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Portrait of Maria Schneider and Marlon Brando
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Bettmann Archive

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“O Último Tango em Paris”. A história, a vítima e os vilões de uma dança com 50 anos

Coisa proibida que envelheceu mal, com segredos revelados. Desde então mudou o mundo, o sexo, o cinema, as consciências. Morreu Bertolucci, Brando e Maria Schneider. Permanece a polémica e a arte.

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Estreou-se há 50 anos no Festival de Cinema de Nova Iorque, mas, entre nós, ainda só tem 48. De qualquer maneira, a data da estreia portuguesa é, provavelmente, muito mais interessante do que a global: 30 de Abril de 1974, que é como quem diz, cinco dias depois – cinco – do golpe de estado que derrubou a ditadura. Não é coisa pouca. “O Último Tango em Paris” tinha, obviamente, sido proibido pela censura e estava ali agora, à cabeça daquele lote de filmes proibidos que os distribuidores ansiavam por dar a ver (o caso mais notável foi, talvez, o d’ “O Couraçado Potemkin”, que só chegou às salas nacionais 49 anos depois de pronto. Devem ter sido meses espantosos para os cinéfilos, esses da primavera de 74).

Caso esteja a pensar na tragédia que é o crónico atraso nacional, vale a pena lembrar que, em Espanha, o célebre “drama erótico” só estrearia em finais de 77, razão suficiente para virem da Galiza autocarros carregados de turistas espanhóis especialmente para assistir ao filme, e que o dito causaria polémica, basicamente, por toda a parte. Sob acusações de “obscenidade”, foi banido dos cinemas de alguns estados americanos, julgado em Inglaterra sob o Obscene Publications Act e alvo de um processo-crime em Itália, movido pelo Ministério Público, e que acabaria com a captura e destruição das cópias disponíveis e a condenação do realizador Bernardo Bertolucci, do produtor Alberto Grimaldi e do guionista Franco Arcalli a dois meses de penas de prisão suspensas e perda, por cinco anos, dos direitos civis – direito de voto incluído.

Por todo esse belo planeta azul, “O Último Tango em Paris” tornou-se assim involuntária bandeira de liberdade, com as suas datas de estreia em cada país a assinalarem o colapso ou, pelo menos, o princípio do fim dos regimes conservadores de uma determinada era: 1984 no Uruguai, 1992 na Turquia, 1996 na Coreia do Sul.

[a cena de abertura de “O Último Tango em Paris”:]

Cancelamentos à maneira antiga

Sim, o mundo mudou muito nestes 50 anos. Hoje, o filme poderia ter estreado em praticamente toda a parte – e sido talvez cancelado logo de seguida, acaso provocasse o bruaá suficiente nas redes sociais. De qualquer modo, agora como então, seria tudo menos consensual. Chegou aos Óscares em 74, mas perdeu nas duas categorias para as quais fora indicado – realização e actor principal. Foi um êxito entre a crítica, com a New Yorker, a Time ou o Journal du Dimanche a chamarem-no de “obra-prima” e “um dos filmes mais importantes da História” para cima, e recebido de forma dividida pelo público, que, de qualquer modo, faria dele um dos maiores sucessos de sempre da United Artists, movido provavelmente mais pela polémica e pelo voyeurismo do que por qualquer interesse artístico porventura mais subtil. Desde o Éden que é assim: nada bate a aura das coisas proibidas.

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Bom, mas, para quem nunca viu, o que é, afinal, “O Último Tango em Paris”? O (o)caso de um quarentão americano e de uma jovem francesa que se tornam amantes depois de visitarem um apartamento em Paris em que ambos talvez estejam interessados. Ele tenta ultrapassar o trauma do suicídio da mulher, ela tem casamento marcado com um jovem cineasta que anda a fazer uma espécie de filme “verité” em torno dela. Mas nenhum deles sabe bem isso acerca do outro, não sabe nada, nem o nome sequer. Tentaram acordar uma relação estritamente sexual, como se o sexo alguma vez pudesse ser apenas sexo. E é o que praticam por actos e palavras, jogos, simulações e omissões. Ele é Marlon Brando, ela Maria Schneider (o jovem noivo é Jean-Pierre Léaud, o actor-fétiche de Truffaut. Outra figura do cinema francês no elenco é Catherine Breillat, mas “O Último Tango em Paris” é, fundamentalmente, os seus dois protagonistas – os tais que são precisos para o dançar).

“Go get the butter”

É difícil acreditar como um cineasta pode dirigir um filme assim com apenas 31 anos, como Bernardo Bertolucci tinha então. Assim tão adulto, cansado, desencantado, vivido, sabido. Um filme-outono, amargo e poético. Talvez porque Bertolucci tenha verdadeiramente “dirigido”, no sentido anglo-saxónico do realizador “diretor”, como o maestro que é “condutor”, em vez do “autor” europeu. Dirigido o trabalho de outros, do actor Jean-Louis Trintignant, de quem se diz que partiu a ideia original; do já citado Franco Arcalli, que trabalhou no guião; e, muito particularmente, do homem para além do seu actor e da jovem para além da sua actriz. Brando, é sabido, criou solilóquios para a personagem a partir das suas próprias memórias da mãe e conflitos com o pai; Schneider protagonizaria com a sua verdade, como veremos, e não com a da personagem Jeanne, a mais célebre cena do filme: sexo anal não consentido, em que um banal pacote de manteiga adquiriu os poderes de lubrificante e improvável horcrux maldito.

"O Último Tango em paris" também é a verdade imperfeita contra a mentira perfeita. A inocência e o princípio do crepúsculo, a vida a gotejar no meio. Mais a fotografia de Vitttorio Storaro. E o saxofone de Gato Barbieri.

A cena nunca deixaria de ser polémica ao longo dos 50 anos seguintes. Pelo contrário. Volta e meia regressaria às notícias, quando novas declarações dos implicados nos fariam, sucessivamente, olhá-la com outros olhos. Schneider, que tinha então apenas 19 anos e era, praticamente, uma estreante em cinema, em contraste com os 48 de Brando e o estatuto de maior ator do seu tempo, declararia mais tarde ter-se sentido violada pelo colega e pelo realizador, uma vez que a cena (simulada e não real, como se chegou a escrever) não estava no guião e só lhe teria sido comunicada momentos antes de ligarem as câmaras: “Mesmo que o que Marlon estivesse a fazer não fosse real”, diria mais tarde a actriz, “eu estava chorar lágrimas de verdade””. E Bertolucci, que primeiro afirmara que apenas o pormenor da manteiga lhe surgira a ele e a Brando ao pequeno-almoço daquele dia, havia de reconhecer em 2013, já depois da morte de Schneider, que nada lhe dissera propositadamente, para ter “a reação da mulher e não da atriz”, e que se sentia culpado, mas não arrependido. Uma decisão arriscada, dirão alguns, mas enquadrada no comportamento de outros realizadores ao longo da história; a última tanga, dirão outros, em Paris ou no raio que o parta.

Mas, 50 anos passados, onde ficámos?

A vítima: Maria Schneider

Nunca mais perdoaria, trabalharia ou falaria sequer a Bernardo Bertolucci, a quem acusou de ter mais de gangster do que de realizador. Afirmou que a única coisa de que se arrependia era de ter feito “O Último Tango em Paris” e que o filme lhe arruinara a vida.

Portrait of Maria Schneider

Maria Schneider deixou uma frase para a História: “Quando uma mulher chega a uma idade em que tem alguma coisa interessante para dizer, já ninguém tem interesse em ouvi-la”

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A verdade é que, tal como aconteceu, a vida de Maria se tornou inseparável de “O Último Tango em Paris”. Ela própria filha de um ator – aliás, amigo de Brando — Daniel Gélin (que vimos, por exemplo, em “O Homem que Sabia de Mais”), fugiu de casa aos 15 anos e ganhou o casting para “O Último Tango…” por ser, alegadamente, a atriz que se despia com mais à-vontade diante da câmara. Depois disso, fez mais meia centena de filmes, mas, como a própria se queixava, só lhe perguntavam por este. Mesmo que tivesse protagonizado outro dos títulos mais emblemáticos da época: a “Profissão: Repórter”, de Antonioni, curiosamente, editado pelo mesmo Franco Arcalli que escrevera “O Último Tango em Paris” e talvez a prova provada de que a manteiga nunca constara do guião.

A Brando, acabou por perdoar. Depois de um período de nojo em que não conseguiam falar do filme, ficaram amigos até ao fim da vida, com Maria a imputar à bissexualidade de ambos a razão de se entenderem tão bem.

Morreu em 2011, com apenas 59 anos, vítima de cancro. Pouco tempo antes deixara uma frase para a História: “Quando uma mulher chega a uma idade em que tem alguma coisa interessante para dizer, já ninguém tem interesse em ouvi-la.”

O vilão: Bernardo Bertolucci

Vilão da história tal como a vemos e conhecemos hoje, saltou d’ “O Último Tango…” para os seus melhores anos. Assinou “1900”, ganhou os Óscares, o Bafta, o Director’s Guild e um Globo de Ouro com “O Último Imperador”, fez “Um Chá no Deserto”, “Beleza Roubada” e “Os Sonhadores”, onde Eva Green trazia qualquer coisa de Maria, Michael Pitt era o americano possível em Paris e Louis Garrel não deixava de evocar traços de Léaud. Morreu em 2018, aos 77 anos, com um currículo imaculado como realizador, mas cada vez mais maculado como homem pela história de Maria.

Bernardo Bertolucci

Bertolucci, vilão da história tal como a vemos e conhecemos hoje, saltou d’ “O Último Tango…” para os seus melhores anos

Getty Images

Marlon, o Brando

Definitivamente, os seus melhores anos estavam já para trás. Mas ainda agora tinha ressuscitado com “O Padrinho” e já “O Último Tango em Paris” lhe valia nova nomeação ao Óscar, e logo depois de ter celebremente recusado o que acabavam de lhe tentar dar. Perdeu para Jack Lemmon, mas a seguir, ainda viria a fortuna cobrada por uns breves minutos diante da câmara de Richard Donner como Jor-El, aliás, o pai do Super-Homem, na primeira instalação da saga. Viria, acima de tudo, o Coronel Kurtz de “Apocalipse Now”. E viria, finalmente, meia dúzia de aparições em filmes mais ou menos esquecíveis, exceção feita ao derradeiro “The Score”, inesperada proeza de Frank Oz – o homem que deu voz a Yoda ou ao Monstro das Bolachas – na realização.

Morreu em 2004, aos 80 anos, como um dos maiores atores de todos os tempos. O Paul de “O Último Tango…” não é o seu melhor trabalho – Kurtz, Don Corleone, Terry Malloy ou Stanley Kowalski pairam, certamente, acima – mas conta-se entre os obrigatórios. Uma espécie de ídolo caído, cadente, real, humano, demasiado humano. O próprio Brando confessaria, mais tarde, também ele se ter sentido violado por Bertolucci, não na célebre cena, mas no filme em geral, pela exposição excessiva a que se ofereceu, recorrendo às suas próprias memórias e sentimentos, e que nunca mais voltaria a repetir – o epitáfio, afinal, para “o” ator do Método. Para já não falar dos problemas que o levaram a ter de interromper a rodagem e a viajar para a América para ir em busca de Christian, o filho adolescente a braços com problemas de álcool e drogas e que fugira, aparentemente, para o México.

Marlon Brando in Last Tango in Paris

Brando morreu em 2004, aos 80 anos, como um dos maiores atores de todos os tempos. E o Paul de “O Último Tango…” não é de todo o seu melhor trabalho

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Apesar de tudo, escreveu, Bertolucci foi um dos três maiores realizadores com quem alguma vez trabalhou (nenhum dos outros sendo Coppola, btw, mas Elia Kazan e Gillo Pontecorvo).

E nós?

Nós, público, mudámos certamente. Em 50 anos, o mundo mudou, o sexo mudou, o cinema mudou, e parece hoje impossível refletir sobre “O Último Tango em Paris” sem que quase tudo gire em torno de uma cena. Uma cena desleal e desigual antes e depois, pois como diria, Maria Schneider, Brando e Bertolucci ganharam uma fortuna com o filme e ela meia dúzia de dólares. Mas não se pode reduzir “O Último Tango em Paris” a uma cena – nada seria mais cruel para com os próprios atores.

Em 2022, quando tudo é artificial no cinema, planeado, controlado e repetido até ao último pormenor para alcançar um efeito minuciosamente estudado e definido de antemão, “O Último Tango…” lembra-nos um tempo em que havia coisas a acontecer realmente diante da câmara: vida, realidade, emoções, instantes humanos e não meras repetições coreografadas para os sensores de movimento captarem e transporem para o CGI posterior. A verdade imperfeita contra a mentira perfeita. A inocência e o princípio do crepúsculo, a vida a gotejar no meio. Mais a fotografia de Vitttorio Storaro. E o saxofone de Gato Barbieri.

E Paris, claro. Paris. Em 1972 como hoje, perfeita para se perder.

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