[Este é o último de oito artigos sobre a história e nomenclatura do calçado e suas marcas mais conhecidas. Os anteriores podem ser lidos aqui:]
- Dos pés descalços aos reis de todos os passos
- O sapato desportivo e a prova dos saltos altos
- Pés descalços, arrependimentos e penitências
- Sandálias, tamancos e galochas
- Ténis, sapatilhas e chuteiras
- Como os ténis conquistaram o mundo
- Stilettos, mules e yeezys
Os discípulos de Imelda Marcos
Imelda Marcos, mulher do presidente Ferdinand Marcos, que governou as Filipinas entre 1965 e 1986, ficou famosa pela sua colecção de sapatos: após a queda do regime e a fuga do casal para o Hawaii, foram contabilizados 3000 pares só na residência oficial, o Palácio Malacañang, e estima-se que Imelda possuísse um total de 7500.
Nem todos dispõe de desafogo financeiro e espaço para arrumação comparáveis aos da ex-primeira-dama filipina, mas muitos consumidores têm tendência para comprar mais sapatos do que realmente necessitam, impulso que os fabricantes potenciam ao lançar incessantemente novos modelos e ao inventar modas que tornam obsoletos os sapatos do ano anterior, mesmo que estejam como novos.
A pulsão para comprar sapatos varia muito de país para país, mas é ditada por outros factores para além das diferenças de rendimento: o Reino Unido é o campeão da compra de sapatos, com uma média de 7.4 pares/ano por habitante, enquanto na Suécia, que tem um PIB per capita superior ao do Reino Unido, a média se fica por 4.0 pares/ano. Previsivelmente, os britânicos são também os que mais sapatos possuem: uma média de 18 pares por homem e 30-35 pares por mulher. Os americanos vêm a seguir: compram em média 7.2 pares/ano e possuem 19-20 pares de sapatos, com 12 pares para os homens e 27 para as mulheres. Os franceses surgem em 3.º lugar, comprando 6.1 pares/ano e possuindo em média 14 pares por pessoa.
A situação é bem diferente nos países menos desenvolvidos: por exemplo, os indianos ficam-se por 1.9 pares/ano; a média da região Ásia-Pacífico é de 1.7 pares/ano e a de África é de 1.6 pares/ano, mas estes valores não retratam fielmente a realidade, uma vez que uma parte apreciável da população destas regiões anda descalça durante a maior parte da sua vida, uns por hábito e circunstâncias, outros por falta de dinheiro para comprar sapatos. Nos países desenvolvidos também existem grandes assimetrias ocultas sob as médias, mas não por haver gente descalça: por exemplo, no Reino Unido, uma em cada oito mulheres possui mais de uma centena de sapatos.
Até os ténis, que, durante muitos anos, foram vistos como equipamentos destinados à prática desportiva (profissional ou amadora) ou como sapatos baratos, anódinos, meramente utilitários e descartáveis, acabaram por tornar-se protagonistas da vertigem consumista e hoje as redes (ditas) sociais estão cheias de “unboxing videos” e de coleccionadores exibindo orgulhosamente o seu acervo de centenas de pares de ténis. Com o inestimável concurso da Internet, o mundo encheu-se de milhões de “sneakerheads”, que mantêm na cabeça um vasto catálogo de modelos de ténis e respectivos anos de lançamento e preços de retalho e de revenda no mercado de segunda mão (informação que não costuma deixar espaço na mente para muito mais).
O ramo pedestre do capitalismo de casino
Quem não preste atenção a marcas e modas e encare os ténis como calçado de lazer e se contente em adquirir ocasionalmente um par de “marca branca” numa grande superfície poderá julgar que o coleccionismo de ténis é uma excentricidade insignificante, já que 1) só é possível calçar um par de sapatos de cada vez e 2) os ténis são um produto barato, indiferenciado e massificado e, logo, com reduzido apelo coleccionista. A primeira asserção é apenas parcialmente verdadeira, a segunda não o é de todo, ou, melhor, as grandes marcas, antevendo os formidáveis ganhos a extrair do coleccionismo, apostaram no lançamento de ténis dispendiosos, diferenciados e de tiragem limitada. As “edições especiais”, frequentemente associadas a super-estrelas do desporto e da pop ou a designers de moda renomados, e as reedições de modelos “míticos”, tornaram-se num importante segmento do mercado dos sapatos desportivos, permitindo aos fabricantes maximizar os lucros e a “aura” e notoriedade da marca. Embora algumas edições especiais possam incorporar ornamentos com pedras e metais preciosos, a grande maioria recorre a materiais e processos de fabrico similares aos dos modelos produzidos em massa, pelo que a margem de lucro é muito superior à dos segundos.
Porém, esta estratégia acabou por ter desenvolvimentos que os fabricantes talvez não tenham previsto: devido à escassez artificial imposta pelo fabricante, os ténis que tinham um custo para o fabricante idêntico ao dos ténis de 100 euros e que se vendiam nas lojas por 200 começaram a ser colocados à venda em segunda mão por 400. Com a ajuda das redes (ditas) sociais e do espírito de carneirada que elas fomentam, a revenda de ténis foi ganhando ímpeto, os ténis que se revendiam por 400 euros passaram para 800 e, depois, para os 1200 euros, começaram a formar-se longas filas de cada vez que era anunciado o lançamento de edições limitadas e o que começara por ser um micro-nicho frequentado por meia dúzia de nerds move hoje anualmente 6000 milhões de dólares em todo o mundo e 2000 milhões só nos EUA – e estima-se o mercado dos EUA possa atingir 6000 milhões de dólares em 2025.
Há muita gente – invariavelmente jovens do sexo masculino – que vive exclusivamente da revenda de ténis: escrutinam incessantemente os websites e as redes sociais, para estar a par de preços (talvez o termo “cotações” seja mais correcto) e novos lançamentos; acampam à porta das lojas (por vezes com dias de antecedência) quando da colocação à venda de edições especiais, se necessário enfrentando temperaturas negativas, para ter o privilégio de adquirir alguns pares de ténis, que revenderão com lucro semanas depois; frequentam eventos exclusivamente destinados à revenda e troca de ténis (o mais concorrido é a Sneaker Con); patrulham incessantemente as plataformas virtuais de leilão de ténis (a mais popular é a StockX, fundada em 2016 e avaliada, apenas cinco anos depois, em 3800 milhões de dólares). Os revendedores profissionais recorrem também a bots para assediar os websites das lojas virtuais quando dos lançamentos e pagam a pessoas para marcar lugar nas filas que se formam à porta das lojas físicas. E há miúdos que entram nesta roda-viva aos dez anos e aos 18 já ganham dezenas de milhares de euros por ano – pelo meio, muitos já abandonaram os estudos.
É importante realçar que o mercado de ténis de segunda mão (ou mercado secundário) não tem nada a ver com frugalidade ou preocupações ambientais (comprar usado em vez de comprar novo): a esmagadora maioria dos ténis nele transaccionados dizem respeito a edições limitadas e nunca foram usados – não são exemplares desgastados de ténis produzidos em massa, são artigos de luxo ainda por estrear (a excepção são exemplares que andaram nos pés de estrelas do mundo do desporto). O que move o mercado de ténis de segunda mão também não é a qualidade, a estética e o desempenho superiores dos sapatos – na verdade, no que à estética concerne, muitos dos modelos mais valorizados até são ostensivamente hediondos, o que é uma forma de demarcarem-se dos produtos de massas – mas a raridade e o hype e o buzz (para usar dois termos correntes no domínio das actividades especulativas).
As marcas não lucram directamente com a revenda, como é óbvio, mas o alarido e o frenesim especulativo em torno dos modelos mais disputados dilata a aura e prestígio das marcas – é uma forma de publicidade gratuita que as ajuda a vender milhões de ténis das gamas correntes.
Tudo isto pode parecer insano e doentio a quem não faça parte do meio, mas este tem-se afadigado a construir um discurso para se legitimar. Nele, a especulação gananciosa em torno da revenda de ténis é apresentada como a “democratização da bolsa de valores”; a obsessão consumista e frívola por artigos de moda é reinterpretada como uma saudável forma de afirmação e auto-expressão; e a alienação e o estreitamento de horizontes são metamorfoseados numa respeitável forma de “cultura” juvenil, a “sneaker culture”, cuja erudição se resume a memorizar as datas de lançamento de modelos de prestígio, que celebridades foram vistas com eles e a sua cotação no mercado de revenda.
A bolha dos sapatos
No relativamente novo, mas já bem vigoroso, ramo do capitalismo especulativo que é o mercado secundário de ténis, alguns modelos de edição limitada podem atingir preços centenas de vezes acima dos modelos de topo de gama produzidos em massa pela mesma marca. Por exemplo, o Air Jordan 11 Jeter, lançado em 2017 para assinalar a cerimónia de despedida de Derek Jeter ao baseball profissional e de que foram produzidos apenas cinco pares, atingiu um preço de 40.000 dólares da última vez que foi avistado um par à venda.
Os Nike Dunk SB Low Paris, um sapato de basquetebol de que foram fabricados, em 2003, 200 exemplares, pode ser encontrado na Farfetch (um website de artigos de luxo) por c.46.000 dólares (um preço razoavelmente em conta, se se atender a que um par foi revendido em 2021 por 130.000 dólares).
Em 2015, a Nike e a sua subsidiária Jordan representavam 96% do mercado de revenda, mas a Adidas e a Yeezy têm vindo a ganhar terreno. No caso da Jordan e da Yeezy, que quase só fazem edições limitadas, cada novo modelo que é colocado à venda no mercado de retalho fica rapidamente esgotado (por vezes em minutos), o que explica que estas sejam as marcas mais disputadas no mercado de revenda.
Um estudo realizado no final da década passada concluiu que quem, cinco anos antes, tivesse investido 100 dólares em acções de empresas do índice S&P 500, teria visto esse valor subir para 149 dólares. Porém, teria 378 dólares se tivesse investido em ténis Adidas, 318 dólares se tivesse investido em ténis Puma e 214 tivesse investido em ténis Nike. Este tipo de estudos que retratam o mercado de revenda como um negócio em que todos fazem muito dinheiro com pouco esforço tem um enviesamento: não pode dele depreender-se que quem tenha comprado, ao acaso, uns ténis Adidas ou Pumas correntes e pretenda revendê-los passados cinco anos consiga obter um lucro de 100% ou 200% – muito provavelmente receberá muito menos do que pagou por eles. A valorização reportada no estudo diz respeito a uma “carteira” de modelos de topo de gama, de tiragem limitada e com valor de coleccionismo, que são os que constituem o grosso do mercado de revenda.
Em 2020, a valorização média dos sapatos no mercado de revenda (por referência ao preço de retalho original) era de 54% para a Jordan 54%, 46% para a Nike, 39% para a New Balance, 32% para a Adidas e 30% para a Converse.
Durante muito tempo a ocorrência das palavras “sapatos” e “bolha” na mesma frase estava associada aos padecimentos infligidos aos pés por sapatos inadequados, sobretudo quando de caminhadas ou corridas prolongadas. Mas a tendência geral de valorização no mercado de revenda de sapatos desportivos e os preços exorbitantes atingidos por alguns modelos levaram a que alguns especialistas do ramo começassem a interrogar-se sobre se “a bolha dos ténis” correria o risco de estoirar. Todavia, é pouco provável que o mercado de revenda de ténis colapse subitamente – afinal, o objecto do mercado tem uma existência física concreta, não é percebido como perecível (o que não é inteiramente verdade) e até tem, para lá do valor de troca, um valor de uso; ou seja, não é um mero fantasma digital, como as criptomoedas e os NFTs. E, uma vez que os modelos “de colecção” são produzidos em pequenas tiragens, não só são raros como a sua raridade tenderá a aumentar com o tempo (à medida que forem comprados, usados, desgastados e extraviados), pelo que a sua dinâmica de procura e oferta seguirá um padrão similar ao das antiguidades ou dos automóveis clássicos, que flutua não está sujeito a colapsos bruscos. Os investidores poderão ser momentaneamente acometidos daquilo que Alan Greenspan, economista e ex-presidente do banco central dos EUA, designou como “exuberância irracional” (uma crença optimista na valorização indefinida dos activos, que não resulta de avaliações objectivas do desempenho das empresas mas de factores psicológicos), o que irá inflacionar extravagantemente a cotação de alguns modelos, mas é improvável que eventuais correcções de mercado sejam de proporções catastróficas.
Mas o mercado também pode ser minado pelo lado da oferta, se, na ganância em explorar o apetite por ténis coleccionáveis, as marcas não souberem gerir a sua escassez. Parece ter sido o caso da Yeezy, que tem registado quebras significativas nas cotações de revenda de alguns modelos, em resultado de a marca ter lançado sucessivas reedições, idênticas ou com variantes ínfimas, de certos modelos, fazendo com que estes se tornassem menos raros e, logo, menos cobiçados. Por exemplo, o Yeezy Boost 350 V2 Zebra, que, em Janeiro de 2018, se transaccionava no mercado de revenda a 1500 dólares, caiu para 500 euros em Setembro de 2019; no mesmo período, o Yeezy Boost 350 V2 Semi Frozen Yellow, caiu de quase 2000 dólares para 300 dólares.
A lição a retirar daqui é que o segredo do negócio é manter o cliente esfomeado.
A democratização do coleccionismo
Uma vez que o frenesim especulativo em torno dos ténis é comandado pela raridade e pelo hype, é possível, mediante a manipulação das pulsões primárias dos consumidores, a sua propagação a modelos de gama baixa produzidos em massa. Um caso emblemático foi o dos “ténis do Lidl” (ver Começou com uma mentira, chegou ao eBay e hoje é uma febre. Como explicar o fenómeno da colecção do Lidl?). Os ténis em questão, que faziam parte da “colecção Lidl Fan” (que incluía peúgas, chinelos e t-shirts), tinham qualidade apenas aceitável (quem poderia pedir mais, a 12.99 euros o par?) e a sua estética, ostentando as cores e logótipo do Lidl, era deliberadamente “rasca”. Em princípio, seria o tipo de ténis usado por reformados de classe baixa e média-baixa para passear o cão e que adolescentes e jovens adultos (de qualquer classe) só usariam em público sob ameaça de uma morte lenta e dolorosa. O truque do Lidl foi fazer crer que estes sapatos de “marca branca” produzidos em massa eram uma edição limitada, que estava à beira de esgotar-se e estava a ser vendida no eBay por quantias dezenas de vezes acima do seu preço de retalho. Graças à credulidade e ganância das massas – em particular adolescentes e jovens adultos – este boato converteu-se em realidade um pouco por toda a Europa, da Finlândia a Portugal: os ténis esgotaram-se num ápice e foram colocados à venda no eBay por preços que atingiram os 2000 euros. Alguns oportunistas terão feito bom dinheiro com a “corrida aos ténis do Lidl” e o Lidl, embora não tendo retirado das vendas grande receita – ténis vendidos a 12.99 euros têm, necessariamente, uma margem de lucro ínfima –, obteve mais visibilidade nos media e nas redes (ditas) sociais do que conseguiria com uma campanha publicitária convencional no valor das dezenas de milhões de euros.
Se a absurda corrida aos ténis do Lidl foi, antes de mais, um fenómeno especulativo espoletado por uma ardilosa campanha de marketing, ela assentou também em dois equívocos: um é a “democratização do coleccionismo”, ou seja, a ideia de que também os remediados, que só em sonhos terão meios para adquirir umas Nike Dunk SB Low Paris ou umas Air Jordan 11 Jeter, podem ganhar quantias apreciáveis sem esforço ou mérito e fazer parte do Grande Circo do Luxo e da Ostentação das redes (ditas) sociais; o outro é a ideia (fulcral no conceito de “trash fashion”) de que, quando levados ao extremo, o feio torna-se belo, o banal torna-se distinto e o reles torna-se chic.
Quando os teus ténis são a tua cara
A moderna sociedade de consumo caracteriza-se por uma luxuriante diversificação da oferta de produtos e em poucas áreas tal é tão evidente como no segmento dos sapatos desportivos. Porém, há consumidores que, após escrutinarem dezenas de milhares de modelos disponíveis nas lojas físicas, nos websites das marcas e nas plataformas de e-commerce não encontram um modelo que lhe agrade.
Foi a pensar nestes consumidores picuinhas e caprichosos que começaram a surgir pequenas empresas que propõem variações sobre os modelos-padrão fabricados pela marca. Note-se que não se tratam de falsificações: o “personalizador” (“shoe customizer”) compra ténis genuínos e usa-os como ponto de partida para a sua “criatividade”. A marca que é objecto mais frequente de “personalização” é a Nike, em particular o modelo Air Force 1, seguida pela Adidas, Vans e Converse; a Nike também tem sido a marca que mais se tem oposto à “personalização” dos seus produtos, tendo processado alguns “personalizadores” por desvirtuação dos seus produtos e por infracção das leis de propriedade intelectual.
Porém, talvez o que incomode realmente a Nike seja que os “personalizadores” vendam os ténis alterados por valores bem acima do preço de retalho e que estejam a competir com o serviço de “personaização” disponibilizado pela própria Nike. Este nasceu em 1999, como NikeID e nessa altura permitia, através do website da Nike, apenas tomar como “branco” o modelo Air Force 1. Entretanto o NikeID foi rebaptizado como Nike By You e as suas possibilidades foram expandidas, permitindo ao cliente, especificar cores, grafismos e materiais de acordo com o seu gosto, sobre uma gama de modelos-base que não tem cessado de dilatar-se. O Nike By You é assim apresentado no website da marca: “Acrescenta o teu toque de magia. Quando toda a inspiração se concentra no design das tuas sapatilhas, tudo parece possível. Voilá! Experimenta criar umas sapatilhas que são a tua cara com o serviço de co-criação da Nike”. O serviço é também disponibilizado em cerca de uma centena de oficinas físicas, denominadas Nike By You Studios, distribuídas pelos principais mercados da marca.
A “personalização” permite resolver o paradoxo que atormenta todas as “fashion victims”: “se não tenho uns Air Force 1, não faço parte do grupo; mas se todos no grupo têm uns Air Force 1, o valor dos meus Air Force 1 é diluído”. Por outras palavras, a “personalização” torna possível caminhar sobre a tortuosa linha que separa a pertença à tribo da afirmação de individualidade. Representa também a mais perfeita concretização do estulto conceito, tão propalado por ideólogos da “sneaker culture” e sociólogos desnorteados, dos ténis como forma de “auto-expressão”. Sem surpresa, são as gerações que possuem uma linguagem escrita e falada mais limitada e introduzem um “tipo” (“like”, nos anglófonos) a cada dez palavras, as que estão mais fascinadas com a possibilidade de se “exprimirem” através dos sapatos. Para a marca, a “personalização” representa uma oportunidade para aumentar as receitas à custa dos consumidores que se julgam especiais e dotados de invulgar discernimento e fazem questão de demarcar-se da carneirada.
Interlúdio: Elegia para as entre-solas
O frenesim que impregna o coleccionismo e o mercado de revenda de ténis faz com que raramente seja mencionado um facto que compromete um dos principais pressupostos desta frívola agitação: o de que o seu objecto é duradouro. Não é: a entre-sola de muitos ténis (por vezes, também a sola) é feita de poliuretano, que com a passagem do tempo, através de processos de hidrólise e oxidação, acaba por desintegrar-se. Os coleccionadores mais dedicados até podem nunca calçar os seus preciosos ténis, embrulhá-los em plástico, guardá-los em ambiente com temperatura e humidade controladas e evitar a exposição directa à luz solar, mas a marcha do tempo é tão inclemente para os Jordan de milhares de euros como para os ténis de 20 euros comprados no bazar chinês. No caso de apenas a entre-sola ser de poliuretano, a degradação pode não ser evidente à vista, mas será de imediato perceptível a quem calce o sapato – ou simplesmente o segure nas mãos. E mesmo que não seja o poliuretano a sucumbir, o tempo fará as colas perder aderência e os restantes materiais sintéticos ficarem ressequidos, quebradiços ou amarelados.
Jordan Geller, que em 2012 foi certificado pela Guinness World Records como o detentor da maior colecção de ténis do mundo (2388 pares), converteu, em 2009, o armazém, em San Diego, onde guardava a sua colecção, num museu, o ShoeZeum. Este seria transferido para Las Vegas em Agosto de 2012, mas Geller acabou por encerrar este três meses depois e por desfazer-se, pouco a pouco, da colecção, por constatar que os exemplares mais antigos estavam a degradar-se. A degradação do poliuretano é um fenómeno que, provavelmente, desperta a Schadenfreude dos paladinos do calçado clássico, que, no século XXI têm visto o prestígio e os preços exorbitantes dos seus sapatos em couro genuíno, feitos à mão com infinito esmero por artífices italianos, serem ofuscados por umas alparcatas de plástico colorido e resina fabricadas na China.
Nike vs. Naique
Uma vez que nos sapatos – como em todos os artigos de moda –, os consumidores valorizam a aura da marca acima de todos os critérios, é natural que muitos fabricantes, em vez de se esforçarem por construir a sua própria aura ou por desenvolver produtos que se imponham pela qualidade, prefiram tomar uma via mais fácil: a cópia dos produtos mais cobiçados das marcas de prestígio.
Esta cópia pode assumir várias formas:
1) Reprodução genérica do design de um modelo de sucesso, evitando a cópia fiel e assumindo explicitamente tratar-se de uma marca diferente; está-se no domínio do plágio (ou do “inspirado em”), não no da contrafacção. Pode ser praticada por uma grande marca, tentando capitalizar o sucesso de um modelo de uma marca rival.
2) Uso de nomes e logótipos com semelhanças (quase sempre desajeitadas e ingénuas) com os das marcas de prestígio (quatro riscas em vez das três riscas da Adidas, o swoosh da Nike invertido, etc.) em sapatos baratos e de baixa qualidade. Não é contrafacção no sentido mais estrito, uma vez que não se reproduz um modelo específico nem os elementos distintivos da marca, apenas tenta tirar-se partido da aura das grandes marcas junto de um público muito pouco exigente.
3) Uso dos nomes e logótipos de marcas de prestígio em sapatos que não replicam modelos existentes da marca “pirateada”. É uma contrafacção que pretende ludibriar um público pouco exigente e pouco informado, que apenas aspira a ter algo com uma marca com “aura”.
4) Reprodução tão perfeita quão possível de modelos específicos (e altamente valorizados) de marcas de prestígio. Este tipo de contrafacção visa dois tipos de consumidor: um é o ingénuo, que acredita estar a comprar o produto genuíno; o outro é o informado remediado, que sabe distinguir o original da contrafacção, mas que, não tendo dinheiro para comprar o original, se resigna em comprar o sucedâneo.
A contrafacção “de alta fidelidade” incide sobretudo na Jordan e Yeezy e nas marcas de luxo que também produzem ténis (como Balenciaga, Prada, Gucci, Versace) e tem vindo a tornar-se cada vez mais frequente e cada vez mais perfeita. Os falsificadores não só se esmeram na reprodução dos detalhes como produzem cópias dos selos e certificados de autenticidade que as marcas de prestígio implementaram para tentar combater a contrafacção. E têm a seu favor a explosão do comércio online, que fez com que uma fracção substancial das vendas se tenha deslocado das lojas físicas credenciadas (da própria marca ou de cadeias de retalho) para a nebulosa da Internet, onde quer o consumidor quer as entidades fiscalizadoras das actividades económicas têm grande dificuldade em distinguir o trigo do joio e onde é possível ao falsificador vender os seus produtos directamente ao consumidor. A proliferação de artigos de moda contrafeitos no e-commerce é tal que a eBay criou um centro de triagem, onde equipas de especialistas escrutinam diariamente milhares de artigos, em busca de contrafacções.
A prova de que os sapatos são hoje um dos principais objectos de desejo está no facto de representarem 24% de todas as apreensões de produtos contrafeitos a nível global. No caso das marcas de sapatos desportivos, uma vez que, com o fito de minimizar os custos de fabrico, a produção foi inteiramente deslocalizada para a China e Sudeste Asiático, também é nesta região que se concentra a contrafacção. 80% dos ténis contrafeitos apreendidos provêm da China – e, em particular, de Putian, a capital mundial da contrafacção de ténis –, com Hong Kong em 2.º lugar e Turquia e Singapura em muito distantes 3.º e 4.º lugares. Em Putian, muitos fabricantes de contrafacções nem sequer se dão ao trabalho de disfarçar a sua actividade, já que as autoridades chinesas tendem a fechar os olhos.
São frequentes os rumores de que os ténis originais e as contrafacções provêm, por vezes, da mesma fábrica, mas o que é usual é que sejam produzidos em pequenas fábricas, que conseguem obter, por portas travessas, um exemplar do modelo a copiar (se possível antes de ele ser lançado no mercado global) e o desmantelam de forma a perceber como replicá-lo. O facto de as fábricas “piratas” serem capazes de colocar no mercado réplicas muito convincentes a uma fracção do preço de retalho do original não só prejudica directamente as vendas das marcas de prestígio, como chama a atenção para o facto de estas venderem os seus produtos por um preço muito superior ao custo de fabrico, sobretudo quando se tratam de “signature series” e “edições limitadas”. Todavia, as marcas rejeitam a acusação de praticarem margens de lucro obscenas, invocando as fortunas que gastam em investigação e em publicidade.
A proliferação de réplicas de alta qualidade é tal que, por vezes, mesmo quem tem dinheiro para comprar os ténis originais pode descobrir que adquiriu uma falsificação – ou melhor, raramente o descobre por si, quem costuma fazê-lo são os sneakerheads que se especializaram na “caça à falsificação”, escrutinando os media e as rede sociais em busca de celebridades com sapatos contrafeitos e denunciando publicamente o embuste; o mais famoso destes “caçadores” é um YouTuber que se identifica como Yeezy Busta (“denunciador de Yeezys [falsos]”) e colhe pingues lucros desta actividade, uma vez que o seu canal tem mais de meio milhão de subscritores.
O apetite por ténis de “edições limitadas” tornou-se tão voraz que há falsificadores que nem sequer fingem estar a vender o original: assumem que se trata de uma réplica de alta qualidade e até exaltam, no seu website, o rigor e minúcia colocados na contrafacção. O que este tipo de fabricantes propõe abertamente é: “o Balenciaga Triple S DSM tinha um preço de retalho 795 dólares, está hoje cotado a 1200 dólares no mercado de revenda e pode adquirir a nossa réplica de alta qualidade por 120 dólares”.
E a verdade é que há cada vez mais clientes dispostos a adquirir réplicas em plena consciência, o que não quer dizer que se contentem com qualquer coisa: pretendem uma falsificação tão “genuína” quanto possível. Muitos deste consumidores são extremamente exigentes e são muito activos na Internet, apontando a fraca qualidade dos materiais, as imperfeições e os desvios em relação ao original (mesmo que estes sejam ínfimos e não sejam, por si mesmos, negativos), o que, por vezes, leva os fabricantes das réplicas a retirá-las do mercado. A comunidade dos aficionados de réplicas reúne-se em fóruns virtuais onde se exibem e comparam réplicas, como o RepSneakers, que mantém (sem qualquer ironia) uma “Lista de Vendedores de Confiança”, onde podem adquirir-se (salte-se sobre o oxímoro) falsificações garantidamente genuínas.
As vítimas da moda
O facto de cada vez mais gente andar calçada, não significa que todos calcem os mesmos sapatos: as massas, sejam elas norte-americanas, portuguesas ou indianas, consomem produtos fabricados em massa no Sudeste Asiático a partir de materiais sintéticos, ao mesmo tempo que prospera, em contraponto, um mercado restrito e luxuoso para sapatos que se afirmam por serem fabricados à mão, um a um, recorrendo a peles genuínas (algumas delas exóticas).
O que é irónico nesta “evolução” é que nem andamos hoje mais bem calçados do que os “peles-vermelhas” (cujos mocassins eram “ortopedicamente correctos”) nem os pés das elites são mais bem tratados do que os das massas, já que a moda converteu boa parte dos sapatos em instrumentos de tortura: o calcanhar está erguido acima dos dedos, com recurso a um salto, que torna o equilíbrio periclitante e desloca a maior parte do peso do corpo para os dedos; estes, em vez de poderem espraiar-se naturalmente e desempenhar a sua função no amortecimento de impacto no solo, no equilíbrio e na impulsão, estão cruelmente constrangidos numa ponta afunilada; e a sola é rígida, impedindo o pé de moldar-se ao piso (para lá de, em muitos casos, ser perigosamente escorregadia, sobretudo em pisos molhados).
Salvatore Ferragamo, nome mítico da história do calçado de luxo, costuma ser relevado e louvado pelos especialistas em moda pela sua preocupação em que os seus sapatos fossem não só belos como confortáveis e funcionais, o que o levou a inscrever-se na universidade para estudar anatomia. É irónico que um designer de sapatos que costuma ser creditado com a invenção do stiletto possa ser visto como alguém que deu prioridade ao conforto, à funcionalidade e à correcção anatómica, mas essa ironia passa ao lado de quem vive imerso no mundo da moda e aceita sem pestanejar os pressupostos aberrantes pela qual ela se rege e que ditam que o sapato de luxo “clássico” é, estruturalmente, desconfortável, disfuncional e anti-anatómico.
As mulheres são as principais vítimas das regras abstrusas impostas pela moda, e se, em tempos, o feminismo denunciou (certeiramente) os sapatos de salto alto como uma forma de opressão masculina e como resultado de um nefando conceito de beleza feminina imposto pela sociedade patriarcal (ver capítulo “Divagação erótica: Saltos altos e pin-ups” em O sapato desportivo e a prova dos saltos altos), a verdade é que não só faltou veemência e consistência ao protesto, como este acabou por esmorecer. Os movimentos feministas promoveram cerimónias de queima de soutiens, mas não há registo de que tenham promovido a queima de stilettos nem organizado manifestações frente a lojas da Jimmy Choo.
O designer André Perugia, a quem também é atribuída a invenção do salto-agulha, afirmou no seu livro D’Eve à Rita Hayworth, que “os pés de uma mulher são a porta secreta para a sua personalidade”, uma frase amplamente citada no meio da moda, sem que, aparentemente, alguém se dê conta da sobranceria e condescendência sexistas que dela emanam: a mulher é uma criatura tão intelectualmente limitada, decorativa e “básica” que os segredos da sua frívola cabecinha podem ser desvelados através do exame dos pés. Obviamente que não passaria pela cabeça de ninguém estabelecer vínculo análogo entre os pés e a personalidade de um homem.
Não se sabe quais seriam os critérios “científicos” advogados por Perugia para o exame dos pés da mulher, mas imagina-se que privilegiaria o pé atrozmente deformado por anos de encarceramento em sitlettos a um pé robusto e saudável, que, provavelmente, associaria a “selvagens” e camponesas. O feminismo radical tende, como a maior parte dos radicalismos, a passar o tempo a “ladrar à árvore errada” (onde não há gato algum) e a deixar em paz os seus verdadeiros inimigos, pelo que nem André Perugia nem os stilettos estão na sua lista negra.
Sapatos para todas as ocasiões
Mesmo que os sapatos sejam “anatomicamente correctos” – o que, como vimos é raro – não deixa de ser intrigante que, em muitos países do mundo desenvolvido, insistamos em usá-los no conforto do lar, onde não há lama, água, neve, gelo, espinhos, pisos abrasivos, pedras aceradas ou temperaturas extremas.
No Sudeste Asiático e Médio Oriente, sensatamente, a tendência dominante é que os sapatos fiquem à porta e no Japão a separação rua/casa é tomada tão a sério que as habitações até incluem uma partição desnivelada na entrada especificamente destinada à remoção dos sapatos, o “genkan”. Em Portugal, Espanha e EUA usam-se em casa os mesmos sapatos que se usam na rua. Na Alemanha, Áustria e Europa do Norte adopta-se uma atitude intermédia e é usual que se troquem os “sapatos de rua” por “sapatos de casa” (“Hausschuhe” em alemão), uma vasta categoria que inclui chinelos, pantufas (do francês “pantoufle”, a partir do napolitano “pantofola”, com origem no grego “pantophellon” = “todo em cortiça”), babuchas (do persa “pāpush”, através do árabe “babush” e do francês “babouche”) ou alpargatas (do árabe “albargat”). O recurso a “sapatos de casa” só na aparência é uma prática sensata, já que, embora sendo mais confortáveis que a maioria dos “sapatos de rua”, não deixam de ser redundantes em ambiente doméstico e de enfermar, amiúde, de “vícios anatómicos”.
Como o paleoantropólogo Daniel Lieberman observou sarcasticamente numa das suas palestras, muitos dos streakers que irrompem nus pelo espaço onde se desenrola uma cerimónia, certame ou competição desportiva, geralmente como forma de protesto ou para chamar atenção para uma causa, desfazem-se das roupas, mas não dos sapatos. A obsessão dos Homo sapiens dos séculos XX e XXI em manter os pés permanentemente encarcerados, mereceria um aturado estudo psicológico e cultural.
Se o imperativo de estar sempre calçado é uma convenção social absurda que medrou espontaneamente, nos séculos XX e XXI ela tem vindo a ser activamente promovida e reforçada pela formidável máquina de ludíbrio e persuasão ao serviço do capitalismo de consumo. Temos disso um exemplo paradigmático na forma como a Nike está a promover os seus sapatos para bebés: a fim de explorar um segmento de mercado em que a competição não é intensa e assegurar a sapatodependência desde o berço, a Nike anunciou em Outubro de 2023 o lançamento dos Swoosh 1, que foram concebidos “para dar [aos bebés] as ferramentas cruciais de que necessitam para o seu desenvolvimento natural [negrito meu] e para evitar futuros problemas podiátricos”. Convém começar a usá-los o mais precocemente possível, recomenda a Nike, dado que “o padrão de locomoção costuma definir-se cinco a seis meses após os bebés começarem a andar”. A argumentação é cavilosa, mas muitos pais acreditarão nela e apressar-se-ão a desembolsar cerca de 60 euros por par a fim de assegurar que os pés dos seus mimosos rebentos se desenvolverão “naturalmente”. Pelo seu lado, a Nike está apenas a cumprir a sua razão de ser primordial – maximizar o lucro dos accionistas – mas é mais difícil aceitar que os media tenham reproduzido a publicidade da Nike como “notícia” e, para mais, com o capcioso título “Nike lança sapatos que ajudam os bebés a aprender a andar” (o Google identifica nada menos do que 4530 “notícias” com o título “Nike introduces shoe to help babies learn to walk”) e que a Associação de Medicina Podiátrica dos EUA tenha agraciado os Swoosh 1 com o seu selo de aprovação (“seal of acceptance”).
E uma vez que, nos países desenvolvidos, os seres humanos já dispõem de sapatos para todas as idades e ocasiões, mesmo para aquelas em que são completamente desnecessários, a máquina de propaganda começou a disseminar a descabelada ideia de que também os cães precisam de calçado. Para já, o conceito não despertou o interesse das marcas tradicionais de sapatos para humanos (embora a Vibram forneça solas ultra-aderentes para algumas marcas), mas o negócio está a florescer e, claro, o público-alvo não são só os cães que puxam trenós (que são a única aplicação razoável para tais aprestos).
Uma obra-prima da engenharia
Os pés são uma das partes mais flexíveis do nosso corpo – são 26 ossos, 33 articulações e 20 músculos – e estão dotados de uma densa rede de receptores nervosos, que nos permite, quando descalços, sentir o mais ínfimo grão de areia. Embora não estivesse a par dos conhecimentos de que hoje dispomos sobre o corpo humano, nomeadamente a nível neurológico, Leonardo da Vinci, deixou uma nota, na profusão de apontamentos sobre os mais diversos assuntos que nos legou, em que afirma que “o pé humano é uma obra-prima da engenharia e uma obra de arte”. Tanto quanto se sabe, Leonardo não era um fetichista de pés, mas foi um dos mais minuciosos e perspicazes estudiosos da anatomia humana (numa época em que esta era ainda uma ciência incipiente e muito mal vista pelas autoridades e pela sociedade), pelo que a admiração que expressou pelo pé assentava num conhecimento profundo.
No tempo de Leonardo não só a anatomia e fisiologia humanas eram ainda um território nebuloso e infestado de equívocos, como nada se conhecia ainda sobre os processos evolutivos e a selecção natural. Mas hoje sabe-se que as mudanças na configuração e na biomecânica dos pés dos antepassados do Homo sapiens, que permitiram a postura erecta e a locomoção bípede e libertaram as mãos para desempenhar tarefas mais complexas e nobres do que suportar o corpo na marcha, precederam as mudanças no cérebro, que são usualmente vistas como sendo a característica distintiva do humano. Tudo isto confirma a justeza da sugestão, feita por Vybarr Cregan-Reid, em Alteração primata, de que “a evolução tinha planos mais ambiciosos para os pés do que enfiá-los em sapatos”.