Não é caso único na história, mas é um dos mais importantes da Guerra Fria. Oleg Antonyevich Gordievsky era coronel do KGG, os serviços secretos soviéticos. Um agente exemplar, com missões cumpridas um pouco por todo o mundo e promovido a chefe da estação de Londres. Mas apesar de ser um veterano cumpridor das vontade russas, Gordievsky era, ao mesmo tempo, um espião ao serviço do Reino Unido. E é a história de Oleg que Ben Macintyre recorda no livro “O Espião e o Traidor”.
O Observador faz a pré-publicação, revelando parte do capítulo em que o autor recorda como um exercício de prevenção a um ataque nuclear poderia ter terminado da pior maneira. Foi Gordievsky o responsável pela troca de informação que mudou o que muitos chegaram a temer como inevitável.
Ben Macintyre é autor de livros como “Jogo Duplo” ou “Agente Zig Zag”, é colunista e editor associado no jornal britânico The Times, do qual foi correspondente em Nova Iorque, Paris e Washington.
A “Dama de Ferro” tinha desenvolvido um fraquinho pelo seu espião russo.
Margaret Thatcher nunca conhecera Oleg Gordievsky. Não sabia o seu nome e referia-se a ele, de forma inexplicável e insistente, como “Mr. Collins”. Sabia que ele espiava a partir da embaixada russa, preocupava-se com a tensão pessoal a que era sujeito e estava convencida de que ele poderia “dar o salto a qualquer momento” e desertar. A primeira-ministra insistia que, se isso acontecesse, ele e a família deveriam receber o melhor tratamento possível. Viria a dizer que o agente russo não era um simples “fornecedor de informações secretas”, mas uma figura heroica e semi-imaginada, a trabalhar em prol da liberdade em condições de extremo perigo. Os relatórios que ele produzia eram trazidos pelo seu secretário particular, numerados e rotulados “ultrassecreto e pessoal” e “apenas para o RU”, o que significava que não seriam partilhados com outros países. A primeira-ministra consumia-os avidamente: “Lia, palavra por palavra, tomava notas, fazia perguntas e os documentos voltavam com as suas anotações, sublinhados, pontos de exclamação e comentários.” Nas palavras do seu biógrafo, Charles Moore, Thatcher “não estava imune a entusiasmar-se com o secretismo e com o romantismo da espionagem”, mas também sabia que o russo fornecia informações políticas verdadeiramente preciosas: “As comunicações de Gordievsky […] mostravam-lhe, como nenhumas outras, como o comando soviético reagia ao fenómeno ocidental e, na verdade, a ela.” O espião abriu uma janela para o pensamento do Kremlin, para a qual ela espreitava com fascínio e gratidão. “É provável que nenhum primeiro-ministro alguma vez tenha seguido o caso de um agente britânico com tanta atenção como a senhora Thatcher dedicou a Gordievsky.”
Enquanto as agências de informações britânicas andavam à procura de Koba, o KGB trabalhava com afinco para garantir que Thatcher perdia as eleições de 1983. Aos olhos do Kremlin, Thatcher era a “Dama de Ferro” – uma alcunha que pretendia ser um insulto do jornal militar soviético que a criou, mas que ela adorou – e o KGB estava a organizar “medidas ativas” para a debilitar desde que ela chegara ao poder, em 1979, fazendo inclusive uso do expediente de colocar artigos negativos nas mãos de jornalistas de esquerda solidários com a causa soviética. O KGB ainda tinha contactos na esquerda e Moscovo mantinha a ilusão de que conseguiria influenciar as eleições a favor do Partido Trabalhista, cujo líder continuava listado nos ficheiros do KGB como um “contacto confidencial”. Num intrigante prenúncio dos tempos modernos, Moscovo preparava-se para usar truques sujos e interferência oculta para mudar umas eleições democráticas a favor do candidato da sua preferência.
Se o Partido Trabalhista vencesse, Gordievsky estaria numa posição verdadeiramente bizarra: passar segredos do KGB a um governo cujo primeiro-ministro já recebera dinheiro do KGB. A encarnação anterior de Michael Foot como Agente BOOT manteve-se um segredo muito bem guardado; os esforços do KGB para mudar o resultado das eleições não tiveram qualquer impacto, e, no dia 9 de junho, Margaret Thatcher obteve uma vitória esmagadora, reforçada pela vitória nas Malvinas no ano anterior. Com um novo mandato e equipada em segredo com o conhecimento que Gordievsky possuía da psicologia do Kremlin, Thatcher concentrou-se na Guerra Fria. E o que viu foi profundamente alarmante.
No segundo semestre de 1983, o Leste e o Ocidente pareciam estar a dirigir-se para um conflito armado e talvez terminal, impulsionado por uma “combinação potencialmente letal de retórica reaganiana e paranoia soviética”. Num discurso no Parlamento britânico, o presidente americano prometeu “deixar o marxismo-leninismo na pilha de cinzas da história”. O reforço das forças armadas norte-americanas continuava a bom ritmo, acompanhado por uma série de operações psicológicas, entre as quais se contavam penetrações no espaço aéreo soviético e operações navais clandestinas que demonstravam como a NATO podia aproximar-se das bases militares russas. Estas operações destinavam-se a provocar ansiedade à Rússia, e conseguiram: o programa RYAN intensificou-se e as estações do KGB foram bombardeadas com ordens para encontrar provas de que os Estados Unidos e a NATO estavam a preparar um ataque nuclear surpresa. Em agosto, um telegrama pessoal do diretor do Primeiro Diretório Principal (mais tarde diretor do KGB), Vladimir Kryuchkov, dava instruções às rezidenturas para monitorizarem os preparativos da guerra, como a “infiltração secreta de equipas de sabotagem com armas nucleares, bacteriológicas e químicas” na União Soviética. As estações do KGB que relatavam atividades suspeitas eram elogiadas; as que não o faziam eram fortemente criticadas, e mandavam-nas fazer melhor. Guk foi obrigado a admitir “falhas” nos seus esforços para descobrir “planos específicos dos Estados Unidos e da NATO para a preparação de um ataque surpresa contra a URSS”. Gordievsky menosprezou a Operação RYAN como “ridícula”, mas os seus relatórios para o MI6 não deixavam espaço para dúvida: o comando soviético estava com medo, preparado para o combate e em pânico o suficiente para acreditar que a sua sobrevivência podia depender de uma ação preventiva, uma situação que piorou muito na sequência de um trágico acidente no mar do Japão.
Às primeiras horas de 1 de setembro de 1983, um avião de interceção abateu um 747 da Korean Air Lines que se tinha desviado para espaço aéreo soviético, matando todos os 269 passageiros e a tripulação. O abate do voo 007 da KAL fez as relações entre o Leste e o Ocidente mergulharem num nível ainda mais perigoso. Moscovo começou por negar qualquer papel no abate do aparelho, mas posteriormente alegaria que o avião comercial era um avião espião que violara o espaço aéreo soviético numa provocação deliberada dos Estados Unidos. Ronald Reagan condenou o “massacre do avião coreano” como um “ato de barbárie […] [e] desumana brutalidade”, intensificando a revolta interna e internacional e entregando-se ao que um funcionário americano chamaria mais tarde “a alegria da mais profunda arrogância”. O Congresso aprovou um novo aumento do orçamento da defesa. Por sua vez, Moscovo interpretou a fúria do Ocidente com o que acontecera ao 007 da KAL como uma histeria moral fabricada no prelúdio de um ataque. Em vez de um pedido de desculpas, o Kremlin acusou a CIA de um “ato criminoso e provocador”. Uma grande quantidade de telegramas muito urgentes chegou à estação do KGB de Londres com instruções para proteger os bens e cidadãos soviéticos contra um possível ataque, culpar a América e reunir informações para reforçar as teorias da conspiração de Moscovo. Mais tarde, a estação do KGB de Londres seria elogiada pelo Centro pelos seus “esforços para neutralizar a campanha antissoviética no caso do avião da Coreia do Sul”. Em sofrimento e acamado devido ao que seria a sua doença final, Andropov atacou violentamente o que considerou a “ultrajante psicose militarista” da América. Gordievsky trouxe os telegramas da embaixada e passou-os ao MI6.
O abate do voo 007 da KAL deveu-se a básica incompetência humana dos dois pilotos, um coreano e um russo. Porém, os relatos de Gordievsky ao MI6 mostravam claramente como, sob a pressão da tensão cada vez maior e da incompreensão mútua, uma simples tragédia tinha sido exacerbada para tomar proporções de uma situação política extraordinariamente perigosa.
Esta atmosfera de feroz desconfiança, incompreensão e agressão foi agravada por um acontecimento que levou a Guerra Fria à beira de uma guerra real.
“ABLE ARCHER 83” foi o nome de código de manobras militares da NATO, que decorreram entre 2 e 11 de novembro de 1983 e se destinavam a simular a escalada de um conflito que culminaria num ataque nuclear. Este tipo de ensaio geral militar fora realizado muitas vezes no passado pelos dois lados. ABLE ARCHER envolveu 40 mil tropas norte-americanas e de outros países da NATO e da Europa Ocidental e foi lançado e coordenado através de comunicações encriptadas. O exercício de treino criado pelo posto de comando imaginava uma situação em que as Forças Azuis (NATO) defendiam os seus aliados depois de as Forças Cor de Laranja (países do Pacto de Varsóvia) enviarem tropas para a Jugoslávia, antes de invadirem a Finlândia, a Noruega e, por fim, a Grécia. À medida que o conflito simulado se intensificava, uma guerra convencional pareceria escalar para uma guerra com armas químicas e nucleares, permitindo que a NATO treinasse os procedimentos de lançamentos nucleares. Não foram usadas armas reais. Era uma simulação, porém, na atmosfera febril que se seguiu ao incidente com o voo 007, os alarmistas do Kremlin viram uma coisa muito mais sinistra: um estratagema destinado a camuflar os preparativos para a guerra a sério, que seria um ataque nuclear do tipo que Andropov previa, e que a Operação RYAN procurava, há mais de três anos. A NATO começou a simular um realista ataque nuclear no preciso momento em que o KGB tentava detetar um. Diversas características sem precedentes do ABLE ARCHER reforçaram a desconfiança soviética de que aquelas manobras eram mais do que um treino: um grande fluxo de comunicações secretas entre os Estados Unidos e o Reino Unido um mês antes (na verdade, uma reação à invasão de Granada pelos Estados Unidos); a participação inicial de líderes ocidentais; e diferentes padrões de movimentos de pessoas nas bases norte-americanas na Europa. O secretário do Governo, Sir Robert Armstrong, informaria mais tarde a primeira-ministra Thatcher que os soviéticos tinham reagido com profundo alarme porque o exercício “decorreu durante um importante feriado soviético [e] tinha a forma de atividade e alertas militares reais, não apenas manobras”.
No dia 5 de novembro, a rezidentura de Londres recebeu um telegrama do Centro a avisar que, quando os Estados Unidos e a NATO decidissem iniciar um ataque, os seus mísseis seriam lançados nos sete a dez dias seguintes. Guk recebeu ordens para efetuar vigilância urgente no sentido de detetar qualquer “atividade invulgar” em locais-chave: bases nucleares, centros de comunicações, bunkers do governo e, acima de tudo, no número 10 de Downing Street, onde os funcionários estariam a trabalhar freneticamente para se prepararem para a guerra, “sem informar a imprensa”. Numa ordem que diz muito acerca das suas prioridades, o KGB deu instruções aos funcionários para monitorizarem indícios de que membros “da elite política, económica e militar” estavam a evacuar as suas famílias de Londres.
O telegrama, mostrado ao MI6 por Gordievsky, foi o primeiro sinal recebido pelo Ocidente de que os soviéticos estavam a reagir às manobras militares de uma forma invulgar e profundamente alarmante. Dois (ou talvez três) dias mais tarde, um segundo telegrama foi enviado para as rezidenturas do KGB a comunicar, erradamente, que as bases americanas tinham sido colocadas em alerta. O Centro ofereceu diversas explicações, “uma das quais foi que a contagem decrescente para um ataque nuclear começara a coberto do ABLE ARCHER”. (Na verdade, as bases estavam apenas a reforçar a segurança na sequência do ataque terrorista aos funcionários da embaixada americana em Beirute.) As informações de Gordievsky chegaram demasiado tarde para o Ocidente parar o exercício militar. Nesta altura, a União Soviética tinha começado a preparar o seu arsenal nuclear: aviões na Alemanha Oriental e na Polónia foram equipados com ogivas nucleares, o nível de alerta para cerca de 70 mísseis SS-20 apontados para a Europa Ocidental foi aumentado e submarinos soviéticos com mísseis balísticos nucleares foram lançados sob o gelo do Ártico para evitar a deteção. A CIA comunicou atividade militar nos estados do Báltico e na Checoslováquia. Alguns analistas acreditam que a União Soviética preparou os seus silos de mísseis balísticos intercontinentais para serem lançados, mas no último momento optou por não o fazer.
No dia 11 de novembro, ABLE ARCHER foi concluído na data prevista, os dois lados baixaram lentamente as armas e um aterrador impasse mexicano, desnecessário e que passou despercebido do grande público, chegou ao fim.
Os historiadores não estão de acordo em relação a como o mundo esteve perto de uma guerra. A história autorizada do MI5 descreve ABLE ARCHER como “o momento mais perigoso desde a Crise dos Mísseis de Cuba de 1962”. Outros alegam que Moscovo soube sempre que se tratava de um exercício e que os preparativos soviéticos para uma guerra nuclear foram apenas uma habitual intimidação. O próprio Gordievsky estava calmo: “Pareceu-me que era mais um perturbador reflexo da paranoia crescente de Moscovo e que, na ausência de outros indicadores, não era um motivo para preocupação urgente.”
Porém, no Governo britânico as pessoas que liam os relatórios de Gordievsky e o fluxo de telegramas de Moscovo acreditavam que uma catástrofe militar tinha sido evitada por um triz. Nas palavras de Geoffrey Howe, o ministro dos Negócios Estrangeiros britânico: “Gordievsky deixou-nos convencidos do extraordinário, mas genuíno, medo russo de um ataque nuclear real. A NATO mudou de forma deliberada alguns aspetos das manobras militares para que os soviéticos não tivessem dúvidas de que era apenas um exercício.” A verdade é que, ao afastar-se da prática comum, a NATO pode ter reforçado a impressão de intenções sinistras. Um relatório posterior do Joint Intelligence Committee (JIC), a comissão conjunta de informações, concluiu: “Não podemos descartar a possibilidade de que pelo menos alguns funcionários/oficiais soviéticos podem ter interpretado mal o ABLE ARCHER […] como representando uma ameaça real.”
Margaret Thatcher estava muito preocupada. A combinação de receios soviéticos e retórica reaganiana podiam ter resultado numa guerra nuclear, mas a América não estava plenamente consciente da situação que contribuíra para criar. A primeira-ministra declarou que alguma coisa teria de ser feita “para remover o perigo de a União Soviética ter uma reação exagerada se avaliasse mal as intenções do Ocidente”. O Ministério dos Negócios Estrangeiros deveria “considerar com carácter de urgência a melhor maneira de abordar os americanos sobre a questão de possíveis equívocos em relação a um ataque surpresa da NATO”. O MI6 aceitou “partilhar as revelações de Gordievsky com os americanos”. A distribuição de material NOCTON foi alargada: o MI6 informou especificamente a CIA de que o KGB estava convencido de que as manobras militares tinham sido um prelúdio deliberado para o início da guerra.
“Não percebo como é que eles podem acreditar nisso”, declarou Ronald Reagan quando lhe disseram que o Kremlin temera verdadeiramente um ataque nuclear durante o ABLE ARCHER, “mas é um assunto para refletir.”
Na verdade, o presidente dos Estados Unidos já tinha pensado bastante na perspetiva do apocalipse nuclear. Um mês antes, ficara “muito deprimido” depois de assistir a The Day After [O Dia Seguinte], um filme sobre uma cidade no Midwest americano que é destruída por um ataque nuclear. Pouco depois do ABLE ARCHER, o presidente esteve numa reunião no Pentágono sobre o “fantasticamente horrível” impacto de uma guerra nuclear. Mesmo que a América “vencesse” um conflito desse tipo, era provável que 150 milhões de americanos perdessem a vida. Reagan descreveu a reunião como “uma experiência que deu muito que pensar”. Nessa noite, escreveria no seu diário: “Penso que os soviéticos estão […] tão paranoicos com a possibilidade de ser atacados que […] devíamos dizer-lhes que ninguém tem a intenção de fazer tal coisa.”
Tanto Reagan como Thatcher viam a Guerra Fria em termos de uma ameaça comunista à pacífica democracia ocidental: graças a Gordievsky, sabiam que a ansiedade soviética poderia representar um perigo maior para o mundo do que a agressão soviética. No seu livro de memórias, Reagan escreveu: “Em três anos aprendi uma coisa surpreendente acerca dos russos: várias pessoas no topo da hierarquia soviética tinham genuíno medo da América e dos americanos […] Comecei a perceber que muitos soviéticos nos temiam não apenas como adversários, mas como potenciais agressores que poderiam tomar a iniciativa de os atacar com armas nucleares.”
ABLE ARCHER marcou um ponto de viragem, um momento de aterrador confronto na Guerra Fria, que passou despercebido dos meios de comunicação e do público no Ocidente e que desencadearia um lento, mas percetível, degelo. A administração Reagan começou a moderar a sua retórica antissoviética. Thatcher decidiu estender a mão a Moscovo. “Ela sentiu que tinha chegado o momento de ir para lá da retórica do ‘império do mal’ e pensar como o Ocidente poderia pôr fim à Guerra Fria.” A paranoia do Kremlin começou a diminuir, sobretudo depois da morte de Andropov, em fevereiro de 1984, e embora os funcionários do KGB tivessem instruções para continuar atentos a sinais de preparação de um ataque nuclear, o ímpeto da Operação RYAN começou a desvanecer-se.
Gordievsky foi em parte responsável. Até ao momento, os seus segredos tinham sido distribuídos aos Estados Unidos em pequenos e muito seletivos fragmentos; doravante, as informações secretas que ele transmitia seriam partilhadas com a CIA em bocados cada vez maiores, se bem que ainda camuflados com todo o cuidado. Dizia-se que as informações sobre o alarme soviético durante o ABLE ARCHER tinham vindo de um “agente checoslovaco dos serviços secretos […] encarregado de monitorizar grandes exercícios da NATO”. Gordievsky não se importou que o MI6 partilhasse as suas informações com a CIA. “O Oleg queria”, disse um dos seus controladores britânicos. “Ele queria causar impacto.” E causou.
A CIA tinha vários espiões na URSS, mas nenhuma fonte capaz de fornecer este tipo de “verdadeiro conhecimento da psicologia soviética” e apresentar “documentos originais que demonstravam um genuíno nervosismo perante a possibilidade de um ataque preventivo a qualquer momento”. Robert Gates, vice-diretor de informações da CIA, leu os relatórios baseados nas informações de Gordievsky e percebeu que a agência deixara escapar uma coisa: “A minha primeira reação aos relatórios foi não apenas que podíamos ter tido uma grande falha de informações, mas que o aspeto mais aterrador do ABLE ARCHER era que podíamos ter estado à beira de uma guerra nuclear sem sequer sabermos.” Segundo um resumo interno secreto da CIA sobre o estudo do susto do ABLE ARCHER, escrito vários anos mais tarde, “as informações de Gordievsky foram uma epifania para o presidente Reagan […] só o seu aviso atempado a Washington através do MI6 impediu que as coisas fossem demasiado longe”.
A partir do ABLE ARCHER, a essência dos relatórios políticos de Gordievsky era transmitida a Ronald Reagan sob a forma de um resumo regular, claramente proveniente de um único agente. Gates escreveria, anos mais tarde: “As nossas fontes na União Soviética forneciam-nos, essencialmente, informações sobre as suas forças armadas e sobre investigação e desenvolvimento militar. O que Gordievsky estava a dar-nos era informações sobre a forma de pensar do comando – e esse tipo de informações era tão raro para nós como dentes nas galinhas.” Reagan estava “muito comovido” com o que lia, pois sabia que vinha de uma pessoa que arriscava a vida algures no interior do sistema soviético. As informações do MI6 eram “tratadas como as mais sagradas das coisas sagradas na CIA, vistas apenas por um pequeno grupo que as lia em papel, em condições rigorosas”, antes de as folhas serem guardadas e enviadas para a Sala Oval. As informações de Gordievsky sustentavam “a convicção de Reagan de que teria de ser feito um esforço maior não apenas para reduzir a tensão, mas para pôr fim à Guerra Fria”. A CIA estava agradecida, mas frustrada, e profundamente curiosa quanto à origem daquele fluxo constante de segredos.
Os espiões têm tendência para empolar a importância da sua profissão, mas a realidade da espionagem é que muitas vezes só faz uma pequena diferença duradoura. Os políticos adoram informações confidenciais porque são secretas, o que não as torna, necessariamente, mais fiáveis do que as informações de acesso público, e muitas vezes acabam por ser menos fiáveis. Se o inimigo tiver espiões no nosso campo, e nós tivermos espiões no dele, o mundo pode ser um pouco mais seguro, mas, no fundo, acabamos onde começámos, algures no espectro obscuro e não quantificável do “eu sei que tu sabes que eu sei…”.
No entanto, muito de vez em quando, os espiões têm um profundo impacto na história. A decifração do código Enigma reduziu a Segunda Guerra Mundial em pelo menos um ano. Uma espionagem de sucesso e engano estratégico sustentaram a invasão da Sicília pelos Aliados e os desembarques do Dia D. A infiltração soviética nos serviços secretos ocidentais nas décadas de 1930 e 1940 conferiu a Estaline uma vantagem crucial nas suas relações com o Ocidente.
O panteão dos espiões que mudaram o mundo é pequeno e seleto, e Oleg Gordievsky faz parte dele: ele desvendou o funcionamento interno do KGB num momento crucial da história, revelando não apenas o que os serviços secretos soviéticos estavam a fazer (e o que não faziam), mas o que o Kremlin estava a pensar e a planear, e ao fazê-lo transformou a forma como o Ocidente pensava na União Soviética. Gordievsky arriscou a vida para trair o seu país e tornou o mundo um pouco mais seguro. Um documento interno secreto da CIA dizia que o susto do ABLE ARCHER foi “o último paroxismo da Guerra Fria”.