tinha ouvido nada assim, com uma tão grande carga de brutalidade: a bateria atrás mas tão minuciosamente gravada que quase se sentia cada ataque à tarola, cada ataque ao bombo, cada ataque aos pratos, o baixo com espaço para sustentar a canção, as guitarras que pareciam moto-serras a dirigir-se contra nós e, à frente, a voz. Um espanto, um colosso de agressão e ferocidade e o segredo estava no espaço, gravar uma banda como se ela estivesse a ensaiar à nossa frente, dar espaço aos instrumentos, permitir que os instrumentos fossem ouvidos, polir o mínimo possível. De repente o rock era perigoso, era agressivo, era uma descarga de testosterona que assustava.
Por esses dias não havia internet, a informação era escassa, as novidades navegavam devagar – não se sabia, ao fazer uma cópia de um disco, quem produzira o mesmo, mas havia sempre alguém que ia a Lisboa ou ao Porto e esse alguém, além de levar dinheiro para comprar uma data de discos (cada amigo dava dinheiro para um disco, depois gravávamos todos os discos uns dos outros) também levava dinheiro para comprar um NME, um Melody Maker, ou qualquer jornal de música estrangeiro. E foi lá que descobríamos que aquele som tinha uma assinatura, a de Steve Albini e que esse Steve Albini era o mesmo dos Big Black, dos Rapeman e dos Shellac (e depois só tínhamos de descobrir os Big Black, os Rapeman e os Shellac, o que, obviamente, descobrimos).
É suposto que as epifanias sejam raras mas esta, em particular, aconteceu-me várias vezes ao longo dos anos: assim que descobrimos que Surfer Rosa fora produzido por Steve Albini fomos à procura de outros discos produzidos por Steve Albini, porque claramente a produção de Steve Albini tinha um qualquer poder – e foi assim que descobrimos os Fugazi, os Jesus Lizard, os Boss Hog ou os Helmet. A lista de bandas e artistas que foram gravadas e produzidas por Albini é de estarrecer: Slint, Mono, Mogwai e Godspeed You! Black Emperor (para agrupar as bandas associadas ao pós-rock); The Wedding Present e Jon Spencer Blues Explosion (para agrupar bandas associadas ao indie-rock); Sunn O))) e Dirty Three (vamos agrupá-las sob a denominação bandas difíceis de qualificar); Low e Songs: Ohia (indie-rock melancólico). O efeito que Albini teve nos Songs: Ohia quando estes gravaram Magnolia Electric Co. com ele foi de tal forma poderoso (e justamente, porque é um disco do outro mundo) que a banda mudou o nome para — nem mais — Magnolia Electric Co.
Nem tudo foram êxitos – Rid of Me, de PJ Harvey, levou porrada por todos os lados, à conta do som, algo que me parece incompreensível (não tenho nada a apontar ao som, exceto que é preciso ouvir o disco mesmo muito alto, devido à variedade decibélica do mesmo). A própria PJ Harvey acabou por editar as demos de Rid Of Me em 4 track demos, o que foi interpretado como um sinal de que estaria descontente, ainda que posteriormente tenha dito que fora Steve Albini a incentivá-la (por ele, o disco eram as demos).
Na altura, Rid of Me foi caso polémico, mas polémica era o pão nosso de cada dia de Steve Albini desde muito cedo – e até, para aí, 2021, quando começou, no Twitter, a admitir que muitos dos seus comportamentos passados eram lamentáveis. Por norma as estrelas são apanhadas num qualquer comportamento desviante ou a fazer um comentário menos medido, emitem um pedido de desculpas, dizem que estão empenhados em melhorar e o problema resolve-se do dia para a noite – não com Albini. Com ele foi um longo processo em que o próprio refletiu sobre o que disse e fez no passado, reconhecendo lentamente que muitas das suas posturas haviam sido exageradas.
Mas que esperar de alguém que chamou a uma banda Rapeman, a partir de uma manga, porque queria fazer uma banda que nunca pudesse aparecer na MTV? A culpa de tudo isto, no entanto, é dos Ramones. Nascido em 1962 em Pasadena, na California, Albini passou a infância a viajar (por causa do emprego do pai, que era cientista), até assentar em Missoula, no Montana, onde terá levado uma vida normal – até ao dia em que, já adolescente, descobriu o primeiro álbum dos Ramones.
Albini foi estudar jornalismo para a Northwestern University e circulava pela cena underground de Chicago, vendo concertos dos Husker Du ou dos Replacements, o que o inspirou a formar os Big Black – que ele próprio definiu como música anti-social. Era-o: era música violenta e fascinada com violência, música de quem não acreditava nas instituições, o que era comum no punk e no hardcore da época. Mais ou menos na mesma altura a outra vocação de Albini fez-se notar – e não estou a falar da produção, mas da capacidade de fazer pessoas odiá-lo depois de ele dizer coisas não muito simpáticas. Albini começou a escrever na fanzine Matter, mas portava-se como tudo menos um fã e dava cabo de quase todas as bandas de Chicago (onde não eram muito apreciados): “This is a sad, pathetic end to a long downhill slide,” escreveu um dia, a propósito de Let It Be, dos Replacements.
Este seu lado nunca desapareceu – tornaram-se famosos alguns dos insultos que proferiu quando já era um produtor conhecido: os Pixies foram apelidados de “Quatro vacas ansiosas por serem guiadas”, enquanto os Urge Overkill foram incessantemente trucidados em cada entrevista que Albini dava. Por trás disto estava uma defesa acérrima da ética punk – Albini era um daqueles tipos que estava sempre a um milímetro de chamar vendido a alguém e que acreditava que o punk só podia ser feito em oposição ao sistema e ao capitalismo. No que toca à sua ética pessoal, Albini nunca a comprometeu.
Não acredito que os Big Black, os Rapeman ou os Shellac tenham sido tão importantes para a cultura como os discos que Albini (um ótimo jogador de póquer, que ganhou concursos mundiais) produziu. Porque os discos que produziu garantem-lhe um lugar no panteão – e pouca gente (ou ninguém, mesmo) tem as impressões digitais em tantos e tão bons discos como Albini.