O Halloween, divulgado pelo reducionismo da onda laicista como o “Dia das Bruxas”, tal como outras celebrações de cunho manifestamente consumista, tem vindo a enquistar-se entre nós alavancada pela supremacia mediática hollywoodesca globalista. Mas será a génese da celebração um fenómeno eminentemente exógeno, totalmente alheio à tradição portuguesa? Na realidade, o Halloween é uma celebração popular do culto dos mortos comemorada anualmente no dia 31 de Outubro. Contrariamente ao que muitos pensam, a designação é cristã e há registos da sua utilização a partir dos anos 40 do século dezoito exactamente por altura da alteração do calendário juliano para o gregoriano nas ilhas britânicas.
O termo tem origem na expressão inglesa All Hallows’ Eve (Véspera de Todos os Santos), pois é comemorado um dia antes do feriado de 1 de Novembro. A comemoração corresponde ao primeiro do período de três dias de observância litúrgica (Allhallowsmas em inglês) dedicado à evocação dos mortos, incluindo os santos (hallows, em inglês), os mártires e os entes queridos já fenecidos. Eram festividades que tinham acabado por persistir na memória popular, exsudando das celebrações culturais do fim-do-ano solar que, no posterior calendário litúrgico cristão, iam desde o dia de São Simão (a 29 de Outubro) ao dia de Santo Estêvão (a 26 de Dezembro).
Nos primeiros séculos da era cristã, o culto dos Santos resumia-se quase exclusivamente aos mártires, com as celebrações em seu louvor. No processo de reaproveitamento físico de alguns templos romanos, o Papa Bonifácio VII, no início do século VII, mais propriamente em 609, sacramentou o Panteão do Campo de Marte, que havia sido mandado construir por Marco Vipsânio Agripa, genro do Imperador Augusto, e dedicado a todos os planetas-deuses. Um ano depois, a 13 de Maio, o Papa dedica o templo à Virgem Maria e a todos os Santos em geral, para que nenhum deles, conhecido ou desconhecido ficasse esquecido na Liturgia. Com uma designação sintética, ficou 13 de Maio marcado como o dia de Nossa Senhora dos Mártires. Em 737 passou a ficar incluída nos cânones litúrgicos uma alocução dedicada a todos os Santos, com o Papa de então, Gregório III, a dar um maior impulso a este culto.
Com a persistência da celebração, na religiosidade popular, mormente no Poente do Ocidente cristão, do culto das almas dos mortos, no dia 1 de Novembro, o Papa Gregório IV, em 837, com o apoio do rei Luís I de França, sobrepôs nesse dia a celebração do Dia de Todos-os-Santos. Mas como as resistências persistissem na celebração do culto dos mortos, Odilon, o 4.º abade de Cluny, surfando a onda, acrescentou às celebrações algumas orações em favor do descanso eterno dos defuntos, nomeadamente daqueles que aguardavam no purgatório a eventual passagem ao Céu. Espalhadas pelos mosteiros cluniacenses e gozando do fervor popular, estas celebrações acabaram por se separar e o dia 2 de Novembro acabou por ficar dedicado na Igreja Católica exclusivamente aos fiéis defuntos (apesar de só no séc. XIV Roma ter confirmado formalmente a celebração).
Do Verão para o Inverno, tradições ancestrais
Como podemos intuir, a persistência de certas práticas de origem pagã, na expressão da religiosidade popular, estava alicerçada nas celebrações rituais do fim do Verão, do tempo da Luz solar, por excelência, para o ciclo das trevas do Inverno, frio, sombrio e de grande risco face à dependência dos produtos armazenados. Entre nós, sobretudo nas zonas mais rurais do Norte e do Centro interior, sobreviveram práticas e festividades que igualmente encontramos em áreas mais setentrionais, no finisterra céltico. Por um processo de história comparada, é-nos possível afirmar, embora com alguma prudência (os processos de aculturação posteriores foram complexos e díspares), que algumas das festividades assinaladas remontam a usos e costumes muito antigos, até, provavelmente, proto-indo-europeus.
Os celtas (ainda o fazem hoje na cintura gaélica da Irlanda, da Escócia e da Ilha de Man) celebravam o Samhaeen (que também significa o mês de Novembro em gaélico). Marcava o fim das colheitas, num ciclo lunar a meio do período que medeia entre o equinócio outonal e o solstício de Inverno. Acreditavam os celtas que nessa altura se abriam as fronteiras entre o mundo dos vivos e o dos mortos e que as almas errantes (não só as amigas mas também as ameaçadoras) podiam aparecer. Os antepassados de cada família eram então invocados enquanto se tinha especial cuidado em manter os espíritos maus à distância.
Para os afastar, colocavam-se nas entradas das casas (mais tarde nas janelas) as cabeças dos inimigos mortos ou a sua representação em cabaças, abóboras ou mesmo nabos. Como se isso não fosse suficiente, para maior protecção, as pessoas, sobretudo os mais jovens, enfarruscavam-se com cinzas. As que produziam mais efeito eram as retiradas da fogueira purificatória comunal ou dos fogaréus onde se assavam as castanhas, fonte de alimentação básica e consideradas a comida predilecta dos mortos. A fogueira era a fonte de purificação para a metade do ano que se avizinhava e servia para a bênção dos humanos e dos animais. A comida era comunal e para além de cabritos ou cordeiros especialmente escolhidos, comiam-se maçãs e castanhas.
O hoje tão conhecido Halloween é uma reminiscência americana do Samhaeen, tendo sido levada para esse continente pelos imigrantes católicos irlandeses e escoceses (sobretudo jacobitas) que fugiam às terríveis perseguições do poder protestante. Vulgarizado comercialmente pelo cinema e pela TV, podemos encontrar o seu trick or treat no nosso “pão, por Deus”. Nalgumas regiões portuguesas, no dia de Todos-os-Santos, as crianças representando as almas dos antepassados queridos vão pedindo de porta em porta o “pão, por Deus”. Pão, broa, bolos, romãs, frutos secos, incluindo nozes, amêndoas e castanhas são colocados em tabuleiros ou sacos especiais. Cumprindo uma “obrigação social”, são muitas vezes os padrinhos que o oferecem, nomeadamente o santoro.
O Minho, Trás-os-Montes e Beira Interior são regiões que prolongam as originais zonas célticas da Galécia e das Astúrias e não é por isso estranho que seja aí que se verifica a maior ocorrência de reminiscências deste culto de origens tão remotas. E é também aí que o magusto adquire maior expressão popular. Mas, por outro lado, ao encontrarmos práticas semelhantes em Malta e nalgumas ilhas gregas, devemo-nos interrogar se não estaremos perante um complexo processo de aculturação ou mesmo uma reminiscência sincrética, influenciada igualmente pela cultura romana ou mediterrânica.
O magusto: do “dia dos mortos” para o São Martinho
A razão da translação das celebrações populares que estão na raiz do magusto para o dia 11 de Novembro, tem uma explicação muito simples. Com a introdução do sistema gregoriano em 1582, em Portugal e Espanha, o calendário deslizou dez-onze dias. As celebrações mais recentes, mais formais, de natureza eminentemente religiosa permaneceram na data agendada. Aquelas com cunho mais popular, mais ligadas ao ciclo da terra, mantiveram a referência solar que transitou pois para dia 11 de Novembro. Na Inglaterra que então dominava a Irlanda e a Escócia, depois de uma resistência quase supersticiosa, o novo calendário só foi aceite em 1752 e, como tal, não contribuiu para a separação das datas.
Ora, no calendário litúrgico católico, o dia 11 de Novembro era o dia de São Martinho de Tours, por sinal, o primeiro Santo da Igreja que não havia sido mártir. Martinho nasceu em 316 na província romana da Panónia superior (a que corresponde actualmente o Norte e Noroeste da Croácia e o Oeste da Hungria), filho de um tribuno da Cavalaria da Guarda Imperial e educado no culto dos antepassados e de Mithra. Nascido 3 anos depois de o Cristianismo ter sido aceite como religião válida e legal, no seio do Império Romano, Martinho embora nascido em Savaria, actualmente a cidade húngara de Szombathely, cresceu na urbe que hoje é Pavia, na península itálica. Aí se iniciou, como catecúmeno, na Igreja de Cristo, contra a vontade da família. Apesar de terem existido algumas conversões de vulto no seio das elites romanas (Helena, a mãe do Imperador, era cristã, por exemplo), o cristianismo era ainda visto como uma igreja de origem oriental, ligada às comunidades judaicas, gregas e de mercadores errantes, apenas acolhida pelo proletariado suburbano e pelos escravos.
O principal biógrafo de São Martinho de Tours, Sulpício Severo, um aristocrata romano seu contemporâneo, deixou-nos uma hagiografia em que descreve apologeticamente a vida do Santo. Aí aparece a conhecida lenda-base da partilha caridosa da capa, que se veria posteriormente reproduzida e adulterada em variadíssimas versões das quais a portuguesa constitui um exercício ímpar de coerência e consistência narrativa. Quando ainda adolescente e seguindo o costume das famílias da aristocracia romana, Martinho entrou para o serviço militar, integrando una unidade de catafractários, estacionada na actual Amiens, em França. Aí teria experimentado uma visão que, na versão portuguesa, se registou na seguinte narrativa: ao dar metade da sua capa militar a um pobre quase desnudo (que, mais tarde, se viria a revelar ser o próprio Jesus) e, posteriormente, o resto a outro pedinte em igual necessidade, Martinho ficou ele mesmo enregelado e, uma vez que tudo se passava, numa época do ano próxima do seu aniversário, morreria seguramente de frio com os rigores do Inverno do centro de França. Mas a misericórdia divina interveio e com o intuito de impedir a morte mais que certa apareceu o hiato climático que ficaria conhecido para a posteridade como o Verão de São Martinho.
Confirmada a sua fé; Martinho baptiza-se e, poucos anos depois, inicia uma intensa vida religiosa consagrada aos pobres e à conversão de pagão e hereges. Após alguns anos de pregação e retiros eremitas pelo Noroeste da península itálica, Martinho domicilia-se na região de Tours, fundando aí uma abadia de onde irradiaria um poder espiritual de grande sucesso e consequência. Eleito Bispo de Tours, o seu mausoléu, posteriormente transformado em Santuário, constituirá na Idade Média um ponto de paragem obrigatória para os peregrinos que, do Norte e Centro da Europa demandavam Santiago de Compostela. Pilhado e incendiado pelos protestantes calvinistas (os Huguenotes) durante as guerras religiosas foi dessacralizado durante a Revolução Francesa, tendo nele sido instalado um estábulo. Restos da miraculada capa de São Martinho, conservada pelos Merovíngios como relíquia sagrada, constituem, no dizer de alguns historiadores, a primeira bandeira de França.
O dia de São Martinho passou a marcar para os cristãos dos séculos V e VI em diante, o início do jejum da Quaresma do Advento, chamada em latim quadragesima sancti martini, que só terminaria no Solstício de Inverno, às portas do Natal. Prática hoje caída em desuso, deixou no entanto reminiscências em várias partes da Europa Central e meridional, incluindo as zonas protestantes. Mas o magusto, festividade que ainda hoje celebramos, é essencialmente uma reminiscência do culto dos mortos. As sucessivas aculturações religiosas e sociais que se verificaram no nosso chão, tendo como pano de fundo as crenças e manifestações religiosas dos povos indígenas, levaram a que, ainda no séc. XXI se possam observar memórias de práticas que se perdem na poeira dos tempos. Por absorção substantiva ou por translação cronológica muitas celebrações rituais chegaram até nós como testemunho de uma persistência de significado quase telúrico.
É muito provável que os magustos e o costume de beber água-pé pelo São Martinho resultem de uma amálgama de tradições celtas e romano-mediterrânicas, em toda a sua panóplia de simbologias e rituais espirituais de imposição de cinzas, oferta aos mais desprotegidos de frutos secos para garantir a ultrapassagem das vulnerabilidades do Inverno, etc.
Muitas vezes, o São Martinho invocado para as celebrações é erroneamente São Martinho de Braga ou de Dume. Igualmente nascido na Panónia mas posterior ao seu conterrâneo em cerca de 200 anos, é por vezes referido por fontes que tratam o tema com alguma superficialmente folclórica. Algumas redes sociais, mormente na Galiza, com tiques neo-paganistas, ávidas de recuperar a memória de um passado mítico que provavelmente só existe na sua construção ideológica da História, sem provas nem factos que o suportem, têm-se desdobrado em reconstituições de cunho quase animista, fazendo remontar o estado de idílio paradisíaco às eras pré-cristãs. E sendo São Martinho, um elemento incontornável da narrativa do magusto, fazem-no local e galego, uma vez que Braga era a capital histórica da Galécia.