“No meu país mudam presidentes, bispos e jogadores de futebol, mas o tango nunca muda. Esta gente quer que ele seja antiquado, chato, o mesmo de sempre.” A frase tantas vezes atribuída a Piazzolla faz prova do desejo de renovação, mas também da resistência que conheceu. Recriar, reinventar e superar-se foi a força e a fraqueza do homem nascido há precisamente 100 anos — a 11 de março de 1921, em Mar del Plata, cidade costeira junto a Buenos Aires.
Compositor meticuloso e instrumentista hábil, Piazzolla foi um renovador do tango e isso já estava avaliado quando era vivo, a partir da década de 50, quando fez nascer o “tango nuevo”. Contestado em certo momento na Argentina e celebrado na Europa e nos EUA, rejeitou convenções do género musical nascido em fins do século XIX nos bordéis argentinos e segundo os especialistas levou influências do jazz e da música erudita, vestindo o tango como música para concerto que se vê sentado — do “tango para dançar” ao “tango para ouvir”.
Harmonias modernistas, ritmos astutos e duas ou mais melodias distintas executadas em simultâneo. Tudo isso ele deu ao tango. E no entanto, como em tempos escreveu o New York Times, nunca deixou que a sofisticação substituísse as emoções no som e na execução.
O musicólogo Mário Vieira de Carvalho registou em 1987: “Piazzolla repensou o tango com a sua perspetiva de músico culto, dotou-o de uma linguagem muito mais rica e complexa, recriou-o com uma sonoridade nova, inclusive pela exploração inusitada dos recursos dos instrumentos, potenciando efeitos através de meios eletroacústicos”, mas “onde a antiga tradição popular urbana nunca deixa de estar presente como referência de todas as ousadias.” Carlos do Carmo, numa longa entrevista ao Observador, deixou gravado em novembro de 2019: “Piazzolla não tocava como os outros. São dons. Aquelas mãos mexiam de uma maneira que todos nós mexíamos.”
[Piazzolla em 1989:]
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Neto de imigrantes italianos, Astor Pantaleón Piazzolla ficou célebre por peças como Adiós Nonino (1959, dedicado ao pai), Libertango (1974, que Grace Jones haveria de adaptar na década de 80), Oblivion (1983) ou La Camorra (1989). Difícil será enumerar as maiores das suas composições — mais de 2.500 obras, diz-se habitualmente. E hoje, o que é? Símbolo eterno, mito intocável? Intocável é certamente, segundo a viúva, Laura Escalada, cantora lírica e mais tarde apresentadora de televisão, que se casou com Piazzolla em 1976, a sua terceira mulher.
“Quando se triunfa noutros países, os nossos aprendem a gostar de nós. Como já morreu, não podem dizer nada e muito menos criticar a música que fez. Foi muito atacado, teve de se defender. Lutou muito e hoje é intocável”, disse Laura Escalada no ano passado.
A infância e o início da adolescência em Nova Iorque marcaram o futuro músico. Vicente Piazzolla e Asunta Manetti, os pais, decidiram ir viver para os EUA quando Astor tinha quatro anos e foi no Lower East Side de Manhattan que descobriu Duke Ellington, Art Tatum e Cab Calloway, mas também Carlos Gardel, Julio de Caro ou até mesmo Stravinski, tudo nomes que o pai admirava. Vicente era aliás músico e compositor de pequena escala, executante de acordéon e guitarra, e foi assim que aos oito anos do filho (há quem diga que teria sido aos 12) lhe ofereceu um bandoneón em segunda mão — espécie de concertina criada em meados do século XIX por um alemão para liturgias religiosas, depois levada para o submundo de Buenos Aires e adotado pelos primeiros tangueiros.
Por volta de 1934, em circunstância que parece perdida, conheceu o elegante Gardel, o mais cobiçado cantor de tango de sempre, que terá visto no pequeno Astor um talento em potência, chegando a convidá-lo para uma participação menor no filme Quando Tu Me Quiseres (1935), de John Reinhardt, o que de facto aconteceu. Tentou que os pais do miúdo o autorizassem a levá-lo para Medellín, com a promessa de fazer dele um executante a sério de tango, mas os pais disseram que não e reza a lenda que foi logo a seguir que Gardel perdeu a vida precisamente num voo para Medellín.
Astor tinha outra via. De regresso a Mar del Plata em 1937, estudou música clássica com Alberto Ginastera, começou por fazer arranjos para orquestra e pouco depois em Buenos Aires participou em concertos de bandoneón com Aníbal Troilo, já então um músico famoso. Em 1954 assinou uma partitura para a Filarmónica de Buenos Aires e com isso ganhou uma bolsa de estudo em Paris para se tornar aluno da compositora e maestrina Nadia Boulanger — lendária professora que foi a primeira mulher a dirigir grandes orquestras na Europa e nos EUA, incluindo a Filarmónica de Nova Iorque. Terá sido ela a instigá-lo a compor tangos, em vez de seguir a música erudita, em que se expressaria como tantos.
O “tango nuevo” há de aparecer a meio dos anos 50. “O tango já não existe”, sentenciou Piazzolla. “Existiu há muitos anos, até 1955, quando Buenos Aires era uma cidade em que se vestia o tango e se respirava um perfume de tango. Mas hoje não, hoje o perfume é mais de rock e punk. O tango de agora é apenas uma imitação nostálgica daquele tempo.”
Claro que já antes o tango tinha tido, segundo alguns estudiosos, o seu momento de internacionalização, a partir dos anos 1910 com a Orquestra Tipica Criolla, do maestro Vicente Greco, fase em que começou também a sair do mundo dos bordéis e perdeu o carácter de protesto social que tinha conhecido até então. Mas a inovação do bandoneonista de Mar del Palta foi de facto imensa e malvista. Terá acontecido o mesmo com Amália no fado? Que desvirtuou e descaracterizou um símbolo, dizia-se.
[Piazzolla na década de 70 executa “Libertango”, uma das suas composições mais conhecidas:]
“Os ouvintes tradicionais do tango odiavam-me”, disse Piazzolla um dia. “Introduzi irreverências e as pessoas pensaram que eu estava maluco. Todos os críticos de tango e as estações de rádio me consideraram um palhaço, diziam que a minha música era paranoica e com isso fizeram de mim um nome popular. Os jovens que tinham perdido interesse no tango começaram a ouvir-me. Foi uma guerra de um contra todos, mas ao fim de 10 anos a guerra estava ganha.”
Ainda hoje, apesar de consensual, não foi inteiramente reabilitado no país natal, segundo Laura Escalada, que numa entrevista recente disse tentar sem êxito há mais de 20 anos que Piazzolla tenha um nome de rua em Mar del Plata. “Penso que a Argentina e sobretudo o sítio onde nasceu não se portam bem com Piazzolla”, lamentou, e “devem-lhe muito”. Mas não faltam homenagens por estes dias ao homem a que muitos chamam “revolucionário”, caso do concerto de homenagem há dias no Teatro Colón, principal casa argentina de ópera.
[Encontro de Piazzolla, Maradona e o cantor Jairo no Parque dos Príncipes, em Paris, em 1981:]
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A década de 60 ficou marcada pelas atuações, em quinteto, no Club 676, um ponto de encontro de músicos e intelectuais, e foi já quase no fim desse período que se juntou ao poeta Horacio Ferrer para assinar a ópera María de Buenos Aires, ainda hoje célebre. Piazzolla saiu da Argentina em 1974 e radicou-se em Roma durante mais de uma década. Visitou Buenos Aires várias vezes, apenas para atuações ao vivo, e em 1985 fixou-se novamente na capital argentina. Para trás, na Europa, tinha deixado um corpo de trabalho à base de bandas sonoras e peças para concerto.
A 11 de novembro de 1987, acompanhado pelo Quinteto Tango Nuevo, passou pelo Coliseu de Lisboa. Mário Vieira de Carvalho registou então no Diário de Lisboa: “É longo o caminho percorrido pelo tango até chegar a este ponto de já não ser dançado, mas ouvido em concerto, por um público compenetrado e imóvel, em definitivo inserido numa estrutura de comunicação onde deixou de haver lugar para o abraço apaixonado e castigador que inflamava os enamorados dos anos trinta evolucionando sobre uma pista de baile ao som da voz de Carlos Gardel”.
Acrescentou, rendido, o musicólogo: “Trata-se de um grande artista, quer como compositor (aliás de sólido apetrechamento técnico: formação em piano com Raul Spivak, em direção de orquestra com Bela Wilda, Alberto Ginastera e Nadia Boulanger), quer como solista, como virtuose incomparável do bandoneón, a que deu direito de cidade nas mais prestigiosas salas de concertos de todo o mundo.”
A música dele continua viva nas versões que despontam por toda a parte ou também através do Quintento Astor Piazzolla, por detrás do qual está a fundação homónima dirigida por Laura Escalada. O quintento sugiu em 1998 e publicou até hoje quatro álbuns, incluindo Triunfal, no ano passado, com temas de Piazzolla descritos como pouco conhecidos. Tinha uma digressão mundial agendada para os últimos meses, cujas datas têm vindo a ser canceladas ou adiadas ao sabor da pandemia.
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Piazzolla morreu a 5 de julho de 1992. Tinha 71 anos e estava debilitado desde o início da década. Ficou sepultado em Buenos Aires. Mas “nunca morreu nem vai morrer, porque quando morrermos ele vai continuar na história da música como o maior músico, compositor e executante argentino desde o século XIX”, disse a viúva no ano passado, quando a entrevistaram a propósito das comemorações do centenário.